sábado, 20 de junho de 2020

Marilyn nada frugal




     Nunca se descobriu se todas as rolhas foram espocadas por ela. Sabrage, aquele ritual napoleônico de decepar a garrafa com o afiadíssimo sabre para celebrar vitórias, certamente não houve. Falam em 350 garrafas de champagne, o tanto para encher sua banheira. No centro borbulhante, Marilyn Monroe (1926-1962) e o banho mais sensual da história.
     O glamour de Marilyn era amplificado com uma taça de champagne nas mãos. Tinha uma queda por Dom Pérignon. Nos sets de filmagem, não admitia que substituíssem champagne por suco de maçã. E ela errava muito...  Engolia champagne e, depois, palavras.  O ator Laurence Olivier fez algumas contas para não passar por mentiroso: Marilyn consumiu 20 potinhos de caviar para concluir uma única cena de O Príncipe Encantado (1957), 34 tomadas e dois dias depois da primeira tentativa.
    Em O Pecado Mora ao Lado (1955), a atriz apareceu tanto quanto a senhorita Morris, a personagem. Era Marilyn quem também estava ali, mergulhando as batatas fritas na taça de champagne, ao som de Rachmaninoff e ouvindo Richard dizer que, no café da manhã que ele mesmo prepara, tomou dois whisky sours com um sanduíche de pasta de amendoim. Na harmonização particular da Senhorita Morris, a insinuação das preferências da própria Marilyn: além das fritas, hambúrgueres, comida mexicana, pasta de amendoim, steaks, hot dogs...  O chili, depois de uma e outra sessão de fotos, matava bem a sua fome.
     Em lua de mel no Japão, em 1954, Marilyn e o astro de baseball Joe DiMaggio (que mesmo aposentado faria tantos home runs fossem necessários para estar sempre ao lado dela; ele a amava) foram fotografados degustando uma sopa de cebolas no restaurante Royal Host de Fukuoka. O mundo todo soube. O rebatedor do New York Yankees, com a colher na mão, não poderia imaginar que teria de dividir a atenção da mulher com soldados americanos sediados na Coreia, pertinho dali. Precisavam ser animados.
     Marilyn só caiu no gosto pelas pastas italianas durante o curto casamento com DiMaggio. Foi com um spaghetti al dente, escalopinhos de vitela e anchovas com pimentão que ele a conquistara dois anos antes do casamento, em encontro no Villa Nova, seu restaurante preferido em Los Angeles. Contam que para agradar DiMaggio, Marylin passou a preparar pastas em casa. Repetiria a dose, com pratos judaicos, para outro marido, o dramaturgo Arthur Miller, com quem se casou em 1956. Na casa da mãe judia de Miller, Marilyn entrou na cozinha para ajudá-la com a canja de galinha e as bolinhas de matzá, estas feitas com farinha de pão ázimo, a “penicilina judaica” que é também sinônimo de conforto nas mais variadas versões nacionais. O pão ázimo não leva fermento, é “o pão do Êxodo” da tradição judaico-cristã - não houve tempo para que crescesse antes da fuga dos judeus do Egito para a Terra Prometida.
     Em 1960, durante as filmagens da comédia romântica Adorável Pecadora, Marilyn Monroe e Arthur Miller se hospedaram no Beverly Hills Hotel, West Sunset Boulevard, 9.641. Seus vizinhos e amigos na temporada eram Yves Montand, com quem contracenava (e com quem teve um tórrido affair), e a mulher de Montand, a também atriz Simone Signoret. Os casais, então vizinhos de bangalôs, combinaram um jantar. Simone preparou o prato principal: spaguetti com almôndegas. Na mesa também salada verde e pães. Château Lafite Rothschild acompanhou a refeição. Para a sobremesa, encomendaram à copa do hotel bombinhas de creme e eclairs. Uma embalagem tetrapack de leite perto de Marilyn compunha a cena, evocando o leite da então mocinha saudável do início de carreira, que bebia, no seu corrido breakfast, leite misturado a dois ovos crus. Tudo ao mesmo tempo verdadeiro e encenado para fotos da revista Vogue.
     Depois vieram lendas e romances dos mais falados, o mais famoso com o presidente Kennedy e seu irmão, e um fim trágico e não menos nebuloso. Na noite de sua morte, em 1962, dizem que numa tentativa de reconquistar Bobby, Marilyn havia encomendado um buffet de comida mexicana para ser entregue em sua casa em Brentwood, na Califórnia.
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quinta-feira, 18 de junho de 2020

A partir de uma natureza-morta


(Marmelo, Repolho, Melão e Pepino)






     Quando em 1602, no seu estúdio em España, Juan Sánchez Cotán concluiu sua natureza-morta Marmelo, Repolho, Melão e Pepino, a marmelada era uma febre nos banquetes ingleses.
     Já o melão suculento, de herança árabe, reluzia ali em España mesmo, da Andaluzia para as mesas postas no Real Monastério del Escorial, o monumento barroco de Filipe II no coração da Serra de Guadarrama. Das cozinhas reais também saíam para a mesa do rei: guisados de caça, manjar branco e “azumbres de albillo” (um azumbre, medida de inspiração árabe, corresponde a dois litros; no caso, de vinho da uva branca Albillo).
     Quando em 1602, Juan Sánchez Cotán completou o quadro, Cervantes ainda trabalhava na primeira parte do seu Dom Quixote, publicada em 1605. A escrita de Cervantes também era uma pintura, mas uma pintura maneirista: a realidade dura do “Filipe de turno” misturada a sonhos que também alimentam e seguram um país.
     Na Espanha desse início do século XVII, a sopa de repolho e os pepinos serviam para matar a fome de pobres, anos de miséria da Edad del Mortero – alimentos triturados e bem cozidos para a tragédia dos homens sem dentes.
      A fome do pintor Juan Sánchez Cotán era de outra natureza: sair das “obrigatórias” cenas religiosas para os bodegones da vida. “Seu estilo hiperreal e temas austeros fizeram dele um revolucionário”, anotaram os críticos. Na Espanha, bodegones eram tavernas, mas também um estilo muito próprio de natureza-morta.
     Esticada como massa, a pasta translúcida de marmelo ganhava desenhos impressos com selos e moldes da nobreza. O brasão de armas de Filipe V da Espanha foi estampado numa dessas marmeladas festivas, no século XVIII. O molde está hoje, limpinho, no Museu do Pão de Ulm, na Alemanha. Na mesa de doces do quadro Lazarus and Dives, do pintor de Antuérpia Frans Franken, há um prato de marmelada colorida; a massa de marmelo tingida de rosa para ganhar vivacidade e enfeitar os banquetes dos reis.
    A carne de membrillo, a marmelada, chegava a Londres em navios embarcados na Espanha, em Gênova, França e Portugal. Marmelade era um lusitanismo na Inglaterra, porque justamente derivada da palavra marmelo, em português, de um país que fazia desses doces muito antes dessa febre. Doce prescrito por John Parkinson, herbarista de James I, em 1629, por suas qualidades digestivas, enquanto o mundo estava mesmo de olho nas suas propriedades ditas afrodisíacas. As prostitutas de Londres, nessa época eram docemente chamadas de marmalade madams.

    
Os ingleses também apreciavam uma água cordial, chamada Ratafia de Marmelos, usando para isso frutas que ficavam durante algumas semanas mergulhadas em brandy.
     Os melões cantaloupes, casca raiada e polpa entre o laranja salmonado e o amarelo esverdeado, eram populares na Andaluzia, sementes cultivadas pelos árabes que ocuparam a região. Colombo, a serviço dos reis católicos, levou sementes de melões do Haiti para a América espanhola na sua segunda viagem, em 1493.
     Juan Sánchez Cótan pendurou numa janela um marmelo maduro contra um fundo negro, início de uma curva descendente perfeita, composta ainda de um repolho, também atado num cordão (suspensão que era arma contra insetos e vermes comilões e doentios), mais um melão cortado (de salivar) e um de seus pedaços. O final da comestível hipérbole terminou com um pepino. 
     


Mais de quatro séculos depois, Ori Gersht, artista israelense baseado em Londres, inspirado em Cotán, tratou literalmente de explodir uma natureza-morta com a mesma hipérbole. Montou um cenário propositalmente muito semelhante ao criado pelo pintor Juan Sánchez Cotán. Mas sua lista de legumes e frutas foi modificada. No lugar do melão, uma abóbora. O marmelo foi substituído por uma romã. Todos alimentos disponíveis, de uma forma ou de outra, importados, congelados, frescos, cultivados ali mesmo ou em hortas distantes, em outros continentes. Com uma câmera de altíssima resolução e altíssima velocidade, Gersht filmou a trajetória de uma bala cruzando o cenário. Em câmera lenta, vemos o projétil atravessando e explodindo a romã, criando mandalas sangrentas, de suco vermelho.
     Em 1603, Juan Sánchez Cotán, depois de Marmelo, Repolho, Melão e Pepino (que está no Museu de Arte de San Diego), fechou seu atelier em Toledo e entrou para a vida religiosa, tornando-se um monge da ordem cartusiana num mosteiro em Granada, silenciando-se e trocando os bodegones por temas religiosos místicos.
     Ori Gersht, depois de estilhaçar a romã, fez mais uma das suas, explodindo arranjos de flores, semelhantes aos pintados em naturezas-mortas do século XVIII rococó. A série foi intitulada Blow Up e sobre ela Gersht declarou: “Estou pensando em cenários onde, em um lugar, há uma guerra muito sangrenta, enquanto em outro lugar pessoas estão vivendo um estilo de vida confortável e decadente.”

                                         *
     A mula de guia vinha enfeitada com fitas vermelhas e tinha o “arriamento mais bonito da tropa”. No peitoral, um conjunto de campainhas anunciava ao longe a passagem da carga de marmelos. Os tropeiros sentiam orgulho de ver seus burros, “puxados” pela mula, transportando no lombo até 200 quilos da fruta, escreve o marmelopolense Olinto Donizette Mota. Os marmelos eram então extraídos das plantações no Distrito de Queimada, município de Delfim Moreira, em Minas Gerais.
     O mercado de marmelo para a marmelada era disputado por uma dezena de fábricas, geran
do empregos para os habitantes locais e os de várias cidades da região.Tanta riqueza levou a população de Queimada a uma luta por emancipação. Até que um referendo, em 1962, a transformou em município de Marmelópolis.
     Hoje a demanda das grandes indústrias brasileiras da marmelada é atendida por marmelos importados da Argentina e do Uruguai. Enquanto doces de marmelo saem caprichosamente de São João do Paraíso, também em Minas, como de Marmelópolis.




sexta-feira, 27 de março de 2020

Bacalhau de peito aberto



     (Este texto se vale da biografia autorizada do bacalhau, assinada por Kurlansky.)


      Um bacalhau embarcado hoje na Noruega leva poucos dias para chegar ao Brasil e, assim, trocar as águas do Báltico e do Atlântico pelo mar verde de azeite de formas e caçarolas. Muito menos tempo do que seus ancestrais, também secos e salgados, levavam para aportar aqui no século XVI, época das grandes navegações. O papel do bacalhau nas aventuras que expandiram os limites do globo e do paladar é desfiado na "biografia autorizada" Bacalhau, o peixe que mudou a história do mundo, de Mark Kurlansky, um pesquisador minucioso da história e da sociologia da alimentação, que tem no sofisticado portfolio nada menos do que a tradução de Le Ventre de Paris, de Emile Zola.
     Aportar em terras novas não é bem o caso já que o bacalhau dos Descobrimentos era quase sempre carga de sobrevivência, 80% proteína, iguaria não perecível devorada nas embarcações que deixavam o Velho Mundo e cortavam mares "nunca d'antes navegados".  O bacalhau entrou na lista oficial de provisões da Marinha Real portuguesa com uma penada de D. João II (1455-1495), ironicamente o rei que não gostava de peixe. O monarca apostou na salubridade dos exemplares enviados por portugueses desbravadores da Terra Nova, então um dos principais pontos de pesca do bacalhau. A Terra Nova de Gaspar Côrte Real era a mesma Newfoundland do italiano anglicanizado John Cabot, hoje território canadense.
     Os franceses também tinham os pés nos pródigos mares do Hemisfério Norte. Todos reivindicavam o título de descobridores do santuário. Os bascos sempre zanzaram por lá. Havia o mesmo "entusiasmo de uma corrida do ouro", conta Kurlansky. Euforia alimentada pelo crescimento do mercado: "lá pela metade do século XVI, 60% de todo peixe consumido na Europa era bacalhau, porcentagem que se manteve estável por mais duzentos anos".
     Os diários de bordo das expedições de Cabral e Vasco da Gama não relatam como a proteína do mar chegava às tripulações famintas, antes que estas fossem consumidas pelo escorbuto e outras doenças que dizimavam nas naus portuguesas. É bem provável que as postas carnudas, desmanchando-se em lascas, ficassem com os comandantes e apaniguados. As "espinhentas sobras" alimentariam os porões. "O fado não canta a saudade e sim a posta perdida", resume Paiva de Carvalho, da Academia do Bacalhau de Toronto.

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     Primeiro foram os vikings, que ocuparam a Islândia e a Groenlândia, entre os anos 800 e 1200. Antes de zarparem com seus velozes barcos de duas velas, avançando das terras geladas para a Europa, matando monges e freiras na Inglaterra, barbarizando e negociando rumo ao Sul, os vikings já falavam dos peixes que ferviam em seus recortados fiordes e conheciam a técnica de secá-los. Fileiras e fileiras de bacalhau de "peito aberto" eram expostas ao vento frio nos degraus rochosos da sua costa. Cada peixe perdia cerca de quatro quintos de seu peso e transformava-se numa peça dura como tábua, cortada em pequenos pedaços, como biscoitos. E com nutrientes capazes de sustentar as diabruras de Eirik, o Vermelho.
     Até hoje a cidadezinha portuária de Lofoten, na Noruega, com seu colorido casario art nouveau, é cenário dessa rotina. Numa única temporada, fevereiro a maio, a indústria de Lofoten pendura em seus "varais" para secar 16 mil toneladas do bacalhau mais nobre, o Gadus morhua. No total, cerca de 50 mil toneladas de bacalhau saem das águas da região.
    Depois dos vikings, os bascos. Eles tinham sal em abundância, mercadoria então impensável para os nórdicos, e começaram a usá-lo no processamento do bacalhau. O sal aumentava a durabilidade do alimento. Além de bravos pescadores, os bascos eram bons comerciantes. No raiar do século XI, já tinham tradição da pesca à baleia e da venda de seus produtos. O bacalhau os ajudava a enfrentar as durezas das perseguições aos cetáceos gigantes, arpões de prontidão, como o dos célebres personagens de Moby Dick, de Melville. A ligação desse povo com o mar é exagerada na história de pescador que corre por lá: o bacalhau possuiria o dom da fala. E falaria basco...
     "Os bascos ficavam mais ricos a cada sexta-feira", escreve Kurlansky, referindo-se aos dias de jejum determinados pela Igreja Católica. Além dos 40 dias da Quaresma e da Semana Santa, havia vários outros períodos de abstinência de carne vermelha, totalizando quase a metade dos dias do ano. Carnes de bacalhau e de baleia eram enquadradas como carnes frias, vinham da água, e estavam liberadas. O bacalhau tornou-se "um soldado mitológico na cruzada pela observância cristã", analisa Kurlansky.
     A grande procura pelo bacalhau acirrou a disputa entre os países pesqueiros e não foi nada fácil estabelecer limites e territórios. Três guerras do bacalhau eclodiram e tumultuaram os negócios. Nenhum tiro foi disparado, não houve baixas, a não ser a destruição de muitas redes consideradas "devastadoras" de uma e de outra frota.
     Com o tempo, a pesca deixou de ser aventura de homens dispostos a enfrentar "latitudes solitárias", em áreas literalmente congeladas e eternamente enevoadas. Tornou-se prática predatória com redes e dragas, bem distante das tradicionais linhadas com muitos anzóis. Para desespero dos homens que ganhavam a vida no mar, a pesca passou a ser controlada. Os preços do produto dispararam. A queda dos estoques levou o Canadá, em julho de 1992, a proibir a pesca em áreas da Terra Nova. Os únicos "pescadores" autorizados integram o projeto Sentinel Fishery. Zarpam para monitorar "estoques" e acompanhar o desenvolvimento de filhotes. Todos à espera da volta dos generosos cardumes.

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     O príncipe dos Mares do Norte atende pelo nome científico de Gadus morhua. Assim foi registrado no Systema Naturae do sueco Lineu , em 1758. É o mais cobiçado da família. Assim como seus algozes, é dado a aventuras e, na época da desova, migra pelas águas acompanhando correntes menos frias. Seus parentes estão também nos mares da Noruega, Rússia, Islândia, Canadá e Alasca.
     Corpo robusto, olhos pequenos, "barbicha" no extremo da mandíbula inferior, 5 aletas, cauda reta, o bacalhau da Terra Nova tem manchas cor de âmbar no dorso verde oliva e a barriga branca. Um exemplar de 20 anos mede, em média, um metro, e chega a pesar 50 quilos.
     Quando fisgado, não costuma reagir. Dizem que esse comportamento desestressado está relacionado à carne branca tão apreciada. Quando o assunto é comida, é predador voraz, ataca até anzóis sem iscas e nem filhotes desavisados escapam. A fêmea põe até 8 milhões de ovos. O escritor Alexandre Dumas criou uma imagem poética para essa fertilidade: "se nenhum acidente atrapalhasse a maturação dos ovos e todos conseguissem transformar-se em peixes, demoraria apenas três anos para que o mar ficasse coalhado de bacalhaus de modo que poderíamos atravessar o Atlântico sem molhar os pés, caminhando sobre eles". Fora da ficção, só 6 vingam e 2 chegam à idade adulta.

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     Auguste Escoffier (1846-1935), pai da moderna cozinha francesa, tinha Portugal em alta conta, por ter o país garantido lugar de destaque ao bacalhau na cena gastronômica. Taillevent, cozinheiro do rei Carlos V, da França, servia o bacalhau com molho de mostarda ou manteiga derretida. Apesar de não ter o bacalhau em suas águas, os portugueses iam longe para trazer o peixe até a cidade do Porto e, de lá, para Lisboa e o mundo. Há tantos pratos preparados com a iguaria em Portugal que, como diz o batido ditado, é possível comer um bacalhau diferente a cada um dos 365 dias do ano.
   Na Idade Média, graças à abundância do pescado e o preço não tão salgado, o bacalhau freqüentava a mesa da nobreza e dos pobres. Enriquecia panelões de arroz para numerosas famílias caribenhas. Ou reinava quase sozinho, só o nobre lomo, em receitas que os espanhóis batizaram de bacalao a la vizcaína ou o al pil pil, com pimenta.
     Do bacalhau se come tudo, até os ossos. Na Islândia, as espinhas ficam de molho em agraço (suco de uvas verdes), são posteriormente cozidas e viram mingau. Em outras épocas, as crianças das terras gélidas comiam também as peles fritas com manteiga. Enquanto outras, mundo afora, tiveram de beber na marra o fortificante óleo de fígado de bacalhau.
     Em 1571, Elizabeth da Áustria foi recepcionada em Paris com banquete que incluía tripas do peixe. Os bons de garfo lambem os beiços é com as línguas cozidas, na verdade as gargantas do bicho. "Têm sabor mais forte e uma textura mais gelatinosa", escreveu Kurlansky. Na lista de históricas receitas, o autor destaca as bochechas fritas (discos carnudos que vêm com a mandíbula), as ovas, quase sempre recheadas, além das bexigas natatórias e cabeças de bacalhau assadas. Sim, bacalhau tem cabeça.

terça-feira, 24 de março de 2020

O vinho da Areni e a hipótese Noé


     Depois que os soviéticos se foram, há cerca de 30 anos, os agricultores da Armênia trataram de, literalmente, buscar suas raízes, as mais profundas delas enterradas nos seus então quase perdidos vinhedos da autóctone cepa Areni, nas barbas do bíblico Monte Ararat, onde a arca de Noé teria batido com seus bichos.
     Nas últimas décadas, à época da colheita, as uvas voltaram a frequentar o altar das igrejas ortodoxas. Os pagãos ancestrais também ofereciam os frutos a seus deuses. A prática foi absorvida ao longo do tempo pelos fervorosos cristãos locais e hoje transformou-se numa cerimônia colorida dedicada à Virgem Maria, sempre no domingo mais próximo do dia 15 de agosto.
     Depois que os soviéticos se foram foi possível também se falar numa ressurreição do vinho da Armênia. Alguns rótulos podem ser encontrados em vários países europeus e, mais recentemente, aportaram nos Estados Unidos. O vinho Areni Noir Karasi 2010, da vinícola Zorah, foi elogiado pela crítica de vinhos inglesa Jancis Robinson, defensora intransigente da abertura do mercado para variedades menos conhecidas. Jancis Robinson é autora, com Julia Harding e o botânico suíço Jose Voullamoz, do referencial Wine Grapes, estudo biogenético de muito fôlego que traz descrições detalhadas das 1.368 cepas de uvas em produção hoje no mundo. A Areni é uma delas.
     A Transcaucásia, onde está localizada a Armênia, é pesquisada pelos arqueólogos como local da domesticação da videira e de outras tantas plantas durante a “revolução neolítica”. E se o alemão Heirinch Schielmann foi atrás da Antiga Tróia com a Ilíada de Homero debaixo do braço, alguns arqueólogos ligados à botânica se inspiram em passagem bíblica para formular a sua intrigante “Hipótese Noé”: uma única videira, nascida nas escarpas do Monte Ararat, teria sido a mãe de todas as outras espalhadas pelo mundo. No livro Gênesis está escrito que, após o Dilúvio, arca ancorada no Monte Ararat, Noé plantou a primeira videira, dela fez vinho e se embriagou. Teria sido a primeira bebedeira devidamente registrada da história, lembra o filósofo Michel Onfray, em A Razão Gulosa.
      A ancestralidade da vitivinicultura local ganhou ainda mais evidência com as descobertas em Areni. Pavel Avetisian, diretor do Instituto de Arqueologia da Armênia, afirma tratar-se do mais antigo complexo para produção de vinhos já escavado.
      Foi esse peso da história que levou o iraniano Zorik Gharibian de volta da sua Itália de adoção à Armênia de seus antepassados para implantar a vinícola Zorah. Há mais de dez anos anos, cuida de vinhedos da cepa Areni Noir plantados nas encostas do Monte Ararat, a 1.400 metros de altitude. Gharibian conta que esse local pode ter sido o mesmo explorado por monges no século XIX.
     A ligação afetiva de Gharibian com a Armênia fez com que o projeto focasse nas cepas locais, ideia devidamente encampada pelo renomado enólogo Alberto Antonini (com assinaturas em vinhos de várias partes do globo, incluindo sua Toscana e os da bodega Alto Las Hormigas, na Argentina) e o viticulturista Stefano Bartolomei. Ambos integram desde o primeiro momento o time de Gharibian.
     A Armênia tem cinco zonas vinícolas e conta com dezenas de variedades autóctones. A Areni (parente da Pinot Noir) é a tinta considerada âncora dos atuais produtores. Há ainda a Garan Dmak, Nazeli e Chillar, além de uma branca especial, a Voskeat - "Pingos de Ouro".  Por ora, Gharibian tem a Areni como menina dos olhos, a cepa de milhares de anos, provavelmente originária da região sul da Armênia. Além disso, trata de adaptar as práticas de vinificação indicadas pelos achados arqueológicos e a experiência dos locais. O vinho é primeiramente preparado em karasì (ânforas, em armênio), que são depois enterradas no solo. Apenas um terço é armazenado em barricas francesas e armênias. Gharibian tem certeza de que os karasì concentram a expressão da fruta. E é fiel ao mote: Zorah: 6.000 anos de história em uma garrafa.