quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Vinhos dos acadêmicos

Vinhos da serra gaúcha foram servidos restaurante DOM para convidados e 19 membros da Academia Internacional de Gastronomia (AIG), em visita ao Brasil, de 1 a 8 de dezembro. No almoço de quarta-feira (12/12), comandado pelo chef Alex Atala, as harmonizações foram feitas com Cave Geisse Brut 2010, Pizzato Chardonnay 2011, Pizzato Fausto Verve 2009, Miolo Lote 43 2008 e Perini Licoroso. Os encontros enogastronômicos em São Paulo e no Rio foram organizados pela anfitriã Academia Brasileira de Gastronomia.

De espiões e gangues do bem

Dois “espiões” com base em Sonoma, na Califórnia, desde agosto de 2007 infiltram-se em vinhedos e adegas de todo mundo para revelar segredos de vinhos de qualidade. Concluída a espionagem, disparam “informes confidenciais” aos cadastrados no site The Wine Spies. O objetivo dos agentes Red (Jason Seeber) e White (Brandon Stauber) é ajudar os consumidores a decifrar os “códigos” do mundo do vinho. É evidente que são também agentes duplos, cooperando com pequenas vinícolas, pinçando garrafas raras e de qualidade, oferecendo pechinchas na internet. Neste momento, Red e White estão “disfarçados” com gorro de Papai Noel e podem facilmente disparar: “Sigam aquele Cab!”. No Brasil, o serviço de “vinhos legais, preços (quase) ilegais” é feito há poucos anos por uma gangue (quase) “escondida” no site SmartBuy Wines. Um serviço “limpo”, diga-se aqui emulando o humor desses negociantes virtuais. A semelhança com os espiões californianos está na carta de intenções: “Conseguimos isso (preços menores) porque somos fuçadores. E porque detestamos os preços exagerados que cobram por aí”. A empresa importa vinhos pontuados, com destaque para os californianos de primeira linha, como “investigou” e “fez carimbar os dedos" o crítico Luiz Horta, do Estadão. Mas há ofertas de vinhos italianos e argentinos também de bom calibre. SmartBuy Wines faz inteligentes tiradas à luz da história da Lei Seca nos Estados Unidos, mas esclarece todo “esquema”, a pedido dos consiglieri jurídicos: o comércio das “muambas” estão dentro das mais rígidas normas de importação e distribuição, apesar dos precinhos com a cara dos praticados por “contrabandistas”. Quer um Chardonnay cult, do Chateau Montelena, a vinícola que já desbancou Chablis franceses no célebre Julgamento de Paris? A gangue “pode arranjar” por um preço camarada. Ou está procurando um Petite Sirah da família Foppiano, que desde 1896 faz vinhos na Califórnia e sobreviveu a todas as intemperanças da Lei Seca? A SmartyBuy Wines separa algumas garrafas que estavam escondidas "atrás da parede falsa" para você. Para outros “rolos” da empresa, visite o descontraído site, onde é fácil descobrir como se juntar à “quadrilha” ou como se candidatar a uma vaga de “atravessador”. http://www.smartbuywines.com.br DC de 7/12/2012

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Alegrias de Rías Baixas

Os albariños de Rías Baixas, na costa sudoeste da Galícia e ao redor de Vigo, Pontevedra e Arousa, são vinhos brancos frescos e perfumados que nas últimas décadas têm embarcado da região dos "fiordes" espanhóis para ganhar o mundo, a começar dos Estados Unidos. Se considerarmos o incensado Paco & Lola, da vinícola Rosalía de Castro, em Pontevedra, com seu rótulos à la Almodóvar, não há erro em dizer que são vinhos alegres e contemporâneos. Os alvariños são produzidos com a mesma casta – de pequenos bagos e extremamente resistente – plantada logo na fronteira do Minho, em solo português. Em Portugal, a alvarinho faz bonito como varietal, mas entra tradicionalmente, e com muita personalidade, na composição dos vinhos verdes de qualidade. Já na Espanha, a alvariño nasce para brilhar sozinha – é a uva rainha de 130 bodegas. São 1.900 hectares de alvariño, manejados por 4.200 viticultores. Rías Baixas DO – status conseguido apenas em meados dos anos 1980, apesar da longa tradição vinícola – é dividida em cinco subzonas: O Rosal, Condado do Tea, Soutomaior, Ribeira do Ulla e Val do Salnés, sendo esta última responsável por 2/3 da produção. Há pelo menos três décadas os produtores da região passaram a cuidar da qualidade de seus vinhedos. A vinícola Pazo de Señorans é um exemplo de sucesso sob comando de Soledad Bueno e da enóloga Ana Quintela. É de onde saem um dos mais populares alvariños espanhóis, da cepa que os estudiosos tratam de ligar à família da Riesling. Ana encarou uma grande polêmica a partir de 1995, quando a Pazo de Señorans resolveu envelhecer um de seus vinhos em tanques de aço inoxidável. Pazo de Señorans Selección de Añada figura hoje entre os melhores brancos da Europa. O cenário da viticultura da região foi dissecada em recente guia (The Finest Wines of Rioja and Northwest Spain) pelos especialistas Jesús Barquín, Luis Gutiérrez e Víctor de La Serna. Segundo eles, é importante lembrar que pelo menos uma bodega de Rías Baixas já produzia um alvariño de qualidade, bem antes do reconhecimento oficial. Fefiñanes, o nome resumido da vinícola, era sinônimo de alvariño. Lembram ainda que o famoso escritor espanhol Juan Goytisolo, no seu romance Señas de Identidad (1966), já tratava o Fefiñanes como palavra do melhor dos brancos. As Bodegas del Palacio de Fefinãnes produzem hoje alvariños estruturados, sem barrica (Alvariño de Fefiñanes III Año), capazes de derrubar o mito do consumo imediato e que evoluem na garrafa por alguns anos.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Vernaccia de Boccaccio

Fosse apenas a apresentação lírica da refeição “alfresco”, manjares finamente cozinhados e vinhos preciosos servidos em ambiente ao ar livre, com récitas ao final, modelo mais tarde abusado por ricos florentinos da Renascença, os escritos do Decamerão, de Boccaccio (1313-1375), já teriam entrado para a história dos mais elegantes desejos. Seus relatos vitalistas, sensuais e alegres são, entretanto, clássicos da literatura de todos os tempos – os primeiros registros realistas a traduzir os momentos de passagem da Idade Média para o Renascimento. É dentro da pungente narrativa sobre os flagelos da Peste Negra, da Igreja e da moral, que Boccaccio encontrou espaço para retratar a autoindulgência de enfrentá-los à mesa, de preferência em espaços idílicos, fora das cidades – procura da sobrevivência que punha em jogo tanto excessos como asceticismos. O Decamerão é, dizem os estudiosos, uma das melhores fontes sobre os hábitos alimentares dos italianos no século XIV, incluídos aí algumas referências aos vinhos. Na lista de Boccaccio, são identificados os da região de Monferrato (no Piemonte), um vinho grego que era produzido no sul da Itália, e um outro descrito com precisão: o Vernaccia de Corniglia. Corniglia é uma das Cinque Terre da pesqueira costa da Ligúria. Uma das vezes em que Boccaccio cita o Vernaccia é na segunda novella do décimo dia de aventuras de seus jovens personagens (sete moças e três rapazes) nos arredores de Florença, fugindo do cenário da peste. Na novella contada por Pânfilo, o abade de Cluny aparece curado de uma insuportável dor de estômago graças a duas torradas e um grande copo do vinho branco Vernaccia de Corniglia, receita simples e tradicional do malfeitor Ghino di Tacco. O bandido tinha feito do prelado refém quando a sua comitiva dirigia-se aos banhos de Siena. Depois da cura, Cluny ganhou a liberdade e Tacco, seus bens e a promessa de perdão papal. O vinho Vernaccia não é feito mais em Corniglia. Hoje a Vernaccia é a uva cultivada em San Gimignano, na vizinha Toscana, que vem produzindo vinhos de qualidade. Isso graças à dedicação principalmente das famílias Falchini, Montenidoli e Panizzi. Os viticultores dessa região ainda demonstram orgulho por ela ter sido a primeira a ganhar a chancela DOC, em 1966, e de ter um dos poucos brancos da Itália com a consagração do DOCG, anotou o crítico Nicolas Belfrage. Os Falchini tem o seu varietal 100% Vernaccia di San Gimignano Vigna a Solatio, mas já elaboram vinhos mais complexos com a mesma Vernaccia, adicionando Chardonnay, "contra a monotonia". Os Montenidoli produzem, sem medo dos blends que garantem mais estrutura aos vinhos, Il Templare Toscana IGT: 70% Vernaccia, 20% Trebbiano e 10% Malvasia Bianca. Já os tintos de San Gimignano são tema para outra história. Diário do Comércio de 23/11/2012

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Provocações de Tom Wark

Os principais Estados americanos produtores de vinho e também os "bebedores" ajudaram a reeleger o presidente Obama. A tese é do blogueiro Tom Wark, do Fermentation. (Apenas o Texas é ao mesmo tempo vinícola e romneyniano.) Acesse os mapas que ilustram a questão de Tom: "Is wine liberal?" www.fermentationwineblog.com/

A batalha do açúcar

A águia alemã que nos interessa veste um cacho de uvas como armadura e tem, nos últimos anos, sobrevoado outros campos de batalha: os vinhedos e os mercados internacionais. A águia assim vestida é símbolo da VDP, Verband Deutscher Qualitäts – und Prädikatsweingüter, uma das mais antigas associações de vitivinicultores do mundo, criada em 1910. Desde 1982, a águia aparece solenemente em rótulos e hoje até em algumas cápsulas, chancelando vinhos com muitos "predicados". Pelo menos 200 desses produtores associados à VDP são também lideranças do setor e enfrentam corajosamente a lei do vinho alemão, de 1971, calcada principalmente no teor de açúcar da bebida. Eles enxergam certa tirania na inspeção outonal de agentes públicos que medem tão somente a quantidade de açúcar das uvas, que por sua vez determina o peso do mosto e a futura classificação dos vinhos, tudo sob a égide dos graus Oechsle. "Do açúcar para o terroir" é portanto um contramovimento importante, analisa o crítico Stephan Reinhardt no seu recém-lançado The Finest Wines of Germany (Fine Wine Edition/2012). A vinicultura alemã, tão celebrada na Idade Média, custou a recobrar seu vigor depois que vinhos açucarados, baratos e de baixa qualidade inundaram as prateleiras mundo afora nos anos 1970, personalizados nas garrafas azuis de Liebfraumilch e no bombardeio da tradução do rótulo: "O leite da mulher amada". O novo guia da série Fine Wine traz justamente o perfil de 70 produtores (de 24 mil em atividade hoje), todos com uma nova visão de vinho alemão, preocupados com a especificidade das uvas, dos terrenos, e com os processos de vinificação. Os vinhos premium, por exemplo, tem carregado um Erste Lage, um número "1" que abraça um cacho de uvas (comparável a um Grand Cru da Borgonha). Na verdade, a VDP quer ainda mais qualidade do que prevê a própria lei. Isso implica na redução da área dos vinhedos, no aprimoramento das instalações e no manejo sustentável das parreiras. Sob a visão da águia, vinhedos VDP precisam ter 80% de Riesling – a uva típica do país – e também de tintas da família da Pinot. DC de 16/11/2012

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Símbolos de resistência

Numancia saiu das páginas da história da Espanha para batizar vinhos de qualidade da região de Toro, em Castilla y Leon. Está nos rótulos das garrafas que saem da vinícola Numanthia, casa que desde 1998 maneja quatro vinhedos da cepa Tinta de Toro (a Tempranillo local), em área de 49 hectares ao longo do rio Duero, o mesmo Douro que corre em Portugal. Numancia é símbolo de coragem. A vilazinha celtíbera resistiu bravamente, isso há mais de 2.000 anos, ao assédio de 50 mil soldados e alguns generais do cônsul romano Cipião. E foi celebrada em tom de tragédia por Cervantes em El Cerco de Numancia (1582). Em vinte anos de cerco monumental, romanos empenhados em sufocá-los de fome e sede construindo muralhas de até 12 metros, os numancinos nunca se renderam. A última batalha foi selada com sacrifício de todos os seus habitantes, cena que o pintor Alejo Vera y Estaca reviveu em El Último Dia de Numancia (1880). Os vinhos de Toro, reconhecidos desde a Idade Média, cantados nos clássicos castelhanos e que "fizeram parte da aventura do Novo Mundo", já brigam em igualdade de condições com vinhos de Ribera Del Duero, Rioja e Priorato. São produzidos na extremidade oeste de Castilla y Leon e desde 1987 contam com o reconhecimento de "Denominación de Origen". A bodega Numanthia fica perto da vila de Valdefinjas, província de Zamora. As ruínas da velha Numancia ficam a 5 quilômetros da cidade de Soria. A associação dos vinhos de Toro com a brava Numancia tem pelo menos uma explicação. Em Toro há vinhedos que resistiram à praga da Phylloxera, que dizimou a cultura na Europa na segunda metade do século XIX. Portanto há mais de 150 anos produzem frutos sem que suas plantas tenham sido socorridas com enxertos. Cerca de 20 hectares dos terrenos da bodega Numanthia têm parreiras de 70 a 100 anos. E há ainda uma área de 4,8 hectares, em Argujillo, com vinhas raras de mais de 120 anos. O primeiro vintage Numanthia, apresentado pela família Erguren ao mercado em 1998, foi mais do que bem recebido pela crítica. Em 2006 a revista Wine Spectator selecionou seus rótulos como imperdíveis tintos espanhóis e apontou o início de um caminho de qualidade que vem sendo perseguido pela vinícola com seus Termes, Numanthia e Termanthia. Isso mesmo depois de a vinícola ter sido adquirida pelo grupo LVMH. DC de 9/11/2012

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Um guerrilheiro zinfanático

Bruce Patch, vinicultor cultuado em Sonoma, ajuda com suas próprias armas a promover os vinhos da uva Zinfandel – cepa-símbolo do esforço americano na viticultura; uva cultivada com vigor na Califórnia a partir de 1852. A Zinfandel é a mesma Primitivo, manejada desde o final do século XVIII na Puglia, sul da Itália. Sofisticadas pesquisas genéticas mostram que a Zinfandel é descendente da cepa Crljenak Kastelanski, nativa da Croácia. Decifrada a gênese, depois de vários períodos de produção de vinhos extremamente rústicos, partiu-se nas últimas décadas para o aperfeiçoamento do cultivo e da vinificação. Bruce criou a Wine Guerrilla, marca de seus vinhos de butique, com Zinfandel colhida em alguns escolhidos vinhedos nos vales Dry Creek, Russian River, Alexander e, claro, Vale do Sonoma. Um Wine Guerrilla de Sonoma acaba de ser lançado, com uvas do renomado vinhedo em Monte Rosso. À luta particular de Bruce somam-se iniciativas mais abrangentes, relacionadas à qualidade da matéria-prima. Em 1995, mudas das melhores e mais antigas videiras de Zinfandel foram plantadas para estudo numa estação experimental da Universidade da Califórnia-Davis (UCD), em Oakville, no Vale do Napa. A UCD, como se sabe, tem sido centro fundamental de formação de profissionais para o desenvolvimento da viticultura nos EUA. O projeto na UC-Davis, batizado de Zinfandel Heritage Vineyards, é patrocinado pela ZAP (Zinfandel Advocates and Producers) e já mostrou os primeiros resultados. Há três anos, os pesquisadores lançaram a primeira seleção certificada (sem vírus) para viveiros comerciais. www.wineguerrilla.com www.zinfandel.org DC de 26/10/2012

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Uma Córsega na Pompeia

Os vinhos da Córsega têm conseguido expressar, em excepcional blend de culturas, a tradição francesa, a herança italiana (Gênova controlou a ilha até 1769) e certa inquietude e orgulho de insulares na busca e aproveitamento de riquezas da terra. Há quem diga que a viticultura da ilha, pelo menos no que se refere aos vinhedos de Grenache, Carignan e Cinsault, mantém até hoje uma aura magrebiana, já que foram imigrantes argelinos, após a independência do seu país, em 1962, os responsáveis pelo plantio de cepas internacionais e pela afirmação territorial das vinhas. A Córsega de hoje, porém, vem diminuindo a área plantada em nome da qualidade, apostando sobretudo nos varietais das uvas Nielluccio (a Sangiovese toscana), a Sciaccarello e a branca Vermentino (quando se quer dar o tom corso a essas cepas, trocamos o "o" do final pelo "u"). Cerca de 80% dos vinhos ali produzidos são consumidos na própria ilha, como uma das atrações que encantam turistas de todo mundo. O restante da produção já consegue atravessar para o continente com desenvoltura, muito além do Vin de Pays sob a rubrica genérica L'Île de Beauté. Em 2009, um tinto corso recebeu reconhecimento da prestigiosa revista Decanter, premiado como blend de qualidade – e barato. Algumas boas garrafas já chegam ao Brasil, rótulos disponíveis no simpático Empório Sorio, na Pompeia, em São Paulo. Especialistas na enogastronomia da ilha, também importam outras guloseimas, como geleias e biscoitos Canistrelli fabricados com farinha de castanha (que combinam com seus vinhos doces tanto quanto os cantuccini são indispensáveis com o vin santo toscano. Mas essa é outra história). As três principais regiões vitivinícolas da ilha são Patrimonio, ao norte, uma das mais vívidas da Córsega, onde a incentivada uva Nielluccio encontrou seu terroir de preferência, na mesma linha de Bastia. O crítico inglês Hugh Johnson fala de tintos que lembram os do Rhône e cita os bem balanceados doces da uva Muscat. A Nielluccio e as outras varietais da ilha crescem bem ainda na extensa costa oriental da ilha, marcada pela denominação AOC Corse. Já na região de Ajaccio, a cidade de Napoleone di Buonaparte, insígne corso que hoje batiza de sorveteria a cafés, a principal uva é a "macia" Sciaccarello, que nasce nas colinas graníticas ao redor da capital. No Emporio Sorio há vinhos que fazem bonito ao representar algumas das regiões demarcadas: Orenga Gaffory Niellucciu (com 10% de Grenache), Domaine Villa Angeli (com o mesmo blend anterior), Terra Nostra Sciaccarellu (100%). www.emporiosorio.com.br DC de 19/10/2012

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Vinhos na Índia do chá e do lassi

Ao perigo vermelho, representado por uma China de ricaços em leilões dos melhores Bordeaux, somam-se compradores de turbante, de uma elite da Índia que começa a apreciar os vinhos colocados nas rotas de seus negócios globalizados. Um consumo muito longe ainda de fazer mexer qualquer mercado, mas que os observadores de tendências fazem questão de anotar. O consumo de vinho no país do chá e do lassi (saborosa bebida à base de iogurte e frutas) ainda é de pouco mais de uma colher por pessoa/ano. Há números, entretanto, que mostram um crescimento vertiginoso do consumo de bebidas alcoólicas nas últimas décadas, da ordem de 30% ao ano. O whisky, uma herança do período colonial inglês, puxa a fila, isso tudo num país que, constitucionalmente, aboliu o álcool e enfrenta severas limitações religiosas. Em 2008, a Índia bebeu 4,6 milhões de litros de vinho. E terá degustado 14,7 milhões de litros, na projeção feita para fechar 2012. Como as tarifas de importação da bebida são muito altas, fazendo crescer os preços em até 400%, as preciosas garrafas compradas na Europa são para muito poucos. Esse quadro fez também com que a produção local, mesmo com as dificuldades de terreno e clima, fosse intensificada em nome de um vinho mais acessível. Nos anos 1980, vinhedos de uvas europeias (cabernet sauvignon, chardonnay, pinot noir, pinot blanc e ugni blanc) passaram a ser cuidados em terrenos mais altos, nas regiões de Karnataka, Maharashtra e Sahyadni, áreas temperadas que vão do noroeste de Punjab até o sul, no estado de Tamil Nadu. Fundado nessa época, o Château Indage, em Maharashtra, abastece o mercado local com vinhos espumantes.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Aventura em vinhedos da América

O empresário Cristián Muñoz iniciou sua carreira ligada aos vinhos como exportador. Pouco mais tarde, já montado numa motocicleta, fez uma campanha para promover os vinhos chilenos empunhando a bandeira da cepa nacional, a Carmenère. Desde 1° de setembro, está na estrada para outra empreitada, desta vez para filmar um documentário que já tem título: Wine Terroir Adventure. No roteiro, nada menos do que visitas a 25 terroirs da América Latina e 40 mil quilômetros de estradas. O espírito da aventura de Muñoz lembra a do projeto Vinos Sin Fronteras: La Volta del Mundo en 80 Viñedos (aqui uma brincadeira com Júlio Verne), encabeçado por Nicolas Beausset, negociante de vinhos na Espanha, e Géraldine Reinhold Von Essen, executiva de uma operadora de turismo francesa. Eles passsaram o ano de 2007 como globetrotters. Visitaram 80 vinhedos em 15 países e desvendaram, em blog, segredos de regiões vinícolas pouco conhecidas como a asiática e seus "vinhos de nova latitude". Muñoz começou a viagem no Palácio de La Moneda, no Chile, onde visitou as adegas Alta Alcurnia (Peralillo), Gandolini (Maipo), Ventorela (Leyda) e Von Siebbenthal (Aconcágua). Atravessando os Andes, chegou a Mendoza e cruzou Buenos Aires, na Argentina. As potentes motocicleta e câmera de Muñoz poderão ser vistas até no Rio de Janeiro, em encontro com importadores. O viajante filmará ainda em vinhedos nos Estados Unidos. www.andeswines.com DC de 28/09/2012

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

O Sangue de Touro de Liszt

Não é de hoje que se atribuem aos vinhos poderes sobre o gênio dos artistas. Sobre o compositor e pianista húngaro Ferenc (Franz) Liszt (1811-1886), conta a lenda que compôs as melodias da Rapsódia Húngara nº 8 sob inspiração movida pelo vinho Bikáver (Sangue de Touro), feito em Szekszárd. Era 1846 e o músico que tinha endereços tão diversos entre Viena, Paris, Roma e Weimar, estava então hospedado na propriedade do barão Antal Augusz, em Szekszárd, província de Tona, ao longo do Danúbio. O barão tinha vinhedos nos arredores da cidade e serviu a Liszt o tinto que lhe valeu a dedicatória da Rapsódia. O próprio compositor, numa das viagens à Roma levou umas garrafas do "néctar sexardique" de presente para o papa Pio IX, que elogiava o vinho bom para seu "ânimo e saúde". A história é contada por József Kosárka, embaixador da Hungria no México, no site Vinesfera.com. Kosárka lembra ainda um episódio histórico ligado ao Sangue de Touro. Durante o cerco dos turcos à fortaleza de Eger, em 1552 (veja reprodução abaixo), o capitão húngaro decidiu alimentar seus soldados com o vinho tinto das bodegas subterrâneas. E este teria garantido ímpeto descomunal ao batalhão. Os próprios vencidos teriam degustado posteriormente a bebida, para eles religiosamente proibida, alegando que o vinho tão grosso e vermelho era realmente sangue do animal. Atualmente, o Bikáver só pode ser produzido nas regiões de Eger e Szekszárd. Nesta última, leva 40% de uvas Kékfrankos e Kadarka. Já os Bikáver de Eger têm regras ainda mais definidas, divididos estão por lei em três qualidades distintas (Clássico, Superior e Grão-superior). O Bikáver Clássico de Eger tem a Kékfrankos como estrela. Em 2011, o vinho oficial do bicentenário de Liszt foi um Kadarka 2008 de Szekszárd, da vinícola Heimann, que trouxe a imagem do compositor no seu rótulo. A uva Kadarka, essencial no blend do Sangue de Touro, chegou às terras húngaras no século XVI pelas mãos de povos balcânicos que fugiam dos otomanos, explica Kosárka. Os Sangue de Touro sempre foram ideais para acompanhar os guisados de cordeiro, temperados e coloridos com muita páprica. O poeta Pablo Neruda, que no início dos anos 70 visitou a Hungria na companhia do escritor guatelmateco Miguel Angel Asturias, chegou a escrever uma verdadeira ode aos pratos do país, ao doce Tokay e ao tinto Bikáver, o "touro com coração de veludo". DC de 21/09/2012

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

A ciência das borbulhas

Físico e fotógrafo, Gérad Liger-Belair é autor de um livro sobre... o Champagne. Uncorked, The Science of Champagne, editado pela Universidade de Princeton, traz seus estudos sobre as borbulhas que aumentam o prazer de quem degusta essa bebida de charme, assim vinificada desde 1668. Este o ano no qual o beneditino Dom Pérignon, da Abadia de Hautvillers, no Vale do Marne, a 150 quilômetros de Paris, começou a lutar contra e a favor das bolhas do champagne até conseguir um método eficiente de vinificação. Quando estudante de Física em Paris, Gérad já tinha atração pela área da dinâmica dos fluidos. Ele conta que, na época em que terminava a graduação, não conseguia tirar os olhos da caneca de cerveja e da dança de suas bolhas douradas. Logo comprou macrolentes e passou a fotografar o comportamento de bebidas gasosas. Ao final, vislumbrou um futuro para sua carreira: resolveu postar as imagens para o Departamento de Pesquisa da Moët & Chandon, com uma proposta irrecusável de pesquisa: toda casa de Champagne teria de conhecer a fundo, cientificamente, os processos físico-químicos dessas borbulhas que têm peso (ou leveza) fundamental na imaginação de quem saboreia esse tipo de vinho. Foi convidado a Epernay, a capital dos vinhos da Champagne, e logo mudou-se de Paris para o Laboratório de Ecologia da Universidade de Reims, onde escreveu sua dissertação de mestrado, base desse seu livro. Nele, Gérard conta como as bolhas enfileiradas na taça chegam ao ápice em seguidas explosões de gotículas invisíveis a olho nu. O autor é hoje professor associado de Ciências Físicas da Universidade de Reims, na região vinícola de Champagne. DC de 14/9/2012

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Na Toscana dos Medici

Os grandiosos casamentos e festas da nobreza florentina, a começar das organizadas por Lorenzo, Il Magnifico, no século XV, passando posteriormente pela de Cosimos e Ferdinandos, quase sempre aparecem descritos entre suspiros em cadernos de viajantes e são colocados em ordem pelos historiadores – excessos renascentistas que se contrapunham à rusticidade e frescor de uma cozinha simples, ligada a ingredientes locais de qualidade, até hoje a marca da culinária toscana. Os vinhos da terra, portanto, que embalaram a Renascença dos palazzi e das praças, não foram esquecidos. Guido Biaggi, por exemplo, tratou dos 50 barris de vinho branco doce servidos no casamento de Giovanna de Medici. Vinhos brancos em profusão também alegravam as ruas de Florença, em festas populares como a de São João Batista, em plena Piazza della Signoria. Sir Robert Dallington escreveu, em 1605, que o vinho era, sem comparação, a "grande commodity da Toscana". Cito as uvas relacionadas por ele, como ele as grafou: Canaiola, boa tanto para a mesa como para vinificar; a pequena Passerina; a Trebbiana, a melhor das uvas brancas, para o vinho Trebbiano; a Moscatello; a Raverutta, que garantia cor a alguns vinhos; San Columbana; a delicada Rimaldesca; Lugliola e a Cerisiana, dos vinhos com toque de cereja. Por todas essas minúcias descritivas não é de todo equivocado especular sobre uma provável qualidade dos vinhos servidos na mesa dos Medici, na qual o Chianti era ainda sinônimo de vinho branco, escreveu o crítico inglês Hugh Johnson, no prefácio de The Fine Wines of Tuscany and Central Italy, um guia da série Fine Wine, de autoria do especialista Nicolas Belfrage. Há que se lembrar também que a primeira denominação de qualidade dos vinhos da Toscana saiu de decreto do Grão Duque Cosimo III de Medici, em 1716. Regiões geográficas de produção passaram a ter direito de exclusividade: Carmignano, Pomino, Chianti e Valdarno. O declínio dos vinhedos italianos passou pela troca de vinhedos por culturas de subsistência e pela devastadora Phylloxera, que dizimou as parreiras europeias nas últimas decadas do século XIX. Até os anos 60, salvo raras exceções, os vinhos italianos eram de baixa qualidade, animavam festas locais e alcançavam os nativos em sua diáspora. Hoje, mais de 40 anos depois, os vinhos da Toscana vivem uma nova Renascença. A Toscana progrediu de vinhos folclóricos para alguns dos tintos mais ressoantes do mundo, diz Johnson. DC de 31/0/2012

domingo, 26 de agosto de 2012

Vigno do Maule

Um grupo de abnegados vitivinicultores chilenos da região do Maule foi à luta para colocar seus vinhos da uva Carignan no mercado mundial. Para isso, criaram a Vigno (Vignadores de Carignan), que cuida da preservação e da qualidade de uma cepa intrinsecamente ligada à gente da terra e que garante sua promoção internacional. Reunidos em Nova York em junho, selecionados críticos e sommeliers degustaram algumas dezenas de rótulos. A avaliação geral é a de que a maioria desses produtores de vinhos varietais de Carignan está no caminho certo, produzindo bebidas de muito boa qualidade. Foram ouvidos elogios à equilibrada acidez e críticas ao excesso de madeira em algumas garrafas. A história da uva Carignan no Maule começa para valer em 1939, após o devastador terremoto no Chile, tremor que afetou principalmente a região de Chillán (uma área que hoje combina cenários agrícolas e pastoris com estações de esqui de muito charme). Depois da tragédia, que arrasou as plantações, viticultores locais, a conselho dos órgãos de agricultura, trataram de plantar a Carignan como tentativa de reerguer a viticultura da região. Tanto a Carignan que aportou no Chile no século XIX (era elegante ter cepas francesas em seu mapa) como a uva que "renasceu" após o terremoto nunca tinham aparecido nos rótulos chilenos como estrela. Isso acontece agora, 70 anos depois, com a Vigno. Doze viticultores (Bravado Wines, De Martino, Garage Wine Co., Gillmorwe, Lomas de Cauquenes, Meli, Miguel Torres, Morandé, Odjfel, Undurraga, Valdivieso e Viña Roja) participam do projeto, que tem regras e delimitações bem definidas. Os vinhos da Vigno precisam ter 65% de Carignan, de videiras de mais de 30 anos, uvas colhidas na sua totalidade da área "secano", sem irrigação, mesmo aqueles 35% que comporão o blend. Os vinhos precisam ainda ter dois anos de guarda em barricas novas antes da sua comercialização. www.vignadoresdecarignan.com/ DC de 24/08/2012

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Os vinhos e as línguas

Atenta à crescente globalização da enogastronomia, a jornalista Roberta Malta Saldanha acaba de lançar seu Minidicionário de Enologia em 6 Idiomas,uma publicação da Editora Senac-Rio, obra de apoio não só aos apreciadores de vinho interessados na rica terminologia da área, mas também de utilidade para estudantes, sommeliers e demais profissionais. Roberta já havia dado suas contribuições à gastronomia nacional quando organizou, em 1995, o primeiro grande evento internacional do gênero, o Boa Mesa. Mais tarde, escreveu o precioso Dicionário Tradutor de Gastronomia em Seis Línguas, que com edição revista e atualizada, será relançado em breve também pela mesma editora. No dicionário enológico, os verbetes têm breve entrada em português, seguidos das traduções em inglês, espanhol, francês, italiano e alemão. Os mais renomados especialistas brasileiros dão respaldo aos conceitos. O primeiro verbete traz a palavra abacaxi, tratado como aroma característico de alguns vinhos brancos jovens. O último, na letra "z", apresenta a zurrapa, o vinho estragado, de má qualidade, seguido das traduções: pricked wine, paint stripper, vino (inglês dos EUA) ou plonk (Reino Unido). Vinucho, zupia e peleón (Espanha); vinasse, vinelle, pinard, pipi de chat (França); vinaccio (Itália) e krätzergros (Alemanha). Em "Adamado", aprendemos que o termo é usado em Portugal para designar um vinho doce e suave, próprio para as damas. Como tradução temos, respectivamente: sweetish, dulce e suave, doux, dolce e morbido e süs und sanft. DC de 17/08/2012

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Assyrtiko, a rainha de Santorini.

A autóctone assyrtiko é a cepa de 80% dos vinhedos de Santorini, uma das Cíclades, responsável por vinhos brancos de qualidade que vão ganhando o mundo graças às apreciadas características de alta acidez e mineralidade de solo vulcânico. Neste agosto, com o início da colheita, a ilha vive uma verdadeira onda de festas (panigyria), incorporando nas celebrações gastronômicas e religiosas a massa de turistas de verão. Nos anos 80, a produção ainda era de vinho barato, vendido para misturas, e, como diz um analista local, "os vinhedos eram sacrificados no altar do 'quarto para alugar' e do 'mini market'", referindo-se ao boom imobiliário. Nos últimos anos, com novas gerações à frente dos negócios, a vitiviniticultura se profissionalizou – há pelo menos 10 vinícolas de respeito – e passou a ser reconhecida como grande reforço à vocação turística da ilha. Quem visita hoje Santorini verá que as parreiras de chão, retorcidas e moldadas como pequenos ninhos (invenção fenícia contra as ventanias), estão por toda parte, dos organizados platôs da vila de Pyrgos aos terrenos mais ou menos escarpados. Foram plantados ainda, sem cerimônia, entre hotéis e restaurantes. A tradicional Canava Roussos de Ioannis Roussos, fundada em 1836, mantém alguns dos seus pés na vizinhança do sítio arqueológico minóico de Akrotiri. A Boutari tem instalações modernas em Megalohori (foto). Além da Assyrtiko, a Aldani e Athyri são as duas cepas brancas que participam no blend dos regulamentados vinhos Santorini. Entre as variedades tintas, os destaques são a Mantilaria e a Mavrotragno. As raras Voudomato, Katsano, Gaidouria, Flaskia, Potamisi, Mavrathyro e Aitonyhi, entre quase 4 dezenas de cepas locais, também começam a ser vinificadas, em pequena escala. Antes dos brancos, Santorini sempre vendeu seu Vinsanto, vinho de sobremesa escuro e forte. No final do século XIX, os russos compravam quase todos esses vinhos doces. Mas já há rosés de qualidade, como o da vinícola Artemis Karamolegos, que pode ser harmonizado com pratos sofisticados dos restaurantes Elia, na praia de Kamari, ou do célebre 1800, em Oia, este comandado pelo arquiteto-restaurador Ioannis Zagelidis. A verdade é que os arqueobotânicos de plantão ainda têm uma pergunta sem resposta sobre a viticultura na tormentosa Santorini: como pôde a varietal Assyrtiko sobreviver milhares de anos, mesmo depois da grande erupção de 1.600 AC que destruiu tudo por lá, transformando a própria cara da ilha. Certo mesmo é que a parreiras de Assyrtiko encontradas hoje em Santorini são filhas legítimas da mesmíssima planta que por ali estava há muito mais de 3 mil anos, escreveu o estudioso americano Curt Christopher Freesa, da Universidade de Cincinatti. P.S.: A importadora Vinci tem dois desses ícones brancos no seu catálogo – Kallisti e Santorini. DC de 10/08/2012

quarta-feira, 4 de julho de 2012

O memorável claret de Keats

Clareteamos e champanhamos até as duas. Assim ousou o poeta Byron ao descrever uma noitada em Londres, dando poder de verbo ao claret e ao champagne que, com o Porto, formavam uma espécie de tríade de vinhos apreciados pelos ingleses. É certo que alguns desses românticos do início do século XIX não foram grandes gourmands – Lord Byron vivia de biscoitos, Wordsworth dizia se alimentar com paisagens e contemplações, "talvez eu coma para me persuadir que sou alguém", escreveu Keats – , mas quando se tratava de vinhos... Sabiam, entretanto, como o paladar (a relação deste sentido com a vida das pessoas) podia servir de lição para julgamentos estéticos de outras naturezas, analisou Denise Gigante, da Universidade de Stanford, em Taste – a Literary History . Keats caiu de amores pelo claret e, sempre que podia, tinha o "sensual", "refrescante", "que não briga com seu fígado", o "pacificador" claret em sua taça. Numa das cartas que escreveu para seu irmão George, o poeta compara: alguns vinhos pesados transformam o homem em Silenus, o claret o faz um Hermes. O pintor Benjamin Haydon deixou registrado em seu diário um "pecado" do jovem poeta. Keats cobriu sua língua com pimenta-caiena para alcançar "o frescor do claret em toda a sua glória". Longe de ser um mero anglicanismo, como diz o crítico inglês Hugh Johnson, o uso da palavra claret é uma instituição inglesa que perdura. Vinho tinto de Bordeaux, com predonimância da uva Merlot, o claret nunca tem mais de 12,5% de álcool, é seco, levemente tânico, muito refrescante. Como claret, esse vinho aparece nos mais antigos registros da Berry Brod & Rudd, que há mais de 3 séculos está em operação na Saint James's Street, 3. Mas pode ser hoje encontrado em marcas próprias de supermercados, com o subtítulo Red Bordeaux, escreve Johnson. Trata-se do mesmo claret que foi servido em 28 de dezembro de 1817 no jantar promovido por Haydon para receber Wordsworth, Keats, o ensaísta Charles Lamb (ele é autor do célebre ensaio "Dissertation on Roast Pig") e o explorador Joseph Ritchie. O que se comeu, bebeu e discutiu nesse encontro foi registrado nos diários de Haydon e serviu de base para um romance-histórico apaixonado de Penelope Hughes-Hallet, The Immortal Dinner - A Famous Evening of Genius and Laughter in Literary London, 1817 . Na mesa das discussões – a derrota de Napoleão, a nova poesia, as pinturas de Haydon, o mecenato, os frisos do Partenon, Shakespeare –, um microcosmo da vida intelectual londrina pouco mais de dois anos após Waterloo. DC de 21/6/2012

Celebrada carga do Westmorland

O Museu Asmolean, em Oxford, organizou na última quarta-feira (27/6) uma degustação de queijo parmesão com vinhos italianos – apenas um dos eventos paralelos da exposição The English Prize: the Capture of the Westmorland . O que tem uma coisa a ver com a outra? É que a exposição traz à cena toda a carga que o navio mercante inglês Westmorland carregava quando, em janeiro de 1779, foi capturado por dois navios de guerra franceses, na rota Livorno-Londres.O Westmorland foi conduzido ao porto de Málaga e lá foram revelados tonéis de anchovas, azeitonas, alcaparras, mais biscoitos, tecidos, vinhos (entre eles, Madeira) e 37 magníficas "rodas" de Parmigiano-Reggiano. Além desses alimentos, o navio levava 50 engradados com pinturas, gravuras, aquarelas, esculturas, mapas e uma verdadeira biblioteca, toda bagagem "de recordação" pertencente a jovens ricos e da nobreza inglesa acumulada durante um "Grand Tour" de estudos pela França e Itália.Um desses jovens tinha despachado uma coleção de gravuras do mestre Piranesi. A exposição, na verdade, ilustra essa prática de formação. A carga tinha sumido de vista, mas havia uma pista: o maior lote fora vendido, em 1784, para o rei Carlos III da Espanha e este o integrou à coleção real, tudo devidamente registrado. No final dos anos 1990, pesquisadores acabaram o rastreamento da carga – o famoso quadro "A Libertação de Andrômeda por Perseu", de Anton Mengs, por exemplo, estava em São Petersburgo. Já os perecíveis queijos, destes que são produzidos com capricho no vale do Po desde a Idade Média, certamente duraram menos que as obras de arte. E podem muito ter sido apreciados com bons vinhos. Se a captura do Westmorland tivesse sido hoje, os produtores do Parmigiano-Reggiano indicariam desde clássicos Barolo e Brunello de Montalcino a vinhos locais como o DOC Colli de Parma, um honesto Lambrusco ou até vinhos da uva Monica di Sardegna. DC 29/06/2012

sexta-feira, 15 de junho de 2012

De Lattara para toda a França

Traços de vinhedos da Idade da Pedra foram escavados por arqueólogos franceses em Port Ariene, colados a uma das muralhas da portuária Lattara dos romanos. O sítio está localizado em território da atual Lattes, 5 km ao sul de Montpellier, província de Hérault, na tradicional região vitivinícola de Languedoc-Roussillon, sul da França. Os especialistas acreditam que o desenvolvimento da vinicultura local se deu principalmente a partir do século III a. C., o que não significa que o cultivo das uvas não fosse conhecido séculos antes – a presença de sementes não mente. A profusão de ânforas de vinho encontradas em antigas casas e armazéns em Lattes, por sua vez, tem confirmado a grande influência da Massalia grega (atual Marselha) no comércio mediterrâneo não só de vinhos, mas de outras commodities agrícolas. Não há dúvidas sobre o gosto dos latterenses pelo vinho de Marselha, servido em peças (crateras, taças) importadas de Atenas, mais tarde vindas de Roma. Esses serviços em terracota estão hoje à mostra no Museu Arqueológico Henri Prades, em Lattes, batizado em homenagem ao pesquisador pioneiro. O projeto agora é pesquisar como se deu "a transferência da cultura de vinho" dessa área para o resto da França, explica o arqueólogo molecular americano Patrick McGovern, da Universidade da Pennsylvania. Ele vai apoiar as pesquisas de rastreamento que começam a ser feitas por Benjamin Luley e Michael Dietler, da Universidade de Chigaco. Eles estão debruçados nos vestígios enológicos encontrados nessa região lagunar, cruzamento de culturas desde 600 a. C. – de fenícios e etruscos a gregos e romanos. O Languedoc-Roussilon é uma das maiores regiões vinícolas do mundo (283 mil hectares), com mais de 20 mil pequenos agricultores em ação, a maioria fornecendo suas uvas para cooperativas (caso de Hérault). Durante anos, a região produziu um tinto pálido, vin ordinaire, explica o crítico inglês Hugh Johnson, atualmente animado com produtores de primeira geração, que retomaram posições nas colinas onde os romanos plantaram alguns dos primeiros vinhedos de toda Gália. Hoje a mais importante appelation é a Languedoc, que desde 2006 substitui a denominação Coteaux du Languedoc. DC de 15/06/2012

quinta-feira, 7 de junho de 2012

La Mozza de Batali

Rabo de cavalo, bermudão, crocs laranja nos pés, o chef Mario Batali monta na sua vespa para cumprir uma agenda movimentada em Nova York, muitas vezes longe da cozinha. De avião, percorre todo o globo, seja como estrela de eventos gastronômicos ou para conferir o forno da pizzaria em Los Angeles, verificar a cozinha da nova casa em Singapura ou o manejo dos belos vinhedos de Maremma, onde fica La Mozza, sua vinícola italiana. Esse americano de Seattle, com passagem rápida pela Cordon Bleu, não vê incompatibilidade alguma em ser um grande cozinheiro (é um “tomatólogo” de respeito capaz também de criar odes ao Prosecco e à Itália dos ancestrais) e um bem-sucedido homem de negócios, em dobradinha com Joe Bastianich. O premiado Babbo Ristorante e Enoteca, em Greenwich Village, e o Del Posto são os carros-chefes de uma lista de 15 restaurantes por eles operados em todo os EUA. Batali ainda arranja tempo para escrever bons livros de culinária (Molto Italiano: 327 Simple Italian Recipes/Ecco/2005) é um deles, sobre comida italiana caseira). Espírito de celebridade, gosta muito dos flashes e de uma TV. Tem gente que não perde um só programa Iron Chef America (Food Network), que tem Batali como um dos astros. Assim, não se sabe qual dos títulos o deixou mais contente: o de homem do ano da revista GQ ou de “outstanding chef” 2005 do James Beard Awards, respeitável instituição de assuntos gastronômicos do seu país. Sintonizado às novas tecnologias, REM e U2 direto no seu ipod, Batali ajudou a criar e a desenvolver o aplicativo para iPhone, iPad, iPod touch e Android com a chamada Mario Batali Cooks! E faz bons vinhos!, acrescentaria. A vinícola La Mozza foi criada em 2000, empreendimento com Joe e Lidia Bastianich. São 36 hectares no cantinho sudoeste de Maremma, 45 minutos de carro de Montalcino, na Toscana. Batali explica o terroir que exploram com afinco. Maremma é uma área mais seca do que as colinas no centro da região. Ali as chuvas são esparsas já que a Ilha de Elba (a de Napoleão) funciona como anteparo. Em Maremma, a vinicultura é pois levada com uvas de clima quente. Nas garrafas de I Perezzi, o blend é feito com a local Morellino di Scansano (o nome local da Sangiovese em Maremma), Syrah, Alicante e uma pitada de Colorino e Ciliegiolo. Já no vinho Aragone, a Sangiovese também é misturada à Syrah e Alicante, mas entra na composição a Carignan para a criação do que Batali chama de "supermeds" (em contraste com os famosos supertoscanos). DC de 8/6/2012

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Torta Dobos e vinícolas de charme

Conhecer a vitivinicultura italiana é como enfrentar uma Torta Dobos, aquela obscena, clássica e deliciosa especialidade vienense criada por um padeiro húngaro e que virou emblema depois de passar pela mesa dos Habsburgos. Você tem de, inevitavelmente, começar apreciando camada por camada, aceitando o fato de que a única saída é, paradoxalmente, mergulhar dentro dela. A imagem é do escritor americano Matt Kramer (Wine Spectator), em Making Sense of Italian Wine (Running Press Book Publishers/2006) e cai como uma luva sobre o recém-lançado Vinícolas de Charme – Itália (Inbook/2012), editado por Claudio Schleder , com textos de Patrícia Jota e Breno Raigorodsky, que também empresta consultoria técnica ao projeto. Para esse recorte de charme, que incluiu 50 vinícolas – do Piemonte à Sicília, taças em profusão na Toscana de Marchesi Antinori – foram consideradas a qualidade e especialidade dos vinhos nelas produzidos, mas, mais do que isso, como explicam seus autores, entraram em conta a beleza e o capricho dos vinhedos, a tradição no manejo dos parreirais, a história das localidades visitadas, o acolhimento de quem faz vinhos com alma. Mas é preciso lembrar que há um critério jornalístico, de serviço, já que vinhos das casas descritas podem ser encontrados nos catálogos das nossas principais importadoras. A seleção proposta é um bom início para entender uma Itália com perto de um milhão de produtores (de todos os calibres), 350 cepas "autorizadas", 329 vinhos DOC e 73 DOGC (Denominazione di Origine Controllata e Garantita), distribuídos num mapa de desenho intrincado que pode levar o viajante desavisado quase à loucura. Não é preciso dizer que muitas vezes a tradição (ou a quebra inteligente desta) leva ao charme, o que significa a inevitável inclusão neste livro de vinhos de um ícone como Angelo Gaja, que revolucionou o estilo dos tintos do Piemonte, e garrafas de Vietti e Pio Cesare, para ficar na terra dos Barolo. Entre as vinícolas de charme da Toscana, está Castello di Ama, na zona do Chianti Clássico, onde as barricas de vinho dividem modernamente espaço e paixão com arte contemporânea. Da Sicília, Donnafugata, seus orgulhosos vinhedos de uvas autóctones e uma ligação de nomes e rótulos que evocam a ilha de Lampedusa e O Leopardo(a entrada Donnafuggata poderia ter explorado este aspecto de charme). Com o mesmo espírito, a InBook já editou Vinícolas de Charme - Argentina, Brasil, Chile e Uruguai, sobre os vinhos top do Cone Sul, e Champagne & vinhos borbulhantes. P.S.: Vale sempre o crédito: Claudio Schleder, editor experiente e requintado, trouxe o pop e o vanguardismo de Andy Warhol e sua NY para a versão brasileira da revista Interview, criada com Richard Raillet, ao som de Rolling Stones, em dezembro de 1977. DC de 1/6/2012

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Ensaios do melhor "enógrafo"

Os ensaios sobre vinhos escritos pelo romancista americano Jay McInerney têm informações precisas, dados culturais relevantes, boa dose de serviço sobre vinhos, mas são, antes de tudo, literatura. Talvez por isso, "o último Fitzgeraldiano", autor do best-seller Bright Lights, Big City, baseado em Manhattan, seja considerado também o melhor "wine writer" dos Estados Unidos. Seus primeiros textos sobre vinhos apareceram na revista House & Garden (Condé Nast), em 1999, desafiando os esnobes de plantão com "um jornalismo gonzo", como definiu a crítica do The Guardian. Hoje assina no The Wall Street Journal, sem perder verve e estilo. Quem teria a ousadia de comparar vinhos e prestar tributos de maneira urbana e automobilística como esta: "Se Dom Pérignon é o Porsche 911 Carrera do mundo do vinho, então Dom Pérignon Rosé é o 911 Turbo". Ou: "Se o Domaine Romanée-Conti é a Ferrari de Borgonha, Jadot é a Mercedes". Arriscaria dizer que McInerney é o Anthony Bourdain da crítica de vinhos por sua irreverência e seu trato muitas vezes politicamente incorreto. O chef e escritor Bourdain virou celebridade ao expor o barbarismo dos bastidores dos restaurantes, resumido num alerta: "Nunca coma peixe na segunda-feira". De McInerney temos: "Não tome vinhos em eventos de caridade". O vinho em McInerney não é uma entidade em redoma de vidro: há sempre personagens e suas circunstâncias. É isso que lemos também na sua terceira coletânea de artigos The Juice - Vinous Veritas (antes publicara Bacchus & Me: Adventures in the Wine Cellar, em 2000, e A Hedonist in the Cellar: Adventures in Wine, em 2006). É preciso revelar que Jay McInerney passou a levar seu próprio vinho nos jantares anuais em prol dos portadores de Mal de Alzheimer. DC de 25/05/2012

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Quenturas do Château Al Gore

As principais variáveis do aumento do teor alcoólico dos vinhos produzidos na Califórnia são temas frequentes do escritor e professor de política econômica internacional Mike Veseth, em seu blog The Wine Economist. Veseth, entretanto, vai muito além da condenação do crítico de vinhos Robert Parker. Ao pontuar com altas notas vinhos mais alcoólicos e mais amadeirados, o americano Parker tem sido demonizado pela mudança de perfil da bebida produzida em todo o mundo nas últimas décadas, da Califórnia a Bordeaux. Sobre o tema, não faltou nem mesmo Parker satirizado em debochada história em quadrinhos publicada na França (abaixo). O fato indiscutível é que uma plaquinha "RP 94", por exemplo, colocada junto a vinhos em lojas e supermercados, pode estimular vendas. E o produtor corre atrás de mercado mudando até mesmo as cepas de seu vinhedo e a agenda de sua propriedade. Mas a difusão massiva de um estilo Parker de beber não é tudo. Devido ao aumento da temperatura em vários pontos da Califórnia, as uvas colhidas têm naturalmente mais açúcar e, por extensão, produzem vinhos com mais álcool. O professor Veseth detalha uma teoria produzida no que batizou com bom humor de "Château Al Gore", lembrando que o ex-vice-presidente dos Estados Unidos ganhou o Nobel depois de dar publicidade trágica ao aquecimento global. "O aquecimento (e Al Gore) parece um tema muito controverso na mídia, mas as mudanças climáticas e o vinho não são: eu não conheço ninguém no negócio do vinho [nos EUA] que não considere essa mudança seriamente", escreve Veseth. O professor recorre a estudos do geógrafo Gregory A. Jones, da Southern Oregon University, que identificou alterações climáticas na geografia do vinho, principalmente na faixa oeste dos EUA. Isso significa que regiões hoje já de clima quente, como Lodi, na Califórnia, especializada em uva Zinfandel, pode ficar excessivamente sufocante para vinhos de qualidade. Em áreas com Pinot Noir, como Santa Bárbara e o Vale Willamette, em Oregon, os produtores terão de adaptar seu plantio com varietais mais amigas do calor, como Merlot, Malbec, Syrah ou Cabernet. A essas alterações inescapáveis soma-se um problema da saúde dos vinhedos, relatada a Veseth por viticultores locais. Em meados dos anos 1980, para lutar contra uma invasão da temível Phylloxera, agricultores tiveram de enxertar suas plantas em raízes supostamente mais resistentes. Novas raízes associadas a mudanças no trato dos vinhedos afetaram o amadurecimento das uvas e os níveis de açúcar subiram – enfim um fator realmente agrícola compondo o quadro das bombas alcoólicas que vêm da Califórnia. (http://wineeconomist.com/) Diário do Comércio de 18/5/2012

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Rancheiros na Casa Branca

Washington, Jefferson e Franklin, os pais mais famosos da nação americana, foram também responsáveis por certa revolução na cozinha dos Estados Unidos. Todos esses presidentes ligados ao campo eram grandes defensores da sua agricultura e já pensavam em plantios sustentáveis. Como bons "foodies", gostavam de comer e escreviam receitas próprias. Mas, graças à vivência internacional, passaram também a valorizar a importação de alimentos (azeite italiano, mostarda francesa, passas de Smirna, mortadela de Bolonha...) e a apreciação de vinhos (franceses, italianos, portugueses...). Essa invasão de ingredientes e artifícios da arte do bem viver e sua incorporação à cultura americana é contada em detalhes por Dave DeWitt em The Founding Foodies (Sourcebooks/2010). Washington escreveu sobre a importância do milho, tinha uma receita particular de cerveja; Franklin passou a apoiar a cruzada de Parmentier pela batata; Jefferson deixou para a posteridade até mesmo uma receita de sorvete. O amor de Jefferson pelos vinhos foi atestado não só pela recheada adega (não podiam faltar Bordeaux, Borgonhas e Madeira), mas pela tentativa de cultivar seus próprios vinhedos no retiro em Monticello. Jefferson aprendeu a apreciar os bons vinhos na sua temporada como ministro plenipotenciário na França e nas visitas de estudo e prazer por vinhedos na Europa. Sobre os vinhos de Jefferson a literatura é farta, pois ele era um verdadeiro maníaco da escrituração da Casa Branca e suas anotações foram esmiuçadas pelos historiadores. DeWitt fala também dos vinhos de George Washington. No jantar de despedida do presidente, em 14 de setembro de 1787, 55 "gentlemen" sentaram-se à mesa na City Tavern para um jantar regado com 54 garrafas de Madeira, 60 de claret, 22 de porter (cerveja preta), 8 de cidra, 12 de cerveja e 7 grandes "baldes" de punch. Depois, Washington partiu para o rancho em Mount Vermont, onde passou a cultivar frutas. DC de 11/05/2012

sexta-feira, 4 de maio de 2012

De trirremes e simpósios

Em Agrigento, na Sicília então dos gregos, havia uma casa conhecida como "trirreme". Trirreme é o nome dos barcos de guerra que compunham, por exemplo, a flotilha de Temístocles, com a qual gregos venceram os persas de Xerxes na decisiva batalha de Salamina (480 a.C.). A casa recebeu essa alcunha porque certa vez alguns jovens deram uma festa, ficaram muito bêbados e começaram a jogar na rua uma série de móveis e objetos da casa. Mais do que inebriados pelo vinho, diziam lutar contra uma tempestade no mar bravio e, seguindo a ordem de um capitão inexistente, jogavam ao mar a carga supérflua. O caso foi perpetuado pelo grego Timaeus de Taormina, na segunda metade do século IV a.C. "A estória pertence a uma rica tradição grega das metáforas marítimas da comunidade dos simpósios”, escreveu James Davidson, da Universidade de Warwick, na Inglaterra, no livro Courtesans & Fishcakes – The Consuming Passions o f Classical Athens (HarperPerennial/1999). “O alto mar representa a imensidão do vinho, a obliteração de pontos de referência”. O contrário dessa cena descontrolada poderia ser vista nos simpósios, a parte dos jantares da elite grega reservada à bebida e aos deleites filosóficos. Eram realizados em locais muito bem delimitados da casa, com mobílias (os famosos triclínios) apropriados, lista escolhida de convidados (de 7 a 11 pessoas, raramente 15), serviço rigoroso (o vinho diluído em água, servido da direita para a esquerda entre convidados dispostos quase em um círculo) e outras regras apropriadas para aquilo que os antropólogos gostam de apontar como modelo de socialização à mesa. Davidson, especialista em história clássica, reconstitui em detalhes não só a rotina dos simpósios e seus vinhos, mas de todos os deleites (da comida ao sexo) dos antigos atenienses. Muitos estudiosos já fizeram isso, é certo, mas com Davidson a pesquisa foi além dos textos clássicos, valorizando o material "vulgar", em tempos criticados em que a Arqueologia e suas “pedras” passaram a dominar e a guiar os estudos históricos e até mesmo sociológicos. Não à toa, o livro de Davidson foi elogiado pelo Washington Post como a última parte de uma trilogia, encabeçada por O Nascimento da Tragédia, de Nietzsche, e The Greeks and the Irrational, de E. R. Dodds. DC de 4 de maio de 2012

terça-feira, 1 de maio de 2012

Robert Parker sob a lupa de Tom Wark

Robert Parker e o fim de uma era na Califórnia. Com esse título provocante, o blogueiro Tom Wark postou nos últimos dias em seu "Fermentation (http://fermentation.typepad.com/), vários textos sobre a trajetória de Robert Parker, esse americano discreto que continua sendo o crítico de vinhos mais polêmico e influente de todo o mundo. Vale a pena conferir as análises feitas por Tom Wark, todas baseadas em uma compilação de dados das degustações e das notas atribuídas por Parker aos vinhos californianos. Wark é um respeitado profissional de marketing da indústria do vinho e um dos blogueiros pioneiros da área. Bem informado não só sobre lançamentos, sabe tudo sobre os bastidores das indústrias e milita pelo livre comércio de vinhos entre os estados americanos. Ele também é o organizador do bem-sucedido Wine Blog Awards. Sobre Parker, o blogueiro reconhece a importância do ranking de 100 pontos criado pelo crítico – ferramenta hoje por trás de muitas decisões de compra em todo o mundo. E valoriza o êxito de sua publicação Wine Advocate. O que Wark observou, entretanto, é que Parker continua a ser a mais importante fonte de opinião para os vinhos de elite e mais caros do mercado americano. Mas, escreve o blogueiro, "cedeu o trabalho de avaliação dos vinhos mais populares e mais baratos a seus competidores [Wine Spectator, Wine & Spirits Magazine and the Wine Enthusiast], que têm ido muito além nessa estrada, criando avaliações de fácil compreensão para um número maior de pessoas". Legítima decisão de Parker, diz Wark, enfatizando, entretanto, que hoje apenas uma pequena porcentagem dos mais interessantes e procurados vinhos (no caso, os californianos) passam por seu palato e pena. DC 25/nov/2011

Embaixadores da Puglia

Luigi Rubino, o jovem presidente do Consorzio Puglia Best Wines, quer ver os vinhos da sua região no Sul da Itália (no salto da bota) alcançar novos mercados, como os da China, Índia, Norte e Leste Europeu. No Brasil, os rótulos da cepa Primitivo já há alguns anos encontram boa acolhida. O consórcio reúne cinco importantes e tradicionais casas vinícolas da Puglia: Tenute Rubino, Cantine Due Palme, Conti Zecca, Candido e Consorzio Produttori Vini di Manduria, todas com o compromisso de exportar cada vez mais vinhos de qualidade e fazer de suas uvas autóctones Primitivo, Nero di Troia e Negroamaro (esta última "especialidade" dos vinhedos de Salento) embaixadoras de sua terra. Vinte e um produtores participaram no final de novembro do Apulia Wine Identity, evento com apresentação internacional de 200 rótulos. O chef-celebridade Mario Batali, com vários restaurantes em Nova York e todo mundo, é um dos grandes entusiastas da uva Primitivo, a mesmíssima Zinfandel americana apreciada em vinhos californianos. Do alto de seus indefectíveis crocs alaranjados, considera esse vinho, que na Itália é bastante rústico e frutado (e nos EUA é mais untuoso e amadeirado), um par perfeito para pastas com molho de tomate e montanhas de queijo Pecorino. A boa relação qualidade e preço fez com que passasse a fazer parte das adegas de boas pizzarias da Cidade. Durante muito tempo, uvas e mosto feito na Puglia alimentaram outras regiões produtoras de vinhos da Europa. Agora, com o consórcio em plena atividade e a grande capacidade de produção dessas cinco vinícolas (mais de 11 milhões de garrafas por ano), é hora de vender os vinhos com alma e qualidades próprias. DC de 2/dez/2011

A mesa de Balzac, com ostras e Vouvray

O escritor Theóphile Gautier conta que Honoré de Balzac comemorava a entrega de manuscritos a seu editor, na Paris da primeira metade do século XIX, bebendo quatro garrafas de Vouvray, o vinho branco parceiro das ostras. Não é à toa. O romancista nasceu em Tours em 1799, ano do golpe de Napoleão, e conhecia muito bem o cenário e os sabores da região de vinhedos do Vale do Loire. O tempo de Balzac é o tempo do protagonismo da Paris da gastronomia e dos restaurantes, que ele descreve em detalhes na sua monumental Comédia Humana. Balzac tratou de questões que não estavam presentes na obra de romancistas anteriores, conta a escritora Anka Muhlstein no seu livro-ensaio Balzac's Omelette (Other Press/2011). Anka conta que Balzac subverteu o lema do famoso gastrônomo Brillat- Savarin ("diga o que comes que eu te direi quem és"), acrescentando o "onde você come e a que horas do dia". Diferentemente de Guy de Maupassant, que descrevia a degustação de ostras apelando para a poesia de seu amalgamento com a língua do consumidor, Balzac estava interessado na maneira como um jovem fazia o pedido do prato e com que intenções. O escritor mesmo vivia entre frugalidade e excessos. Quando estava em plena criação literária, água, bom e forte café e frutas (peras e pêssegos) bastavam. Depois das provas na gráfica, o quadro mudava: era a vez de bons restaurantes com centenas de ostras (e garrafas de branco), costeletas de carneiro, pato, peixe da Normandia... Depois, mandava a conta para seus editores. Com mesas repletas de Madeira, Tokaj, Champagne, vinhos de Bordeaux e da Borgonha, os personagens de Balzac honravam tanto Savarin quanto o político Cambacères, lembrado também por convencer Napoleão a acabar com a proibição de tráfego de ostras do mar a Paris, de trem. DC 13/jan/2012

Moska, de Moschofilero

Os americanos gostam de simplificar o nome das uvas e de seus vinhos. O Cabernet Sauvignon virou Cab. O Zinfandel ganhou o carinhoso apelido de Zin. Pois agora o celebrado escritor Mark Oldman resolveu publicar no seu mais novo livro (Oldman's Brave New World of Wine/WWW Norton/2010) uma espécie de carta aberta aos vinicultores gregos para que simplifiquem o nome de seu apreciado Moschofilero para Moska, a fim de facilitar a vida do consumidor americano e garantir sua popularidade no país. Mark Oldman lembra que a austríaca Grüner-Veltiner, difícil de pronunciar, é muitas vezes nas lojas abreviada para Grüner, assim como a Gewürztraminer é condensada em Gewürz. Não bastasse isso, o escritor sugere que ao lado de Moska, apareça a inscrição "resin free", para indicar que esse vinho não tem nada a ver com a retsina ou os vinhos feitos na época de Homero! Coisa de americano. A Moschofilero que ganhou o gosto dos apreciadores de vinho no mundo todo – é comparada à uva Pinot Grigio, mas ainda mais aromática – é plantada no Peloponeso, sul da Grécia, mais exatamente nas colinas de Mantinia. A vinícola Boutari, há 130 anos em operação, é responsável pela reabilitação do vinho grego na última década, incluindo a inclusão da Moschofilero – ou Moska, como quer Oldman – no mercado internacional. Resta saber o que o autor americano pretende para a uva do vinho "The Unpronounceable Grape", da moderna vinícola húngara Hilltop Nesmély. A cepa, cruzamento da local Irsai Olivér com a Gewürztraminer, foi batizada de Cserszegi Füszeres ! DC 20/jan/2012

Les Vignerons de Cartago

O ampelógrafo tunisiano Fethi Askri, um especialista da viticultura do seu país, bufa como um francês quando se atribui aos romanos os ensinamentos fundamentais do cultivo dos vinhedos e da elaboração de vinhos no Magreb. Afinal, os fenícios levaram as vinhas para Cartago há 3.500 anos, portanto bem antes da chegada dos romanos e de Catão. Askri conta que quando estes saqueram Cartago, em 146 a.C., "queimaram esplêndidas bibliotecas, mas tomaram cuidado para traduzir o Tratado de Agronomia de Magon", escrito que inspirou posteriormente o manejo das parreiras que os romanos plantaram em cada canto do seu Império. Magon, cartaginês guru da viticultura tunisiana, não à toa é homenageado no rótulo de vinhos tintos produzidos ali. Domaine Magon, em Mornag, com instalações novas e imaculadas, é uma vinícola que espelha bem a revolução silenciosa que vem ocorrendo nessa indústria de vinhos. Trata-se de uma espécie de joint-venture feita com alemães (na base de 66%/34%), com aprimoramento da qualidade de todo processo. O Magon Majus (2005) ganhou uma medalha de ouro na Alemanha, em 2010. Vencer a herança "seca" da presença muçulmana é tarefa também de outro vinho de sucesso, o Muscat Sec de Kelibia, leve e aromático, "charmoso acompanhante para peixes". Os vinhedos de Muscat estão plantados praticamente na praia, na vizinhança da cartaginesa Kerkouane (séc. V a.C.), à nordeste de Túnis. Hoje a união de viticultores locais (UCCV) é responsável por 65% dos vinhos tunisianos, com destaque para a aposta nesses vins de cépage. PS1: Indispensável para um panorama da viticultura no continente africano é a leitura do livro Africa Uncorked - Travel in Extreme Wine Territory (The Wine Appreciation Guild/2002), dos escritores aventureiros John e Erica Platter. PS2: Escolhidas garrafas de vinhos tunisianos são importadas pela Saca Rolhas Vinhos Finos, de Curitiba, e apresentados na carta da Gusta Bar Café e Gastronomia (R. Desermbargador do Vale, 1.090, na Pompeia), comandada com inteligência pelo espanhol Fernando Lancho. DC 3 de fev/2012

Nos navios da rica Holanda

Os holandeses são cervejeiros alegres e contumazes. Mas durante o século XVII, a Época de Ouro da Holanda, tinham que se equilibrar como podiam numa sociedade de moral calvinista, mas que não abria mão da riqueza que lhes garantia excepcional qualidade de vida. Um fiel retrato dessa sociedade foi feito pelo historiador Simon Schama em O Desconforto da Riqueza (Companhia das Letras/1992). Destilados (principalmente o gim da cidade portuária de Schiedam) e vinhos franceses e do Reno também tinham seu papel na alegria das cidades, ao lado de pratos que não dispensavam o pão, a manteiga, o queijo e o arenque. O iluminista Diderot, décadas depois, escreveria que os holandeses eram "alambiques vivos". E os caricaturistas de plantão não perdiam a oportunidade de desenhá-los como sapos levados por ondas de gim. "Em 1613 havia 518 cervejarias só em Amsterdã, uma para cada 200 habitantes", relata o historiador. Os vinhos, mais na mesa da elite do que nas tavernas, cumpriam seu papel como importante mercadoria dos navios mercantes que cruzavam os mares. "Os holandeses transportavam vinhos de Bordeaux para a Alemanha e a Suécia; os vinhos do Reno para a Rússia, a Leste, e a Espanha, a Oeste; vinhos de Málaga, na Espanha, e de Marsala, no Sul da Itália, para a Inglaterra; vinhos de Borgonha para o Báltico", escreve Schama, descrevendo o rentável ziguezague da lucrativa Companhia das Índias Ocidentais. Acabar com uma atividade próspera em nome de objetivos morais era impensável. Não foi fácil para o holandês do Século de Ouro "encontrar o caminho através de uma vida transbordante de riquezas sem incorrer na ira de Jeová". DC de 27/jan/2012

A tropa se ergue no vinhedo

Exibido no Festival de Filmes do Vale do Napa, o documentário No Wine Left Behind, do cineasta Kevin Gordon, trouxe à cena um bonito caso de superação. Os protagonistas são americanos veteranos de guerra enfrentando a batalha do desemprego. Suas armas: as tarefas numa vinícola. O sargento Josh Laine serviu no Iraque em duas ocasiões e foi ferido três vezes, uma delas durante a primeira Batalha de Fallujah. Ao voltar do front, em 2008, trazendo com ele todas as angústias da guerra, encontrou na sua Livermore natal, na Califórnia, outro inimigo: o desemprego. Só saiu da inércia depois que a namorada despertou seu interesse pelos vinhos da terra. Nascia a aventura de buscar nova ocupação com a criação de uma vinícola, Lavish Laines Winery. Para ajudá-lo a tocar o empreendimento, Josh Laine convocou outros marines na mesma situação de desconforto. O documentário de 15 minutos de Kevin Gordon mostra o começo "garagista" dos ex-soldados e a escalada para o gerenciamento de uma vinícola nada a dever em relação à próspera vizinhança, com seus vinhos das uvas Chardonnay, Sauvignon Blanc, Gerwurztraminer e Zinfandel. O filme, que será exibido em associações de veteranos em todos os Estados Unidos, vai servir de exemplo motivador e inspirador para quem volta da guerra. O Vale de Livermore é uma das mais antigas regiões produtoras de vinho da Califórnia e teve papel fundamental no desenvolvimento da indústria de vinhos daquele estado, segundo informações do site da Lavish Laines Winery. Missionários espanhóis plantaram os primeiros vinhedos na região em meados do século XVIII. O vinho sempre foi fundamental nos ritos religiosos. Nos anos 1840, os primeiros vinhedos comerciais foram cultivados até a implantação, algumas décadas mais tarde, das vinícolas comandadas por pioneiros como C.H. Wente, James Concannon e Charles Wetmore. Livermore é hoje reconhecida como uma das Avas (American Viticultural Area) do país. DC 18/nov/2011

A corrupção de bebeu na Lei Seca

Depois de uma infinidade de estudos e obras acadêmicas sobre a Lei Seca nos Estados Unidos (1920-1933), eis que um documentário é rodado para ampliar e dar novo foco à discussão. Prohibition, de 5 horas e meia de duração, tem a assinatura de dois reconhecidos diretores, Ken Burns e Lynn Novick, e já foi ao ar no início do mês, em três dias seguidos, nos canais PBS. A série de depoimentos faz uma ligação senão inédita, pelo menos bastante segura entre a história da Lei Seca e a corrupção contemporânea. As forças que criaram e se opuseram ao "desastroso experimento" americano são muito mais complexas do que se pensa. Afinal, esse período da história americana foi feito não só de grandes delitos, capitaneados por Al Capone ou Lucky Luciano, ou pelos mascarados da Klu Klux Kan que não titubearam em queimar "desobedientes" vendedores de álcool, ou pelos políticos corruptos e subornáveis em toda parte... Na verdade, foi burlada por dezenas e dezenas de pequenos comerciantes e produtores de vinhos e bebidas, americanos ou imigrantes, muitos deles inicialmente favoráveis aos movimentos de temperança, mas que, da noite para o dia, se sentiram atingidos pelos braços draconianos da Lei. A luta contra o alcoolismo, um dos males da sociedade americana do século 19, foi de certo modo sequestrada, e ficou muito distante de suas intenções iniciais, explica Ken Burns. Prohibition explora os problemas nascidos na América pré-industrial, com as bebedeiras públicas, os abusos domésticos e a pobreza. Mostra ainda como a chegada dos imigrantes, entre eles os primeiros puritanos desembarcados em Massachusetts – colocaram mais lenha na fogueira, com seus hábitos e costumes relacionados à bebida. Os saloons fizeram sua parte. Por isso esse período teve de conviver com uma "mistura espantosa de generosidade e ganância (os vinhos fermentados para consumo em família e missas e aqueles misturados com química explosiva da Jamaica e que acabavam com o sistema neurológico de suas vítimas), sinceridade e hipocrisia, lascívia e puritanismo". DC de 11/out/2011

"Grande" dicionário do vinho do Porto

O "grande" do título é uma homenagem aos autores do Dicionário Ilustrado do Vinho do Porto (Editora de Cultura/2011/566 páginas), Manuel Pintão e Carlos Cabral, que produziram uma obra indispensável a todo apreciador de vinhos e, mais ainda, para aqueles devotos da requintada bebida de mais de 300 anos de história. Além de verbetes técnicos, apresentados de maneira concisa, a viagem dos autores é muito mais abrangente. "Este vinho conseguiu ultrapassar a barreira de um produto obtido da fermentação de uvas maduras e passou a ser referência constante na História, Filosofia, Sociologia, Economia, Agronomia, Enologia, Folclore, Literatura e Arte", escrevem. Foram atrás de todos esses componentes culturais, interessados na alma de quem trabalha nos socalcos, resgatando nomes de velhas ferramentas de tanoeiros, rótulos antigos, documentos e gravuras de época (na imagem abaixo, agricultores do Douro dançam a chula rabela), compondo um panorama muito vivo da região. Manoel Pintão é português e durante décadas esteve à frente da Casa Manoel D. Poças Jr, respeitada casa de Porto. Faz dupla com Carlos Cabral, pesquisador apaixonado da história da viticultura, grande embaixador do vinho do Porto no Brasil, consultor de vinhos do grupo Pão de Açúcar desde 1997. DC de 28/out/2011

O vinho dos chefs

A rotina dos chefs nas cozinhas e adegas incorpora um sem número de exercícios de harmonização entre bebidas e pratos que entram em cena nas mesas de seus restaurantes. Por serem referenciais, essas dicas de quem está com a mão na massa são garimpadas no mundo inteiro. A bela fotógrafa Melanie Dunea, que vive em NY, acaba de lançar seu segundo livro sobre o assunto, My Last Supper – The Next Course (Rodale/2011), no qual pérolas de harmonização são apresentadas com expressivos portraits de cada chef. A pesquisa de Melanie começa com a pergunta básica: "Como seria sua última ceia na Terra?" O brasileiro Alex Atala, com tatuagens à mostra, faz uma sintética ode ao arroz com feijão – o "vício brasileiro". E diz que uma cachaça aromatizada com frutas e ervas da Amazônia acompanharia sua última refeição. Heston Blumenthal, do Fat Duck inglês, não dispensaria um roast beef com um Château-du-Pape, Domaine Beaucastel 1990. Paul Bocuse, à frente de uma série de restaurantes em Lyon, França, entre eles o Auberge du Pont de Collonges, escolheu o tradicional pot-au-feu como última refeição, acompanhado de pão rústico com linguiças de Lyon. Na taça, um cru de Saint-Amour, da safra mais recente, ou um Beaujolais, na clássica combinação: pratos da terra com os vinhos da terra. DC 9/dez/2011

Vinhos de Roma e o pedágio da corrupção

Os soldados romanos nunca dispensaram uma boa taça de vinho. No final da República, uma legião de peso, com cinco mil soldados, consumiria até mais de meio milhão de galões de vinho por ano. Imagine então a logística necessária para não deixar faltar a bebida às sedentas tropas na Gália e na Espanha, em meados do primeiro século d. C. . Quatro desses bravos batalhões supostamente mantinham a ordem e a autoridade na Gália (Asterix e Obelix contestariam o adjetivo!). Um número igual de legionários estava estacionado na região norte da Espanha. Como a produção de vinho na Gália da época era limitada, grandes navios carregados de ânforas chegavam a esses pontos com vinho transportado diretamente de regiões produtoras da Itália, principalmente do Latium e da Campânia (área do mapa em marrom). "Os grandes lucros do comércio de vinho, tanto para militares como para civis [Roma tinha cerca de um milhão de habitantes nos primeiros séculos da nossa era], atraíam inevitavelmente a corrupção", analisa o pesquisador Stuart J. Fleming, em seu livro Vinum – The Story of Roman Wine (Art Flair/2001). Fleming conta que o Senado romano chegou a editar um código (Lex Cornelia de Repetundis) que punia com mais rigor os governadores de província envolvidos em falcatruas desse mercado. A história registrou que o grande advogado Marcus Tullius Cicero foi convocado para defender Marcus Fonteius, que foi o pretor da Gália entre 75-73 a.C.. O ex-governador da província foi denunciado por corrupção, em crimen vinarius. As acusações eram de que cobrava "taxas de trânsito" de cada ânfora "importada" transportada por terras gálicas. Quanto mais distante o desembarque, mais caro o "pedágio". De Narbo (atual Narbonne) a Vulchaclo (moderna Carcassone), o imposto era de 1 denarius. Até Tolosa (a Toulose de hoje), subia para 4 denarii. A cobrança era irregular porque os vinhos da Itália eram tão romanos como a própria Gália. Sabe-se que o talentoso Cícero livrou Fonteius da acusação, não sem antes chamar os gauleses de mentirosos e bêbados. DC de 16/dez/2011

As garrafas e os dias de Gerald Asher

Nenhuma das tendências do mundo do vinho dos últimos 40 anos passaram despercebidas pelo olhar crítico do escritor inglês Gerald Asher. É por isso que o lançamento de seu mais recente livro, A Carafe of Red (University of California Press/2012), está sendo comemorado entre os apreciadores de vinho em todo mundo. Os textos elegantes e antecipadores de A Carafe of Red foram publicados ao longo de sua carreira, principalmente na celebrada coluna Wine Journal, que manteve na revista Gourmet. Reunidos agora, juntamente com alguns ensaios de muita erudição, compõem um panorama dessa indústria que não dispensa emoções. Mesmo resistentes ao tempo, os textos foram devidamente atualizados. Asher, que nos anos 60 importava vinhos para sua Londres natal, continua na ativa, agora como colaborador das revistas Decanter e da The World of Fine Wine. "Lendo seus artigos, constatamos que pouca coisa é realmente nova no mundo do vinho", escreveu Don Winkler no blog i-winereview, querendo dizer que Asher foi pioneiro no registro acurado e na crítica de certas práticas atuais como, por exemplo, a do vinho biodinâmico, a do barricamento excessivo empreendido por algumas vinícolas e os exageros dos jargões e da cruzada xiíta dos harmonizadores. O mais cativante nos textos de Asher, entretanto, é a maneira com que o vinho circunstancial abraça a perspectiva histórica. Como ele escreve: "A memória que alguém tem de um vinho raramente é um abstração de aroma e sabor. Quase sempre ele parece refletir tão bem um certo contexto que mais tarde nunca temos certeza se lembramos das circunstâncias por causa do vinho ou do vinho por causa das circunstâncias" em que foi apreciado. DC de 10/fev/2012

O desembarque de John Woodhouse

Enquanto cardumes cintilantes de grandes atuns cruzavam as águas da costa oeste da Sicília, o mar agitado ao redor das ilhas egadinas era iluminado por raios e trovões de uma grande tempestade. Era 1772. E o mau tempo obrigou o mercador inglês John Woodhouse a desembarcar apressadamente em Marsala, pensando estar pisando em solo de Mazara del Vallo, seu destino. Esse pequeno incidente, com boa vontade, entraria nos anais da navegação local. Acabou, entretanto, aportando nas páginas da história do vinho.Ao percorrer Marsala, já com tempo bom, o comerciante de Liverpool notou que o terreno e o clima daquela cidade, onde cresciam as uvas nativas Grillo, Inzolia e Catarratto, eram muito semelhantes aos de Portugal e Espanha, de onde saíam os celebrados vinhos do Porto e Jerez (o seu Sherry). No mesmo ano, chegou a enviar para seu país 600 galões do vinho de Marsala, que caiu no gosto inglês e posteriormente foi muito popular entre os súditos da rainha Victória. Woodhouse não perdeu tempo e montou uma vinícola própria, usando técnicas de fortificação semelhantes às soleras do Jerez dos espanhóis. O almirante Nelson teria passado certa vez em Marsala com sua esquadra para "alimentar" os marinheiros com o vinho forte e generoso, isso antes da Batalha de Trafalgar, contra Napoleão. Esse vinho virou então vinho de vitoriosos. Thomas Jefferson mantinha Marsala bem secos na sua adega em Monticello. Outros negociantes vieram seguindo os passos de John Woodhouse, entre eles Benjamin Ingham e John Whitaker. Mas nenhum impulso ao Marsala foi mais forte do que o do calabrês Vincenzo Florio, a partir de 1832. A empresa que fundou, hoje integrada a uma holding, ainda faz bons vinhos. Florio era grande empreendedor. Além da vinícola, esteve à frente de uma das maiores indústrias de pesca da Sicília, a ilha que não dispensa entre suas delícias gastronômicas o simples e saboroso atum empanado e frito em bom azeite. DC 17/fev/2012

O Éden de Popelouchum

Randall Grahm começou outra "jornada espiritual". O dono de uma das vinícolas mais cultuadas da Califórnia, a Bonny Doon, que ganhou o mundo com seus rótulos Big House e Cardinal Zin (vendidos há alguns anos a preço de ouro), está plantando agora um vinhedo perto de San Juan Bautista, cidade originada de antiga missão jesuítica, fundada em 1797, a 15ª das 21 implantadas na Califórnia, num arco de fé e de vinhos. Quando Grahm fala em jornada espiritual, é porque espera que o novo vinhedo (ele prefere tratá-lo como um grande jardim, um Éden onde crescem algumas uvas) o reconecte com a Natureza e com sua própria simplicidade. Grahm é um vitivinicultor holístico, que segue os mandamentos da cultura biodinâmica e os ensinamentos do educador Rudolf Steiner. Suas teorias, poesias, ensaios sobre terroir foram registrados em Been Doon So Long - a Randall Grahm Vinthology, livro editado com capricho pela Universidade da Califórnia. Os textos sobre a jornada espiritual, encontrados em seu blog, mostram toda a verve pela qual tornou-se celebridade. A ideia em San Juan é estudar detidamente qual a variedade ou conjunto de cepas capazes de expressar as qualidades únicas daquele terreno. Para isso não poupará hibridizações e experiências genéticas, colocando a mão em sementes, pisando na terra, parando de "andar nas nuvens", como ele mesmo diz. A propriedade em San Juan foi batizada de Popelouchum, palavra indígena da tribo dos Mutsun que alude a paraíso. Grahm tem seguido os conselhos dos índios, como o jejum de contemplação e interação com o território dos vinhedos. E não despreza os devas, guias da natureza capazes de indicar as melhores ações de equilíbrio, harmonia e ordem para um perfeito jardim. Enquanto os novos frutos não aparecem, os fãs da Boony Doon degustam o cult Le Cigare Volant, uma mistura de Mourvèdre e Carignane dos vinhedos de Contra Costa. http://www.beendoonsolong.com/ Dc de 24/fev/2012

O livro da vida de um colecionador

Michel-Jack Chasseuil ainda não conseguiu o famoso Sauternes Yquem 1847 para sua coleção. Mas não pensa em desistir. Desde que começou a construir sua adega, em 1985, com o objetivo de reunir exemplares de todas as grandes safras de vinhos da França e os melhores vinhos de todo mundo, Chasseuil sabe que sua missão é como um sacerdócio. Com caixas de Pomerol Feytit-Clinet, da propriedade que tem o nome do filho, Jérémy Chasseuil, ele zanza pelos chateaux da França em busca de trocas. E vai a leilões de olho em barganhas. Ex-funcionário da indústria aeronáutica Dassault, ex-colecionador de selos, diz não ter fortunas, depende às vezes de sorte para conseguir as as preciosas garrafas indicadas em bons livros e pelos amigos, especialmente pelo escritor-enólogo inglês Hugh Johnson e o especialista Michael Broadbent, durante anos à frente dos leilões da Christie's de Londres. As garrafas que consegue vão para a "mais bela adega do mundo" em La Chapelle-Bâton, pequeno vilarejo perto de Deux-Sèvres. "Meu Porto Noval Nacional de 1931 é talvez a única garrafa remanescente do mundo, em perfeito estado de conservação. Não a troco nem pela Monalisa", diz Chasseuil em seu livro 100 Garrafas Extraordinárias da Mais Bela Adega do Mundo (Editora Gaia e Editora Boccato/ 2010), que reúne histórias das conquistas de seus mais importantes e curiosos rótulos, de safras que vão de 1735 a 2005. Brilham em sua adega um conhaque Napoléon de 1805, exibido em companhia de duas cartas assinadas pelo imperador. Mas há vinhos modernos, como o Screaming Eagle 1997, um vinho cult do Vale do Napa, cuja produção não passa de 1.200 garrafas anuais, que recebeu a nota 100/100 do crítico Robert Parker. O colecionador também exibe um Marsala de1830 e um Madeira da safra de 1870, ambos ainda bons para consumo. "Quando já não estão bons, viram relíquias", diz, agendando degustações com o filho Jérémy (enólogo formado em Bordeaux) e o neto, para quando fiizer 90 anos. Para elogiar seu Borgonha La Tache 1971, Grand Cru, o colecionador escreve: "um nariz sublime, uma boca de cetim, um dos mais suntuosos vinhos do planeta deve ser guardado para grandes ocasiões. Peru com castanhas e pato Auguste Escoffier deveriam acompanhá-lo em uma marcha triunfal". Destaque do livro e da adega, o Montrachet Ramonet 1979 é saudado como o melhor vinho branco seco do mundo".

A Malbec que cruzou os Andes

A uva de coração dos argentinos, a Malbec, tem sua história ligada a uma experiência chilena. Domingo Sarmiento (presidente da Argentina entre 1868 e 1874), no seu exílio político forçado por Justo Urquiza (militar e que também foi presidente do país), acabou conhecendo a Quinta Normal de Santiago, uma fazenda agronômica dedicada a experiências com árvores frutíferas e videiras, onde ensinavam renomados especialistas europeus. Ao retornar do exílio, Sarmiento convenceu as autoridades de Mendoza a repetirem a experiência chilena. Era 1853 quando o agrônomo francês Michel Aimé Pouget cruzou os Andes com mudas e sementes para criar a versão argentina da Quinta Normal. Entre as várias cepas, a maioria francesas, a Malbec, originária da região de Cahors. O relato é do jornalista argentino Gustavo Choren em seu Gran Libro do Malbec Argentino (Planeta/2007). Os vinhedos cuidados por Pouget vingaram no solo de Mendoza, principalmente em Luján de Cuyo, considerada hoje a terra de excelência dos vinhos Malbec. O primeiro vinhedo da variedade foi reconhecido em 1865, em Panqueua, ao norte da capital da província. Esse vinhedo de Panqueua era propriedade da Bodega González Videla, que existe até hoje e é a mais antiga de Mendoza, escreve Choren. Os historiadores argentinos creditam o desenvolvimento da viticultura na região à chegada da estrada de ferro a Mendoza e San Juan, terra natal de Sarmiento. O trecho andino (mais tarde conhecido como "Gran Oeste Argentino" e "Buenos Aires al Pacífico") alcançou Mendoza em 1884. Os trens cumpriam sua função de transporte entre as províncias, mas tinham um papel ainda maior, "como agressivo fator de colonização e assentamento dentro da própria província". A primeira vinícola a se instalar ao sul do rio Mendoza foi a Norton, criada pelo engenheiro inglês Edmund J. P. Norton, que desembarcara em Mendoza com a febre ferroviária. Conta-se que apaixonou-se por uma moça nativa tanto quanto pela região. Cerca de um século depois, as Bogedas Norton foram compradas pelo empresário dos cristais Gernot Langes Swarovski. Em 2006, a Norton entrou para a lista das 20 melhores vinícolas do mundo, segundo a revista Wine Spectator. Hoje a empresa é administrada por Michel, filho de Gernot, que desenvolve um minucioso trabalho de mapeamento de terroir, identificando microparcelas dentro de cada um dos 1.200 hectares plantados. http://www.norton.com.ar/ DC de 30/7/2011

A volta triunfal dos pingüinos

Houve época em que o "pingüino", uma jarra destinada ao vinho tinto da casa, era presença obrigatória, principalmente no típico "bodegón porteño". Pois esse pichet dos argentinos está de volta não só em bairros populares de Buenos Aires, onde nasceram, como também invadiram bares da moda e restaurantes de Palermo Hollywood e Palermo Soho. Em Palermo Viejo, um batalhão de "pingüinos", no mais clássico desenho portenho, está de prontidão na cultuada loja Calma Chicha, em prateleiras ao lado de outras peças de design. Nas mesas, entretanto, é preciso estar atento ao conteúdo das jarras coloridas, de vidro ou porcelana, para que a celebração do vinho argentino de qualidade seja completa. Esse parece ser o desejo do jornalista argentino Damián Weizman, especialista em vinhos do Diário Los Andes e um dos grandes entusiastas da volta desse objeto que é uma verdadeira instituição portenha. No site de Los Andes, Damián brinca: esse pinguim não é K (pingüino era um dos apelidos de Néstor Kirchner). Acrescento: e nada tem a ver com a campanha pessoal de Cristina Kirchner, atual ocupante da Presidência de La Nación, que tem retratos seus colados a cada ponto de ônibus da capital. O movimento dos "pingüinos", não orquestrado, embalado informalmente pelos amantes do vinho argentino, acaba entretanto sintonizado com as várias campanhas oficiais de valorização do vinho do país, a começar pelo difundido slogan: "El vino nos une". O mote esteve estampado até a semana passada nos cartazes que promoveram a 10ª Festa da Colheita de Mendoza, um evento já tradicional, com calendário artístico de mão cheia, que tem sua apoteose no palco plantado nas barbas do Aeroporto Internacional de Mendoza. Em 2000, graças à iniciativa do Fondo Vitivinícola Mendoza, um vinhedo de 3 hectares da uva Malbec passou a ser cuidado na área do aeroporto, como um portal de boas-vindas aos apreciadores do vinho mendocino. O palco é cercado pelas videiras. Artista da festa, o vinhedo também é iluminado pelos holofotes. A partir de 2005, um vinho da "uva aeroportuária" começou a ser engarrafado com o rótulo Destino, mais uma peça em nome do vinho argentino. Os comandantes dos voos que ali chegam não errariam ao anunciar: "senhores passageiros, estamos pousando no vinhedo do Aeroporto Francisco Gabrielle, de Mendoza.

Todos os Borgonha de Bill Nanson

Aqueles históricos monges beneditinos da Côte d’Or, que no ano de 910 deram início ao cultivo e manejo dos mais antigos vinhedos da Borgonha, certamente não imaginariam que suas terras fossem acabar nas mãos de tantos proprietários, cada um usando seu nome na garrafa, isso depois de a Revolução Francesa dar abrupto fim a um modelo engenhoso de agricultura. É esse mundo apaixonante dos mais de 1.200 climats da Borgonha – algumas áreas têm poucos metros de extensão – que Bill Nanson apresenta no recém-lançado guia The Fine Wines of Burgundy – o sexto da série da Fine Wine Editions, idealizada pelo crítico inglês Hugh Johnson, com fotografias de Jon Wyand. Bill Nanson, químico de profissão e sem nenhum passado no mercado de vinhos, é especialista independente em vinhos da Borgonha, que compra e degusta com verba do próprio bolso, como faz questão de destacar. As visitas anuais que há mais de 15 anos empreende às propriedades da região faz de seu guia um documento atualizado sobre a viticultura da região, que “saiu da letargia dos anos 80” para entrar num novo círculo virtuoso onde pesam a competição entre os viticultores e a redução do manejo químico dos vinhedos. As primeiras 70 páginas do guia, com informações históricas e geológicas precisas, em prosa elegante, garantem a importância do livro. Mas é no perfil vivo de dezenas de proprietários – dos mais célebres aos mais caprichosos, do diretor do Domaine de la Romanée-Conti a Sylvain Pataille, de Marsannay-La-Côte – que encontramos a Borgonha diversificada florindo na sua cama oceânica milenar. P.S.: Os outros guias da Fine Wine Editions já exploraram as regiões vinícolas da Califórnia, da Toscana, de Bordeaux, da Rioja e da Champagne.

O novo jogo dos Mondavi

O império dos Mondavi foi vendido para o conglomerado internacional Constellation Brands em dezembro de 2004. A Califórnia tremeu. E não à toa. A vinícola Mondavi, uma das mais tradicionais do país, foi responsável pelo forte desenvolvimento da viticultura dos Estados Unidos nas últimas décadas. Com Robert Mondavi à frente do negócio, o Vale do Napa passou a admirar a elegância e a complexidade dos vinhos de Bordeaux – não à toa a nova administradora tratou de manter o contrato de produção do celebrado Opus One, uma parceria inaugurada por Mondavi com os Rothschild de Bordeaux. Michel esteve no centro do furacão que acabou culminando na venda da empresa, uma história com cara de tragédia grega que expôs sua rivalidade com o irmão Timothy. A jornalista Julia Flynn Siler, do The Wall Street Journal, conta esse drama em em The House of Mondavi (Gotham, 2007). Michel, entretanto, deu a volta por cima, inspirado talvez no patriarca Cesare Mondavi, que vindo de Marche, na Itália, em 1906, iniciou o império como comerciante. Michel, além de produzir rótulos próprios em outra propriedade da família – o Cabernet Sauvignon M Michel é um deles, ao lado do Spellbound do filho Rob Jr. – , está à frente da Folio Fine Wine Partners, empresa que distribui e representa vinhos de qualidade de todo mundo, com destaque para os italianos. Quando Cesare Mondavi chegou aos Estados Unidos, foi trabalhar numa mina de ferro em Minnesota. Com as economias, ele e a mulher montaram um saloon, logo afetado pelo sombrio período da Lei Seca. Foi no clube italiano local, com os amigos, onde a bocha era o passatempo dos imigrantes, que Cesare encontrou uma alternativa de negócio. No período da Lei Seca, cada família estava autorizada a manejar 4 barris de "suco de fruta" por ano. Cesare pensou que podia abastecer essa demanda, buscando uvas na Califórnia, a Zinfandel entre elas, e transportando-as para as famílias italianas em Minnesota. Nos engradados, aplicava o rótulo que lembrava seu jogo de predileção. Mais tarde, já com o fim da Lei Seca, se instalou no Vale do Napa. O neto Wilson hoje está por ali investigando os vinhos que caem bem no paladar dos americanos.

Carta aberta de Ciro Lilla

O importador de vinhos Ciro de Campos Lilla divulgou nesta semana uma carta aberta alertando que "o mundo do vinho no Brasil vive momentos decisivos". Pede reação dos entusiastas da bebida às pressões de produtores gaúchos sobre o governo, que pode adotar medidas protecionistas como novo aumento de impostos sobre os importados e cotas limitadoras de importação. Ciro Lilla, mais do que um negociante de vinhos, presidente das importadoras Mistral e Vinci, é um animador cultural de respeito. Abriu para o paladar do brasileiro uma nova paleta de vinhos de várias regiões do mundo, organiza degustações e eventos enogastronômicos exemplares e é, induscutivelmente, anfitrião impecável dos inúmeros vitivinicultores internacionais que vêm ao Brasil trazer muito mais que garrafas, conhecimento. A indignação de Ciro Lila começa pela carga tributária. Os produtores nacionais pediram ao governo um aumento de 27% para 55% no imposto de importação. Também querem limitar a importação pelo estabelecimento de cotas para a importação de cada país. Ficariam livres apenas os vinhos argentinos e uruguaios. "Incrível: cotas de importação para proteger ainda mais um setor, o de vinhos finos nacionais, que cresceu cerca de 7% em 2011 — ou seja, nada menos do que quase o triplo do crescimento do PIB brasileiro!", escreve. "Sem contar que "de cada 5 garrafas de vinho consumidas no Brasil, entre vinhos finos, espumantes e vinhos comuns (produzidos com uvas de mesa), nada menos do que quase 4 (77.4%) já são de vinhos brasileiros!" E tem burocracia atrapalhando o consumo: "nem bem foi implantado o malfadado selo fiscal e já se pede agora que o rótulo principal do vinho, o rótulo frontal, contenha algumas das informações que hoje já constam dos contra-rótulos obrigatórios". Segundo Lila, "é importante que se compreenda o quanto antes que o vinho não é uma commodity, onde o único fator a influenciar a compra é o preço. Vinho é cultura, é diversidade, é terroir, é arte. É como o mercado de livros: o brasileiro lê pouco, assim como bebe pouco vinho. E dificultar a venda de livros de autores estrangeiros não apenas não serviria para aumentar a venda de livros de autores brasileiros, como certamente inibiria ainda mais o hábito da leitura. O mesmo ocorre com os vinhos. É uma ilusão achar que encarecendo o vinho importado o consumidor vai substituí-lo automaticamente pelo vinho nacional". Veja a íntegra da carta no site da Mistral (www.mistral.com.br)

Tributo a Ronald Searle

Os esnobes do mundo do vinho já tiveram como algoz o cartunista Ronald Searle, um dos grandes artistas gráficos britânicos, que morreu na virada do ano, aos 91 anos, e continua ainda hoje recebendo homenagens pelo mundo. Nascido em Cambridge, Searle morreu em Draguignan, Haute Provence, região de belos vinhedos, onde vivia desde 1975, cercado por uma adega medieval com 500 garrafas, bebidas sem pretensão, como parte do ritual à mesa. O humor cáustico do artista, em publicações de prestígio como Life, The New Yorker e Le Monde, atingia toda a classe política, os costumes ingleses (St. Trinian's fez sucesso ao criticar o sistema educacional inglês) e, ultimamente, as mazelas do mundo globalizado. Duas coleções de desenhos especiais (Something in the Cellar e Illustrated Winespeak) satirizam os críticos de vinho. Segundo ele, com seu linguajar cifrado, o crítico faz tanto mal ao mundo do vinho quanto à própria língua. Os desenhos publicados nesta página foram inspirados em jargões autênticos de degustadores de plantão. http://ronaldsearle.blogspot.com.br/ DC de 30/março/2012

Lagostins e Verduzzo de Piave

Nem só de pão e vinho vivem as últimas ceias. Na representação da cena bíblica na Igreja de São Jorge, em San Polo di Piave, cidadezinha nas colinas ao norte de Veneza, província de Treviso, os lagostins estão salpicados na comprida mesa comandada por Jesus. Esses crustáceos de vermelho intenso estão ali no afresco de Zanino di Pietro porque a região sempre teve na iguaria um de seus pratos de resistência e abundância. No referencial Food, misto de dicionário e história da gastronomia, o jornalista americano Waverly Root chega a elevar San Polo de Piave (banhada pelas águas geladas do rio Piave que corre para o Adriático) como "capital do lagostim". Na "Última Ceia" pintada por Zanino, em 1466, é indiscutível a importância iconográfica do vinho, servido entre os apóstolos. São cinco de vinho tinto, uma de branco. E mais uma vez o pintor mostra que foi inspirado pelos costumes locais, principalmente em relação ao vinho branco da cena. Piave desde sempre foi uma região vitivinícola. Até hoje os tintos da uva Raboso, ricos e agressivos em taninos, são produtos de distinção regional. Dentro do mesmo registro campanilista, de amores e orgulhos locais (a campanile, o sino da igreja da cidade como símbolo), o vinho branco servido por um dos apóstolos bem poderia ser um Tocai ou Verduzzo, conhecidos de Zanino di Pietro, pintor da escola veneziana. A análise é de John Variano em original ensaio em Tastes and Temptations – Food and Art in Renaissance Italy (University of California Press/2009). A uva Verduzzo é muito cultivada na província de Treviso. Os produtores locais explicam que as origens sardas do vinhedo parece ser diferente do Verduzzo Friulano (região Friuli-Venezia-Giulia), tido como antiquíssimo e nativo do Friuli. O atual vinhedo de Treviso se expandiu sobre a margem esquerda do rio Piave a partir do início do século XX. DC de 13/004/2012

Nicolas, depuis 1822

Quem flanar por Paris à procura de ... Paris, vai certamente encontrar uma dessas lojas com fachada cor de vinho e um letreiro em amarelo: Nicolas. E não à toa. A casa de negócios de vinho, estabelecida no centro de Paris desde 1822, "um ano após a morte de Napoleão", está hoje em mais de 500 pontos na cidade e redondezas, sem contar as mais de 80 lojas que atravessaram o Canal da Mancha a partir de 1989, para conforto dos ingleses. Hoje, a cadeia pertence ao Grupo Castel, iniciado com negociantes e engarrafadores de Bordeaux, no final dos anos 40, e atualmente um dos maiores produtores de vinho do mundo. O jornalista e escritor Frank J. Prial, colunista de vinhos do NYTimes durante 25 anos, escreveu um texto nostálgico em Remembrances of Things – Paris – Sisty Years od writing from Gourmet (Modern Library Food/2005) em que lembra que, até os anos 60, os pequenos triciclos motorizados da Nicolas cruzavam a cidade de cima a baixo entregando vinho, da mesma maneira como o leite era entregue no Brasil, por exemplo. Mas já muito diferente da Paris de Emile Zola (1840-1902). Comportamento dos tempos do autor de O Ventre de Paris (romance protagonizado por um mercado, Les Halles), ainda nos anos 70 uma lojinha na Rue San Paul, anunciada com o cartaz Vins Du Sud-Ouest, vendia seu vinho em bombas como as de um antigo posto de gasolina. Os números em cada bomba (11, 11,5 e 12) indicavam a dosagem alcoólica de cada vinho. Prial chegou a comprar um pouco de vinho branco para preparar em casa moules marinière. A Nicolas na verdade foi a primeira casa a vender o vinho não por volume, mas em garrafas. A casa também tem no currículo o lançamento do Beaujolais Nouveau em Paris e – o mais importante – sempre deu espaço na sua lista de vinhos aos Vin de Pays, selecionados entre os pequenos produtores que trabalham com qualidade e boas uvas. As ações comerciais da Nicolas ao longo de sua trajetória quase bicentenária envolveram inúmeros artistas e cartazistas. Algumas das peças que lembram um pouco da sua história foram reunidas no livro Nectar as Nicolas (Editions Herscher). Num dos cartazes aparece o emblemático triciclo: "Livraisons rapides à domicile". No site da casa é possível encontrar os catálogos dos vinhos comercializados desde 1928. DC de 20/04/2012

Na Hungria, com Neruda e Asturias.

Nunca a comida e os vinhos húngaros foram tão exaltados quanto nas páginas de um livro escrito a duas mãos por Miguel Angel Asturias e Pablo Neruda. Comiendo en Hungria (Lumen/Barcelona/1974) é uma edição em espanhol, ilustrada por artistas húngaros, com toda a vivacidade e cores da páprica, do gulash e dos vinhos tintos e doces da região – obra preciosa para quem aprecia livros de gastronomia. O guatelmateco e o chileno visitaram a Hungria (não só Budapeste, mas várias cidades “das planuras”) no começo dos anos 1970 e encontraram na culinária a alma do país. Na Hungria, “confluência dos pimentões e da páprica”, não se pode ignorar as sopas, os repolhos "em toda a sua arte", os pescados finos do lago Balaton... Mesa que não dispensa os bons vinhos brancos da terra e os doces Tokay, “fogo de âmbar, luz de mel, caminho de topázio”. E há mais “fulgores da Hungria” nas odes dos dois escritores. Um dos vinhos incensados, o Riesling de Badacsony, sai do solo vulcânico perto do Balaton. Neruda defende a degustação de toda escala de valores do Tokay, "da seca transparência à delirante doçura". Na relação do poeta, também "Medoc de Villány, Tokay Furmint, Aszú, Szamorodini transparentes e sorridentes, doces ou airados, chamas de honra que alargam a vida, como o vinho de Somló”. Asturias fez um brinde à centenária e rústica taverna Híd, no coração de Buda, onde o prosista húngaro Gyula Krúdy (1878-1933) tomava seus vinhos e, arregaçando as mangas da camisa, entregava-se ao prazer de um assador de carnes. Nos salões elegantes do café-restaurante Hungaria, construção art nouveau do início do século XX, outro encontro dos dois esacritores com a boa gastronomia: especialidades húngaras, como os cogumelos empanados, frango recheado, medalhões assados em fogo vivo, depois servidos sobre vários tipos de pimentões, tudo recoberto com “pörkölt” (um molho à base de cebolas, tomates, páprica e vinho tinto). Essas gloriosas constelações da cozinha local “pedem rios de vinhos", justifica-se Neruda, “vinhos de meio-dia e de crepúsculo”. DC de 27/04/2012