sexta-feira, 31 de julho de 2009

Fié Gris, branca com blush

A Fié Gris é uma uva do Vale do Loire, "parente" da Sauvignon Blanc, que passou por sumida do mapa da viticultura durante cerca de 100 anos. Tem uma história semelhante à da Carménerè que, considerada extinta em Bordeaux depois da Phylloxera, voltou à cena no Chile, a partir de 1994. Nos vinhedos chilenos de Merlot mantinham-se firmes, inadvertidamente, videiras da Carménère, a uva tão presente no Médoc no início do século XIX. Tinham sido importadas por empreendedores chilenos antes da praga devastadora e hoje passaram a ser emblemas da viticultura do país. A terrível Phylloxera também dizimou a maioria dos pés de Fié Gris. Anos mais tarde, na época do replantio, outras cepas, mais resistentes, tomaram seu espaço. As regras de appellation também acabaram empurrando a Fié Gris e outras variedades, como a Menu Pineau, para o esquecimento. Mandavam na região de Touraine as variedades Sauvignon Blanc e Chardonnay, boas para o mercado em retomada. A redescoberta e relançamento da Fié Gris aconteceu nos anos 1980, graças ao empenho do viticultor Jacky Preys. Seu vinhedo de 25 hectares rodeava a casa em Meusnes, Touraine. Ao investir em mais 50 hectares de terras em Mareuil-sur-Cher, acabou topando com parreiras muito antigas e suas frutas com casca tingida de rosa. O dono anterior já tinha lhe advertido que esse vinhedo, de apenas 3 hectares, não tinha sido claramente identificado. Foi quando começou a chamar ampelógrafos para solucionar o seu bom problema. Um especialista de 80 anos, com muita experiência, logo matou a charada. Disse-lhe que tinha em mãos uma mina de ouro, exemplares preciosos da Fié Gris comunsno Vale do Loire antes da Phylloxera, uva que durante bons tempos "ajudou" os vinhos de Bordeaux. Uma explicação para a sobrevivência da Fié Gris seria o tamanho da propriedade. Eram 100 hectares em 1890. E a família que ali estava não viu nada demais em replantar alguns pés da cepa querida. Hoje a Fié Gris está presente na estufa governamental e outros viticultores já fazem boas experiências com ela, como Eric Chevalier.


http://www.wineterroirs.com/2009/07/preys_fie_gris.html

http://www.fiegris.fr/joomla/index.php?lang=en

Diário do Comércio de 31/7/2009

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Enotipofilia australiana

"Enotipofilia" é uma invenção da bibliotecária Valmai Hankel, que durante anos cuidou dos livros raros da State Library of South Australia. Ela diz que o termo pode ser usado para tratar do amor de alguém, na mesma dose, por vinhos e tipografia (certamente se esqueceu por um minuto de seus cavalos árabes). Diria que o cunhou em causa própria, para definir a própria obsessão, ela que aprecia o formato das letras, capas e ilustrações dos livros tanto quanto o corpo, o aroma e a cor dos vinhos. Mesmo depois de aposentada, em 2001, integrou a equipe que implantou um site da biblioteca (Wine Literature of the World) dedicado especialmente à coleção de documentos e livros sobre vinho e viticultura – museu virtual que merece uma visita. Entre os principais papéis até agora digitalizados, um raro manuscrito alemão de mil anos define punições ("pão e água") a monges beberrões. Foi escrito por Buchard de Worms, em latim, com tipos carolíngeos. Uma miniatura colorida, retratando o tempo de espremer as uvas, é de um Livro de Horas, editada entre as orações (Paris, 1490). Outra preciosidade é o álbum da Festa dos Vignerons da suíça Vevey (Paris, 1889). A cidade sempre celebrava com marchas e fantasias (o álbum é todo de ilustrações) a Chasselas, uva local para seu branco robusto. Já em Ampélographie française, de Victor Rendu (Paris, 1857), o charme são os desenhos das mais tradicionais cepas. Valmai acredita que antigos livros sobre vinhos ainda têm muito a dizer. Não à toa mantém uma coluna sobre a história do vinho na Winestate e escreve a coluna "Oenotypophily" para The Australian and New Zealand Wine Industry Journal. É também crítica da The Adelaide Review há mais de 15 anos, especializada no vinho local que a conquistou a partir dos anos 50, quando tomou uma taça de tinto Coonowara, servida pelo futuro marido.

http://www.winelit.slsa.sa.gov.au/

DC de 24/07/2009

sexta-feira, 17 de julho de 2009

A nova rainha alemã

A elegante Pinot Noir, a uva de excelência da Borgonha, ali cultivada com paciência há mais de dois milênios, também ganha o estrelato a partir de terras alemãs. Navegou na grande onda que nos últimos 25 anos fez com que as uvas tintas ganhassem terreno em todo aquele país. Essas variedades já somam mais de 37 mil hectares plantados, sendo 11.820 ha somente de Pinot Noir, a sonora Spätburgunder. Em 1980, somente 11,4% dos vinhedos alemães eram reservados à Pinot Noir. Hoje a Spätburgunder toma conta de 37,1% das plantações. As uvas Riesling continuam em cena, de maneira magnânima, matéria-prima de esplêndidos e refrescantes vinhos que estão nas boas mesas de todo mundo, sempre comentados com rigor e propriedade pelo vizinho Sergio de Paula Santos, da coluna Adega. As autoridades do Germany Wine Institute comemoram o crescente interesse internacional por vinhos da Spätburgunder, plantada principalmente no sul da Alemanha, bem perto da Alsacia, e quase na mesma latitude da Borgonha. Na região vitivinícola de Baden encontram-se plantados 5.585 hectares, cerca da metade do total da variedade. E é ali que Pinot faz sua silenciosa revolução. Hoje a Alemanha já é o terceiro maior país produtor de Pinot Noir, só perdendo mesmo para a França e para os Estados Unidos (leia-se Califórnia). Numa entrevista à mais recente edição da revista inglesa The World of Fine Wine, o jovem vinicultor Konrad Salwey diz que tem feito um vinho muito sensual a partir da Pinot Noir que cultiva na pequena propriedade em Oberrotweil, área de Kaisersthul, na região de Baden (no mapa acima, os braços azuis). Com vinhedos em 20 hectares, a vinícola, fundada pelo pai Benno Salwey em 1950, trabalha basicamente com as cepas Pinot Noir (40%) e Pinot Gris (35%), mas também com a Pinot Blanc, Riesling, Silvaner, Chardonnay e Auxerrois. No raio-x que faz do fenômeno, Joel B. Payn, da The World of Fine Wine, lista alguns dos mais importantes viticultores da cepa: além de Konrad Salwey, Reinold Schneider Bernhard e Huber (Baden), Fritz Becker, Werner Knipser, Hansjörg Rebholz (Pfalz), Paul Fürst (Francônia), Rainer Schnaitmann (Württemberg). Na listade produtores da Pinot Noir devem ser incluídos Werner Näkel, Wolfgang Hehle, Gerd Stodden eMarc Adeneuer (Vale do Ahr), bem como August Kesseler (Rheingau).


http://www.salwey.de/

http://www.weingut-huber.com/home


Diário do Comércio de 17/7/2009

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Os socalcos, por Saramago.

O escritor-viajante José Saramago gosta das pedras velhas de seu Portugal tanto ou mais do que suas extensões verdejantes. Por isso, onde há um museu arqueológico que as reúna, ou palácios e paredes com elas sobreviventes, lá está/esteve ele. Algumas impressões sobre essa sua terra e sua gente estão explícitas no livro Viagens a Portugal (Companhia das Letras, 1998), guia inusitado por caminhos do coração. Ali encontramos loas às montanhas xistosas da região do Douro, com seus inumeráveis socalcos – verdadeiras escadarias de pedra amparando os vinhedos. Saramago faz poesia a partir da modificação ancestral da região, o homem transformando aquelas imensas e assustadoras "solidões mineirais". Desmontou, bateu e tornou a bater, fez como se esfarelasse as pedras entre as palmas grossas das mãos, usou o malho e o alvião, empilhou, fez os muros, quilómetros de muros, e dizer quilómetros será dizer pouco, milhares de quilómetros, se contarmos todos os que por esse país foram levantados para segurar a vinha, a horta, a oliveira. Aqui, entre Vila Real e Peso da Régua, a arte do socalco atinge a suma perfeição (...) Essa paisagem de socalco no Alto Douro, esforço do homem para trabalhar terrenos inóspitos (o escritor Adelino Gouveia compara os socalcos às rugas dos camponeses da região), foi declarada Patrimônio da Humanidade pela Unesco em 2001. Nas encostas do Douro e de seus afluentes (o Corgo de Vila Real e o Tua) vicejam os "jardins suspensos" com suas castas típicas: Touriga Nacional, Touriga Franca, Tinta Barroca, Tinto Cão e Tinta Roriz. Saramago escreve que, no fim do verão, as vinhas dos socalcos "se enfeitam de vermelho e dourado". Hora de colher e preparar o vinho.

http://www.inga.min-agricultura.pt/ajudas/agroamb/vsd/regras.html
http://www.dodouropress.pt/index.asp?idedicao=66&idseccao=688&id=6795&action=noticia

Diário do Comércio de 10/7/2009