quarta-feira, 28 de abril de 2010

Exaltação e dor nos vinhos de Shakespeare

Falstaff, personagem impagável de Shakespeare em Henrique IV, gordo e alegre "barril de fluidos", já foi comparado ao Sancho Pança de Cervantes, pela exaltação que faz ao vinho e pela disponibilidade vital em relação à bebida. "O saber não é mais do que uma mina de ouro guardada por um demônio, que só vale depois que o Jerez a explora e a põe em obra e uso", filosofa Falstaff nas suas andanças por tavernas do submundo londrino, na companhia do príncipe Hal, futuro Henrique V. Mas o elogio ao Jerez não esconde outras preferências: seria capaz de vender a alma ao diabo em troca de um copo de vinho Madeira e uma coxa de capão. Longe das bufonarias, nas tragédias de Shakespeare o vinho ganha papel para sublinhar momentos de extremo sofrimento ou como venenos mortais. De Marco Antônio a seus homens, sabendo da morte próxima, e querendo até o fim que a amada Cleópatra estivesse por perto: “Morro – rainha do Egito – morro. Dá-me vinho e deixa-me falar um pouco” (Antônio e Cleópatra). Em Otelo e Macbeth, o vinho está a serviço da traição. Assim como o ciumento Iago embebedou Cássio para tramar sua queda, Lady Macbeth vai servir vinho drogado aos guardas do rei Duncan. O plano da rainha para assassinar seu marido: “embriagarei com vinho e a orgia a seus dois guardas, de tal modo que a memória, essa sentinela do cérebro, não será neles mais do que fumaça, e o receptáculo de sua razão um alambique. Quando, saturados pela bebida caírem em um sonho de porcos, semelhante à morte, não podemos levar a cabo você e eu com o indefeso Duncan?” O pesquisador espanhol Miguel Ángel Muro Munilla, em sua alentada obra El cáliz de letras: Historia del vino em la literatura (Fundación Dinastia Vivanco/2006), encontrou na peça Ricardo III, o exemplo acabado da sanguinolência associada à bebida. Shakespeare, ao que parece, “tinha fixação numa imagem, a de um corpo esfaqueado, submerso em vinho”, escreve Munilla. Assassinos enviados por Ricardo para matar o irmão Clarence, combinam a ação: "Dá-lhe na cabeça um golpe com o punho da espada e depois o colocamos num barril de Malvasia, que há no quarto ao lado". O segundo assassino exclama: “Ah! Estupenda idéia! Fazer-lhe sopa de vinho”. Clarence acorda sonado e pede um copo da bebida. Ao que o futuro cínico assassino responde: “Terá bastante vinho, logo mais, Senhor!”


Diário do Comércio de 23/4/2010

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Châteaux futuristas

A arquitetura moderna tem invadido vinícolas de todo mundo, criando com seus traços ousados mais possibilidades para uma educação dos sentidos. Se ao degustar um bom vinho a estética deve entrar em cena, como advoga o filósofo hedonista Michael Onfray, imagine o quanto as sensações têm sido ampliadas num ambiente onde mais elementos da criatividade e inteligência do homem mostram sua beleza. Quando o arquiteto novaiorquino Steven Hall plantou o seu Loisium em um cenário para lá de bucólico, de vinhedos e igrejinhas barrocas, em Langenlois, na maior região vinícola da Áustria, mostrava que no seu espaço também poderia haver uma alma. Decerto não a dos heurigen, tavernas familiares onde vinho jovem é servido de maneira simples, principalmente nos arredores de Viena. Mas de uma outra alma, ligada aos prazeres do vinho inserido em ambiente arquitetônico pensado especialmente para ele. Em Elciego (Álava), na Espanha, o arquiteto canadense Frank O. Gehry, o mesmo do Museu Guggenheim de Bilbao, ergueu um novo edifício para os herdeiros da célebre bodega espanhola Marqués de Riscal. O prédio faz parte de um conjunto batizado de Ciudad Del Vino, um centro de degustação de vinhos, que integra a antiga bodega de Marqués de Riscal, de 1858, a mais antiga da Rioja. A empresa aposta no poder de atração do seu “château do século XXI”. Como o museu de Bilbao, o edifício de O. Gehry é recoberto de titânio, mas desta feita com cores ligadas aos vinhos, chapas rosadas para o tinto, cor de ouro das garrafas da bodega e prata da cápsula das botellas.

http://www.marquesderiscal.com/index.php

http://www.loisium.at/

DC de 16/04/2010

sexta-feira, 9 de abril de 2010

O tinto carcamano de John Fante

Jimmy Toscana menino, mais tarde um jovem, vive e narra o dia a dia de uma típica comunidade italiana de Denver, nos Estados Unidos, em pleno vigor da Lei Seca (1919-1933). Os italianos que desembarcaram na América no início do século foram maltratados pela pobreza, aliciados pelo gangsterismo, pelos preconceitos e viveram dramas recorrentes de crise de identidade. "Fico nervoso quando trago amigos em casa (...) Aqui pende um quadro de Victorio Emanuelle, adiante outro da Catedral de Milão e, ao lado, uma imagem da basílica de São Pedro, e sobre o aparador repousa um jarro de vinho em estilo medieval; está sempre cheio até a borda, sempre vermelho e cintilante do vinho." Jimmy é mais um alter ego do escritor americano John Fante (1909-1983), personagem central dos contos de O Vinho da Juventude, que a Editora José Olympio acaba de publicar, com precisa tradução de Roberto Muggiati. Essa coleção de contos nasceu como Dago Red, em 1940, e começou a ser publicada da forma atual a partir de 1985. John Fante é mais conhecido pelo romance Pergunte ao Pó, celebrado pelos beatniks, especialmente por Charles Bukowski. Fluente, a prosa do autor foi saudada até mesmo por John Steinbeck: é daquelas obras que conseguem universalidade ao falar de uma rotina dura, sem glamour algum, de uma casa num bairro de imigrantes empobrecidos. Dago red, anota Muggiati, é algo como “tinto carcamano” e refere-se ao vinho que os italianos do norte de Denver bebiam durante o período da Lei Seca. Dago era uma palavra ofensiva, pejorativa, contra a qual os italianos e seus filhos lutavam, não só no sentido exato da palavra. O vinho da juventude de Jimmy é a bebida por trás da frequente embriaguez do pai, o pedreiro sem obra a quem restava beber, voltar para casa assobiando La Donna è Mobile e esperar com vergonha, diante de uma mulher exaurida pelos afazeres de casa e do fogão. "Vimos seu rosto, avermelhado, alegre, estimulado, os olhos brilhantes como os de um esquilo. Não estava exatamente bêbado, mas a inclinação do chapéu e o balanço dos ombros nos diziam que não havia poupado no Borgonha". O vinho que pontua, sem nenhum exagero, o livro de Fante é também o vinho da missa, símbolo de toda carga moral e religiosa de seu ambiente – uma comunidade ajoelhada ao catolicismo. Quando o novo padre do colégio de Jimmy foi visitar os Toscana, seu pai seguiu uma rotina imutável, que dava orgulho à casa: o visitante era convidado a descer até a adega cavada na terra onde havia quatro barris de cinquenta galões de vinho – cem galões amadurecidos e cem no processo de fermentação. A subida posterior, com a jarra cheia de vinho fresco e proibido, "as gotículas da espuma ainda borbulhantes", era motivo de júbilo.

DC de 17/4/2010