quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Reguengos de Tabucchi, com sarrabulho

Antonio Tabucchi (1943-2012) foi o mais português dos escritores italianos, um dos grandes contemporâneos, com uma prosa dinâmica, de textos curtos, muitas vezes tragicômicos, que em seus momentos de cumplicidade com Portugal, evoca a toponímia da sua Lisboa, por onde transitam Fernando Pessoa e todos os seus heterônimos, mapa referencial onde também há lugar e tempo para uma mesa, um vinho, um prato regional. E não é à toa que esse cotidiano aflora na obra de Tabucchi: o escritor viveu em Portugal, casou-se com uma portuguesa e estudou com afinco as literaturas moderna e surrealista do país (foi tradutor de Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade para o italiano). Pois em Requiem, uma alucinação (Cosac Naify/2015), eis que aparece, “em nostalgias irremediáveis” (Pedro Mexia), com distinção, com todas as suas letras, o vinho Reguengos de Monsaraz. Ao se encontrar com o falecido Tadeus Waclaw, uma figura de seu passado, com o qual quer tirar algumas satisfações, quebra o gelo primeiramente com taças de champanhe Laurent-Perrier, garrafa comprada na Brasileira do Chiado, o mais antigo café de Lisboa, indicação do “criado do balcão” diante de duas opções. O outro vinho era um Veuve Clicquot, “um bocadinho ácido”. Mais tarde, no restaurante do Casimiro, a conversa franca é acompanhada com Reguengos. “O senhor Casimiro chegou com pão, manteiga e azeitonas. Com o sarrabulho o tinto seria de rigor, disse ele, mas não sei se seu amigo vai gostar, tenho um Reguengos de garrafeira que aconselho vivamente. Para mim vai o Reguengos, decidiu Tadeus. Eu fiz um sinal afirmativo com a cabeça e suspirei: de acordo, vai ser o fim. O sarrabulho vinha numa travessa de barro, daquelas castanhas com flores amarelas em relevo, de tipo popular. À primeira vista tinha um aspecto repelente. No meio da travessa estavam as batatas, alouradas na gordura, e em redor os rojões [os pedaços de carne de porco sem osso,mas com alguma gordura] e as tripas. (...) Eu espetei o garfo num rojão quase de olhos fechados e levei-o à boca. Era uma delícia, uma comida de sabor requintadíssimo”. E Tadeus serviu-lhe mais um copo de Reguengos, pedindo à cozinheira que ensinasse ao narrador, “a este rapaz como é que se prepara um sarrabulho à moda do Douro, de maneira que ele possa voltar à sua terra e fazê-lo na sua própria casa, que lá onde ele mora só se comem esparguetes”. A cozinheira, mulher de Casimiro, ganha um copinho do Reguengos de Monsaraz e passa a receita: “se vossemecê que fazer um bom s sarrabulho tem de preparar a carne na véspera, corta o lombo em bocados regulares e tempera-o com alhos picados, vinho, sal, pimenta e cominhos, no dia seguinte vai encontrar uma carninha vem cheirosa, vossemecê pega um tacho de barro e corta lá dentro a gordura dos folhos, que é como se chama a gordura que liga as tripas, e deixa-a derreter em lume brando, põe a alourar os rojões na banha em lume forte e depois deixa cozer devagarinho. Quando a carne estiver quase cozida, rega-se com a marinada da véspera e deixa-se evaporar. Entretanto, vossemecê corta a tripa e o fígado e frita-os na banha até ficar tudo bem alourado. À parte refoga a cebola picada com azeite e junta-lhe a tigela de sangue cozido. Depois junta tudo no tacho e o sarrabulho está prontinho”. Depois da aventura do sarrabulho, doces amarelos em forma de barquinhos, papos de anjo de Mirandela. E Casimiro trouxe-lhes café e uma garrafa de bagaço. Reguengos de Monsaraz é uma cidade portuguesa, no Distrito de Évora, na região do Alentejo. Sua produção vinícola é conhecida internacionalmente, com rótulos das vinícolas Vinhos ‘José de Sousa’ (adquirida em 1986 pela vinícola José Maria da Fonseca), da cooperativa Carmim (hoje uma das maiores adegas do Alentejo), Herdade do Esporão (uma das mais antigas propriedades demarcadas do sul de Portugal, em 1267), Monte dos Perdigões (propriedade instituída desde antes do século XV), Ervideira, Adega do Calisto, Monte das Serras, São Lourenço do Barrocal e Luís Duarte Vinhos. Vinhos encorpados que aguentam o sarrabulho de Tabucchi e de Tadeus.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

A caligrafia do vinho de arroz

Encharcado com três copos de vinho de arroz, esse fermentado criado na China há milhares de anos, o calígrafo e pintor chinês Zhang Xu (710-750) partia gritando performaticamente em direção ao papel, pincel em punho, e “escrevia” suas letras com descomunal intensidade. Sua “selvagem” escritura cursiva (kuangcao) impressionava a todos. O “louco Zhang”, em plena dinastia Tang, algumas vezes mais embriagado ainda, realizava sua caligrafia depois de entintar seus próprios longos cabelos. (Body art?) Não à toa Zhang foi tema de um poema do filosófico Du Fu (712-770), um dos maiores entre tantos grandes que celebravam a embriaguez: Tao Yanming (365 ou 372-427), Li Bo (701-726) e Su Dongpo (1036-1101). Du Fu escreveu que as “nuvens no papel” produzidas por Zhang só se formavam a partir do vinho. O nome de Zhang “é comumente citado junto com o de um artista jovem, Huai Su (737-798), um monge budista cujo dinâmico estilo de escrita era inspirado por um pesado consumo de cerveja e vinho, que entrou para a literatura como ‘bêbado Su’”, escreve o sinólogo alemão Thomas O. Höllmann em The Land of Five Flavors (Columbia University Press/2014), um estudo cultural atualizado da cuisine chinesa. Outras referências a caligrafias e poemas inspirados pelos vinhos estão em Celebración de La Embriaguez, um pequeno livro de Jacques Pimpaneau, traduzido para o espanhol por Alícia Sánchez (da Coleção El Cuerno de La Abundancia, editado em 2004 por José J. de Olañera). “O desejo que o espírito possa vagar, ascender a outro lugar, libertar-se do jugo da lógica racional e das preocupações cotidianas e penetrar no imaginário está presente em todas as civilizações”, escreve Pimpaneau logo no início do livro. Um letrado chinês citado por ele diz que o ser humano aspira desenvolver uma habilidade que permita a seu espírito ver as montanhas, o mar e viajar por diferentes lugares, sem se mover. Durante algum tempo, as drogas (o venenoso cinabre, por exemplo) foram esse meio, mas na China o vinho logo prevaleceu como “o melhor liberador para conduzir o espírito ao âmbito do imaginário”. Segundo Pimpaneau, “os chineses também viram outra vantagem: o vinho gerava uma atmosfera distendida, as relações humanas se tornavam mais relaxadas em uma sociedade na qual se impunha a rigidez dos ritos”. Wang Xizhi (321-379), “o sábio da caligrafia”, inspirador do “louco Zhang”, conta no prefácio de Poemas Compostos no Pavilhão de Orquídeas, sobre uma histórica reunião de escritores, na qual “taças de vinho e canções nos permitiam expressar nossos mais fundos sentimentos...” Era início do último mês da Primavera do ano 353. E os poetas e artistas presentes ao Festival de Purificação da Primavera colocavam copos de vinho para flutuar em pequenos meandros construídos a partir de um rio de águas claras, corredor de luz no pé das encostas do Monte Kuaiji, perto da cidade de Shaoxing (justamente a região d o mais conhecido vinho de arroz hoje produzido na China). Vinho que navegava poeticamente até ser resgatado e degustado pelos poetas. As caligrafias semi-cursivas do "enófilo" Wang Xizhi agradavam tanto o imperador Taizong, que este, ao morrer, foi para o mausoléu acompanhado dos originais dos Poemas Compostos no Pavilhão de Orquídeas. Como Zhang, Wang também apreciava a inspiração que vinha do vinho de arroz, mas tinha uma escola muito especial. Conta-se que a chave da sua escrita estava na observação do movimento do pescoço de seus lindos e cultuados cisnes.