sexta-feira, 27 de setembro de 2013

'Col' de novo na estrada

A Kombi vermelha dos Darricarrère continua na estrada. Em 1972, rodava o Brasil e suas praias conduzida pelos irmãos Jean Daniel e Pierre Darricarrère. De origem francesa, radicados no Uruguai, vieram estudar aqui “e foram conquistados pelos atrativos do Brasil”. Chamavam carinhosamente a Kombi de ‘Col’, diminutivo de caracol, pois era a divertida casa ambulante nas viagens em ritmo de paz e aventura. Acabaram ficando. Décadas depois, eis que a Kombi vermelha foi resgatada e volta triunfante à estrada, polida e com novíssima suspensão. Está hoje no rótulo do ReD, um dos vinhos criados pelo jovem enólogo Anthony Darricarrère, filho de Pierre. A sigla “tinta” ReD, para um corte bem balanceado de Cabernet Sauvignon e Merlot, acaba abraçando toda a vinícola Routhier & Darricarrère, criada em 2002 em Rosário do Sul, na Campanha gaúcha, a 100 quilômetros do Uruguai. A Kombi do rótulo tem ido longe: não só homenageia a liberdade da animada geração anterior como anuncia o espírito jovem do próprio vinho. Não à toa, a embalagem do ReD acaba de ser premiada com ouro na categoria voto popular profissionais pela Associação Brasileira de Embalagem (ABRE). O projeto é da publicitária e diretora de marketing da empresa Gabriela Darricarrère, mulher de Anthony, que trouxe humor e criatividade extra da Califórnia, onde formou-se como designer. E tudo isso é como se a Kombi tivesse engatado uma primeira. A Routhier & Darricarrère tem 6 hectares de vinhedos “na nova velha Campanha”, como diz Anthony. Ele ressalta, assim, uma espécie de realinhamento da região no cenário vitivinícola do Rio Grande do Sul, a partir do final dos anos 1990, com a integração de todos os seus municípios. A entidade Vinhos da Campanha tem 16 vinícolas associadas para a promoção dos vinhos locais. Ao empreendimento dos Darricarrère estão unidos os Routhier, sócios históricos nas plantações de cítricos. A tradição vinícola da família já tem dez gerações, iniciada em 1656 por Jean Darricarrère em Bayonne, capital do País Basco. Em meados do século 20, vamos encontrar André, avô de Anthony, na Argélia, cuidando de vinhedos da cepa Alicante Bouschet. Antes da guerra e da independência da Argélia, em 1962, Oran era um porto apinhado de barricas – vinhos da colônia exportados com orgulho para a Borgonha, contra a chamada “palidez” da Pinot Noir. André saiu de lá para plantar bergamotas no Uruguai. Anthony foi atraído para o mundo dos vinhos após uma visita aos primos enólogos na Califórnia, no ano 2000, com direito a escala no Vale do Napa, na vinícola Robert Mondavi. Formou-se no Curso Superior de Tecnologia em Viticultura e Enologia de Bento Gonçalves e, já como enólogo-estagiário, em 2005 voltou ao mundo dos Cabs dos Mondavi. Também tem aproveitado os ensinamentos e a experiência dos tios com vinícola em Bordeaux. O ReD tem um pouco dessas duas escolas, com destaque para o uso criterioso das barricas francesas, o corte de safras e tudo que representa o savoirfaire bordelaise. A Routhier & Darricarrère produz também o Província de São Pedro (100% Cabernet Sauvignon), além do Província de São Pedro (100% Chardonnay), este com o requinte de ter descansado por 12 meses em barricas de carvalho da Fôret-des-Voges, na Alsácia. Além disso, como explica Anthony, "após a fermentação, esse vinho foi criado sur lies, sobre as borras, processo que confere untuosidade e mineralidade ao vinho Chardonnay". A vinícola tem hoje capacidade para produzir 20 mil garrafas/ano, mas já tem planos de dobrar esse número para garantir a saúde financeira do negócio. Quer tomar um ReD “do seu jeito”, como sugere o rótulo? Consulte a vinícola e saiba onde a Kombi já os levou. Uma parceria com o site de vinhos Sonoma, do também jovem Alykhan Karim, colocou "o vinho da Kombi" em boa vitrine. Mas o ReD de Anthony Darricarrère não poderia estar em melhor companhia do que no restaurante Esquina Mocotó, na Vila Medeiros (SP), do chef Rodrigo Oliveira. Todos jovens, com desafios sincronizados, como que embarcados na mesma Kombi vermelha.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

O vinho ético da Sicília

O jornal italiano Corriere della Sera batiza de ético o vinho produzido pela vinícola Centopassi na Sicília. Isso porque trata-se de um vinho feito com uvas que nascem em terras confiscadas de mafiosos. É considerado ético também porque é elaborado na esteira da cultura biológica, natural, que respeita o meio ambiente e, principalmente, a tradição dos viticultores da região. Mas o apelo dessa origem – “terras dos chefões da Cosa Nostra” – por si só não bastaria para que os vinhos alcançassem tanto sucesso, como vem acontecendo em grandes feiras internacionais. “A nossa ideia fixa agora é a busca da excelência”, disse ao Corrieri o jovem Francesco Galante, que comanda a Centopassi, o braço vinícola da Libera Terra. O site da inglesa Jancis Robinson tem sido generoso com esses vinhos sicilianos enquanto outros críticos são unânimes em apontar os avanços na qualidade da bebida. As 200 mil garrafas produzidas pela Centopassi são vendidas na Europa, mas já chegam aos Estados Unidos e ao Japão. Nada mal para uma vinícola que teve sua primeira colheita em 2006. A Centopassi é resultante da fusão de três cooperativas (Libera Terra, Cooperativa Sociale Pio La Torre e Cooperativa Sociale Placido Rizotto) e trabalha em 90 hectares de vinhedos na região de Palermo e também na província de Trapani e Agrigento, terras legalmente confiscadas pelo estado italiano e confiadas a organizações populares. Além das uvas e dos vinhos, a Centopassi produz pastas, azeite e cultiva legumes. A Itália, em conjunto com a União Européia, já investiu 1,2 bilhão de euros em projetos de reaproveitamento e integração das terras dos mafiosos à economia formal na Sicília, mas também na Calábria, Puglia e Campânia. O governo não nega que está interessado nos empregos que as iniciativas podem gerar. No início do ano passado, foram notícia os investimentos do banco Unicredit feitos na recuperação de 150 hectares de vinhedos perto de Palermo, de propriedade de Michele Grego, o papa, morto na prisão em 2008, sentenciado por vários assassinatos, entre eles o do general Carlo Alberto Dalla Chiesa, conhecido pelo combate à máfia. Na descrição técnica de seus vinhedos, a Centopassi faz questão de incluir originais itens que mostram seu engajamento político. Nos vinhedos de Scheda Vigna Pietralunga, em Monreale, anuncia que as variedades grillo e chardonnay estão em terras de Simonetti, do clã dos Riina. A Scheda Vigna Muffoletto, onde se cultiva a trebbiano toscano, foi confiscada de Genovese, da família mafiosa de Giovanni Brusca. Alguns personagens da luta contra a máfia também aparecem nas fichas técnicas de seus vinhos varietais. O Rocce di Pietra Longa Grillo Terre Siciliane IGT 2012 (100% da uva Grillo) foi dedicado a Nicoló Azoti, sindicalista de Baucina, assassinado pela máfia, “para que sua memória possa ser difundida de maneira indelével na nossa consciência”. Terre Rosse di Giabbascio Catarratto Terre Siciliane IGT 2012 (vinho com certificação biológica) homenageia o dirigente comunista Pio La Torre, “por sua incessante luta pela paz e pela justiça”. Tendoni di Trebbiano Sicilia IGT 2011 é dedicado a “todos os cidadãos que, conhecendo a arrogância e violência da máfia, tiveram a coragem de reagir e levantar a cabeça restituindo dignidade e esperança à própria terra”. Giuseppe Peppino Impastato é um deles. Argille di Tagghia Via Nero d’Avola Terre Siciliane IGT 2012 faz uma homenagem especial a esse jovem morto pela máfia, “cujas ideais continuam apaixonando quem ama a liberdade”. O próprio nome da vinícola Centopassi (cem passos, em português) foi emprestado do filme I Cento Passi(2000), de Marco Tullio Giordana. O filme conta a história de Peppino, que enfrentou um chefão que morava a cem passos da sua casa. O jovem militante antimáfia que lutava via rádio a partir de Cinisi foi morto em 1978, durante campanha como candidato à prefeitura da sua cidade. Gaetano Badalamenti, mafioso traficante de heroína, mandou amarrar o corpo de Peppinonum trilho de ferrovia e o explodiu com TNT. P.S.: Vale a pena ler Palmento – A Sicilian Wine Odyssey (University of Nebraska Press/2010), no qual Robert V. Camuto dedica um capítulo inteiro a suas andanças por Corleone e toda Sicília e os primeiros passos da Centopassi. DC de 20/9/2013

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Festa na Califórnia

Setembro é um mês de festa nos vinhedos da Califórnia. Além das atividades ligadas diretamente à colheita, dezenas de eventos artísticos e culturais dão o tom da celebração da vinicultura local. E o velho "velho oeste" americano fica mais colorido e musical. É época em que parreiras, cubas de aço e barris dividem espaço com músicos, boa comida e apaixonados pelo vinho do mundo inteiro e muitas garrafas são abertas. O California Wine Month foi criado em 2004 por Bobby Koch, presidente e CEO do Wine Institute, com apoio do governo do estado, que anualmente decreta solenemente o período da festa. E a programação desse mês especial tem crescido a cada ano (confira em www.discovercaliforniawines.com / californiawinemonth). Mais de 20 milhões de turistas visitam a Califórnia anualmente, encantados tanto com as praias e as famosas ondas, quanto com os organizados vinhedos e as salas de degustação de suas mais de 3.800 vinícolas. As principais regiões (Mendocino, Vale do Napa, Sonoma, Sierra Foothills, Santa Cruz Montains, Monterey, San Luis Obispo e Santa Barbara) parecem ter sido desenhadas para o turismo. Ali podem ser vistas construções modernas, com jardins de esculturas, como os da vinícola Hall, em Santa Helena, ou instalações que emulam as antigas missões dos espanhóis – a vinícola Mondavi, no Vale do Napa, é o melhor exemplo. Há até uma uma Persépolis californiana, a Darioush Winery, com colunatas inspiradas nas construções do antigo Império Pérsia. Desde 1997 é comandada por Darioush Khaledi, um imigrante iraniano que tornou-se um exemplar empreendedor americano. Em dez anos, o número de bodegas na Califórnia cresceu 124%, segundo dados do Wine Institute, organização que promove a região e advoga por políticas oficiais em nome dos produtores. Afinal, a Califórnia é onde é praticada a "democracia do vinho", proclama o escritor Stephen Brook em seu The Finest Wines of California (Aurum/2011), querendo com isso mostrar a vivacidade da região, onde as grandes propriedades são poucas e a maioria das pequenas faz seus caprichados vinhos com uvas de terceiros. Neste mês de colheita, uma das uvas mais incensadas é a Zinfandel, a cepa americana por excelência. Mas há muita gente em busca mesmode famosos Cabs e Chards, a abreviação carinhosa para os Cabernet Sauvignon e os Chardonnay. A Califórnia é responsável por 90% da produção de vinhos dos Estados Unidos e cerca de 40% de suas frutas e vegetais. Nesse ambiente fértil desenvolveu uma cozinha criativa, atração dos circuitos das vinícolas. É graças à viticultura na Califórnia que os EUA são hoje o quarto maior país produtor de vinhos do mundo, atrás apenas da França, Itália e França. As garrafas americanas são basicamente consumidas internamente. Mas é notável ver que as exportações de vinho americano alcançaram US$ 1.43 bilhões em 2012, um crescimento de 2,6% em relação ao ano anterior.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Champagne no iPhone

O jornal The Washington Post não perdoa os excessos dos vinicultores da região de Champagne, no nordeste da França. E isso, desta vez, nada tem a ver com a defesa intransigente que os orgulhosos franceses fazem de seus vinhos e terroir. O colunista Brian Fung, do site de tecnologia The Switch chama-os de esnobes e os trata como radicais porque agora estão implicando, vejam só, com a cor champanhe com a qual a Apple quer "pintar" alguns modelos de iPhone. “Não podemos sequer dizer que a cor champanhe existe", satirizou Charles Goamaere, diretor de um comitê de defesa do vinho da Champagne. Para ele, champanhe é só vinho. E faz um alerta à Apple sobre esse artifício da cor. Como se a gigante de informática precisasse da carona etílica. Anos antes, como relata o jornalista Brian Fung, a patrulha já tinha avançado para além da indústria dos vinhos. Em 1987, o mesmo comitê processou a Perrier, que fazia o marketing de seus produtos com o slogan: "a champagne das águas minerais". Em 1993, os defensores do vinho da Champagne também correram atrás de um perfume homônimo da alquimia de Yves Saint Laurent. E nem mesmo um singelo iogurte lançado na Suécia em 2002, aromatizado com champanhe, passou no crivo do comitê. Agora, os iPhones. Há os que acreditam que Goamaere transbordou do mote justo de um antigo ditado champanês: "Il n'est champagne que de la Champagne" (Não é champanhe senão o da Champagne). Esse dito há mais de um século passou de ecos entre vinhedos para as tábuas da lei. Hoje somente o vinho produzido em condições especiais na Champagne pode usar esse nome. Não à toa, vinho produzido com mesmo método e mesmas cepas não é champanhe e, sim, cava (Espanha), prosecco (Itália), sekt (Alemanha), espumante (Brasil),.. Há até gente querendo arranjar um nome fantasia para o nosso. Imagine como os franceses ficaram irritados, e desta vez com razão, quando se depararam com uma garrafa do Korbel Champagne, um vinho feito no norte da Califórnia ! "É difícil reclamar da França por ser tão protecionista quando vemos e apreciamos as condições especiais sob as quais o real champagne é manufaturado", escreve o especialista Mark Oldman. As especificidades da região estão no solo calcário e no clima frio, que deixa as uvas com grande e desejável acidez. Champagne é hoje o vinho produzido em zona vinícola 150 quilômetros a nordeste de Paris, compreendendo o Vale do Marne, a montanha de Reims e a Côte des Blancs – área que abraça 167 municípios do Marne, 63 de Aube e 27 do Aise. São cerca de 25 mil hectares de vinhedos destinados às cepas pinot noir (35%), pinot meunier (35%) e chardonnay (27%). O processo (champenoise), extremamente trabalhoso, também é fundamental nessa rotina que busca a qualidade. São etapas complicadas que exigem grande dedicação. Para se ter uma ideia, a sequência de prensagens são delicadas e os vinicultores têm de induzir uma segunda fermentação, aquela que dá ao vinho a espuma, garrafa por garrafa. Foram justamente essas características especiais que os vignerons levantaram como bandeira na Revolta da Champagne, em 1911. Saíram às ruas, queimaram e depredaram lojas de negociantes que estavam adulterando vinhos da Champagne, com mostos de outras regiões. Foi o início de um movimento que levou às AOCs (Apellations d'Origine Controlées) – ou seja, delimitação de territórios e normatização de produção de cada vinho. Um movimento de proteção inicialmente de viticultores, ampliada para uma questão maior de preservação de uma identidade cultural. Os interessados na origem desse "sentimento francês" deve ler o completo estudo de Kolleen M. Guy When Champagne Became French (The John Hopkins University Press/2007). Um sentimento muito distante da atual teoria da cor do Comitê de Champagne.