sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Os saltos das rãs

Há muitos saltos na história da vinícola Frog’s Leap, em Rutherford, uma das regiões mais prósperas da Califórnia. A começar da terra onde ela nasceu, área de uma antiga fazenda de criação de rãs, ao norte de Santa Helena. Nessa região criavam-se rãs desde o século 19. E na virada para o século 20, houve um verdadeiro boom, sendo uma atividade das mais lucrativas nesse então meio perdido oeste dos Estados Unidos. Revistas da linha “how to” das primeiras décadas já vendiam suas receitas de como enriquecer com rãs. Ainda não havia a efervescência da vitivinicultura. O nome da vinícola criada em 1975 por Larry Turley e John Williams é homenagem declarada aos velhos tempos, nos quais uma perninha de rã americana tinha o mesmo status das consumidas avidamente pelos gourmets da era vitoriana, como conta a escritora Tanya Scholes. Hoje quem toca os 56,5 hectares de sustentáveis vinhedos da Frog’s Leap é John Williams, inspirado em práticas zen e biodinâmicas (isso combina muito bem com sapo!). Larry “saltou” da sociedade para administrar um projeto próprio, com vinhos Zinfandel de alto padrão, muito “musculosos” e fortes, isso na mesma velha área das velhas rãs. A Turley Wine Cellars fica na na Highway North. Conclui-se então que, na verdade, quem saltou dali foi John Williams, que levou consigo para Rutherford o direito do uso da rã e da marca. A nova vinícola foi instalada num antigo celeiro vermelho, que nos anos 1940 serviu para estocar ameixas e amêndoas. Os vinhos da Frog’s Leap são mais leves, mais elegantes, e é assim que eles têm se destacado. Na primeira safra comercial da vinícola, de 1981, foram lançadas no mercado 700 caixas de Sauvignon Blanc e Zinfandel, esta a cepa emblemática da viticultura americana. No início, as uvas eram transportadas (“pulavam”) dos vinhedos da Stag’s Leap (onde Williams tinha anteriormente trabalhado) para os tanques da Frog’s Leap. As garrafas de Cabernet Sauvignon, atualmente muito apreciadas, apareceram somente quatro anos depois. Hoje a Cabernet sai de vinhedos próprios, que desde os anos 1990 foram convertidos em orgânicos. Williams também trabalha com Merlot e com uma quantidade pequena da Petite Sirah. Vinhos não tão midiáticos como os de Turley, mas muito bem feitos e honestos que podem ser encontrados em vários bons restaurantes na Califórnia. A Frog’s Leap produz, em média, 700 mil garrafas a cada safra. E Williams não para de experimentar. O crítico Stephen Brook, da revista Decanter, conta que o viticultor mantém o bom-humor e chegou a produzir um Chenin Blanc pouco alcoólico que batizou de Leapfrögmilch (divertida paródia com os Liebfraumilch alemães) e até um estiloso Frögenbeerenauslese, este para emular os grandes Riesling, mas produzidos com uva botitrizada em plena área de Rutherford, uma das maiores apellations do Vale do Napa. Nos rótulos de John Williams, desde sempre, o elegante salto da rã. A criação é de Chuck House, que viria a ser um dos maiores designers de rótulos dos Estados Unidos. Tanya Scholes conta, em The Art and design of Contemporary Wine Labels/Santa Monica Press/2010), que a criação foi paga, evidentemente, com um par de dólares e outro par de caixas de vinho. Já o saltitante e informal moto da casa, “Time’s fun when you’re having flies”, é emprestado da seleção de citações do famoso sapo Kermit, o primeiro dos Muppets. O slogan “batraqueia” o ditado original “Time flies when you’re have fun”. E o tempo voa na Frog’s Leap. Williams e Lilly, a rã pet da vinícola, que coaxem seus tempos de prazer. Sapos também podem ser vistos no rótulo do vinho da uva Tsapournakos, da vinícola grega Voyatzi, da Macedônia, e na garrafa de um blend tinto da vinícola Twisted Oak, em Sierra Foothills, na Califórnia. No primeiro caso, o sapo coroado precisa de um beijo para virar príncipe. Tradução proposta: é preciso degustar a desconhecida Tsapournakos para mostrar sua escondida nobreza. O sapo da vinícola californiana homenageia um das histórias do grande escritor americano Mark Twain, “The Celebrated Jumping Frog os Calaveras County”. Dc de 13/12/2013

domingo, 8 de dezembro de 2013

Spätburgunder, a Pinot que fala alemão.

A Spätburgunder, sonoro nome da Pinot Noir na Alemanha, tem sido, nos últimos dez anos, a segunda grande força da viticultura de um país acostumado aos elogios por seus inconfundíveis vinhos da uva Riesling. Os números não mentem: a Alemanha continua a ser o maior produtor da Riesling, com 22.601 hectares de vinhedos, o que corresponde a 62,5% do total mundial. Variedade que produz excelentes vinhos e uma enxurrada de adjetivos. O Riesling é gracioso, fresco, cristalino, puro, refrescante, delicado, balanceado, frutado, mas também mineral. Os apreciadores desse vinho branco sabem muito bem disso tudo. Já sobre a Spätburgunder sabem menos, apesar de a cepa estar muito bem na classificação. A Alemanha já é o terceiro maior produtor da Pinot Noir, ficando atrás no ranking somente para a França e os Estados Unidos. São 79 mil hectares - 14,3% da área plantada em todo mundo. Em 1980, a Alemanha tinha somente 3,8% de vinhedos com a Pinot. Em 2008, essa porcentagem batia em 11,5%. Também estão em ascensão os vinhos alemães das uvas Silvaner, Weissbutgunder (Pinot Blanc) e Grauburgunder (Pinot Gris). A Spätburgunder é cultivada em território alemão desde o século XIII. Os mesmos monges cistercienses que a plantavam na Borgonha, também cuidavam da cepa ao longo do Reno. Por que então a Spätburgunder nunca foi mencionada com a mesma reverência da Pinot da Borgonha? É que, enquanto a Pinot Noir está perfeitamente casada ao terroir da Côte D'Or, na França, a Spätburgunder precisa lutar para amadurecer no clima mais frio da Alemanha, explica Eric Asimov, crítico do New York Times. Isso faz com que esse tinto alemão tenha seu charme, mas não a complexidade do vinho francês de mesma cepa. O que se assiste agora é à recuperação da antiga tradição, com os vitiicultores aproveitando a elevação das temperaturas no país. Os dois maiores nomes da Pinot hoje na Alemanha, segundo Asimov, são Klaus-Peter Keller, da Vinícola Keller, e Caroline Diel, da Schlossgut. A maioria de seus vinhos é composta de brancos, mas os tintos já estão em evidência em bons restaurantes de Nova York. "A mais elegante uva que temoos na Alemanha é a Riesling; a Pinot Noir é sua irmã", confessou Keller em entrevista a Asimov. Outros produtores de Spätburgunder de qualidade são August Kesseler, do Reinghau, e J.J. Adeneuuer, de Ahr. Nas famosas encostas do Mosel, uma das regiões da rainha Riesling, desde 1986 há vinhedos com Spätburgunder. Um deles, de grande qualidade, está integrado à Graacher Himmelreich, vinícola de Markus Molitor. A história da viticultura da Alemanha nasceu no Mosel, com os romanos, nos primeiros séculos da nossa era. Com historiadores e arqueólogos que os mandatários de Roma tiveram de plantar seus vinhedos na região de Trier , a chamada Roma Seconda, para aplacar a sede de milhares de sedentos legionários. DC de 6/12/2013

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Adega de 3.700 anos

A imagem parece mais uma obra de arte com pegada pop, mas na verdade é um mapa em 3D de uma das mais antigas adegas do mundo, local onde foram encontradas jarras de vinho de 3.700 anos. Estavam enterradas em Tel Kabri, perto da cidade de Nahariya, Norte de Israel. A área é ocupada desde o Neolítico, há 16 mil anos. Mas o material descoberto está nas ruínas de uma cidade dhabitata por cananeus, que ali viveram na Média Idade do Bronze (2000-1550 a.C.). O mapa é o resultado de uma varredura que emprega tecnologia de sensoriamento remoto chamada LIDAR. Foram-se os tempos românticos em que a única ferramenta do arqueólogo era uma pazinha. Os resultados desses “achados de verão” em Tel Kabri foram apresentados por um grupo de pesquisadores da Universidade George Washington e da Universidade de Haifa no encontro das Escolas Americanas de Pesquisa Oriental, na semana passada, em Baltimore, Os arqueólogos desenterraram em Tel Kabri, 40 jarros, com pouco mais de três metros de altura e capacidade para cerca de 50 litros de bebida cada. Acreditam estar diante de uma adega justamente pela concentração das “garrafas” em um mesmo local, no caso, próxima à entrada do pátio central da construção. Geralmente esses jarros são achados de maneira esparsa pelos sítios arqueológicos, muitas vezes na indicada “cozinha”. A primeira vasilha retirada da terra de Tel Kabri estava praticamente intacta, o que é também é muito difícil de acontecer. Depois de encontrarem o primeiro jarro, em julho de 2013, o trabalho de escavação tomou um ritmo frenético para que a descoberta pudesse ser apresentada nos Estados Unidos ainda este ano, contaram os pesquisadores a jornais americanos. O estudo da disposição das garrafas nessa adega poderá mais tarde ajudar a desvendar a própria composição do estoque real. Por ora, a datação já cravou que as peças remontam a 1700 a.C. Andrew Koh, professor da Universidade de Brandeis, já tem em seu laboratório em Waltham alguns cacos desses achados. A análise molecular dos resíduos revelou a existência de ácido tartárico, marcador fundamental e reconhecido da presença do vinho. Mas o estudo também sugere a presença de ingredientes como mel, hortelã, resinas e mesmo canela. Koh diz que os vinhos devem ter sido produzidos de forma sistemática, uma vez que há uma repetição dos ingredientes - e nas mesmas proporções. Koh levanta uma hipótese ainda mais interessante. Os vinhos de Tel Kabri seriam espelhos dos produzidos no Egito na época dos faraós, onde várias receitas já encontradas mostram o vinho como remédio. Há ainda dois "quartos" do palácio da Idade do Bronze para serem escavados em Tel Kabri e mais surpresas são aguardadas pelos arqueólogos para o próximo verão. DC de 29/11/2013

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Moscato de Bergamo

A esta altura do ano, os sommeliers do Palácio de Buckingham e do Castelo de Windsor já estão atarefados conferindo as garrafas de Moscato di Scanzo, tradicionalmente consumidas pela família real britânica nas festas natalinas. Uma relação antiga, registrada em documento da Bolsa de Londres de 1850: o Moscato di Scanzo era, à época, o único vinho italiano listado entre tantos outros célebres franceses de Bordeaux e, principalmente, vinhos do Porto, estes sim, paixões escancaradas (e fortificadas) dos ingleses. Bem antes da nobreza inglesa, os abastados da Renascença italiana já apreciavam o Moscato di Scanzo, preparado na região desde os romanos. Os historiadores do vinho se apegam a um testamento escrito pelo jurista e literato Alberico da Rosciate, de 23 de março de 1350, onde se lê: "Deixo a meu filho Tacino [a propriedade] La Bersalenda, onde é cultivado a moscatel vermelha". O Scanzo é um vinho doce, “vino di meditazione”, e é mesmo uma raridade. São apenas 60 mil garrafas anuais, hoje produzidas por 22 vinicultores, numa área não maior do que 32 hectares. “È poco pìu che un giardino”, dizem os produtores. Os vinhedos da Moscato di Scanzo estão todos concentrados na cidade de Scanzorosciate, em colinas à leste de Bergamo, na Lombardia. Graças à adesão de produtores ao Consorzio di Tutela Moscato di Scanzo, esse vinho tem vencido vários degraus em busca de qualidade. Tornou-se uma área de Denominazione di Origine Controlata (DOC), em março de 2002. E sete anos depois, foi elevada ao status DOCG, quando um “G” de Garantita consagra os vinhos italianos no seu maior patamar. Em nome da qualidade, as regras DOCG limitaram ainda mais a produção. São controlados não só o número máximo de cachos em cada parreira, mas também os níveis de maturação das uvas para a colheita. Os graus finais de álcool e de açúcar residual obedecem igualmente regras rígidas. O Moscato di Scanzo é produzido pelo método dos conhecidos passitos, ou seja, as uvas passam por secagem por pelo menos 3 semanas, processo durante o qual perdem cerca de 30% de seu peso de colheita. Somente depois desse appassimento é qua as uvas são prensadas. Após a fermentação, o vinho fica por pelo menos mais dois anos em contêneires de aço inoxidável ou de vidro. Durante parte desse envelhecimento, a bebida repousa com seus cachos e resíduos para garantir complexidade. As uvas moscatéis pertencem a uma grande família, com mais de 200 variedades, daquelas com casca de um amarelo pálido às completamente tintas, conforme registrou Jancis Robinson em Vines, Grapes & Wines (Mitchhell Beazley/2005). Os moscatos mais conhecidos, da área mediterrânea, são geralmente preparados com uvas brancas. Não é o caso da Moscato di Scanzo, uma variedade local com cascas bem escuras e altamente aromática, só comparável mesmo às que são base do Moscatel Roxo (Portugal) e do Moscato Rosa (Alto Adige, também na Lombardia). Alguns viticultores de Scanzorosciate criaram há pouco mais de dois anos a Associazione Produttori e Amici del Moscato di Scanzo para promover o vinho e a rica cultura gastronômica bergamasca. Seus membros juram que não se trata de um racha no consórcio. No alto, o logo da associação apresenta dois personagens da mais antiga cena de Bergamo: o frade Giovanni da Scanzo, carregando uma taça de moscato, e o jurista Alberico da Rosciate, ilustre personagem da Lombardia do século XIV. Esses mesmos cidadãos históricos estão no camafeu do Consorzio di Tutela Moscato di Scanzo. Diário do Comércio/8/11/2013

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O claret dos tupinambás

Uma bem-vinda "história do vinho no Brasil" estaria incompleta se não incluísse no seu primeiro capítulo pelo menos uma referência ao cauim dos índios tupinambás – esse fermentado de mandioca tantas vezes citado em obras de viajantes e antropólogos. Isso porque o cauim chegou a ser tratado por esses autores com a mesma reverência com a qual os europeus já dispensavam a seus "vinhos de verdade", convencionalmente, os fermentados do suco de uva. O francês Jean Léry aventurou-se em trajes de renda pela França Antártica de Villegaignon, enclave de curta duração na costa fluminense, no Brasil do século XVI. Chegou a conviver com tupinambás aliados do invasor e tratou dos costumes indígenas em Histoire d’um Voyage fait en la terre du Brésil (1578). Léry chegou a criar um verbo exotique, caouiner, para o ato de beber o cauim, conta José Roberto Whitaker-Penteado em O Folclore do Vinho (Centro do Livro Brasileiro/Lisboa/1980). Diz ainda que Léry foi adiante ao descrever o vinho dos tupinambás, talvez como um experiente degustador de Bordeaux faria com a sua garrafa: a bebida "é turva e espessa como borra, e tem, como que, o gosto de leite azedo. Há o cauim branco e o tinto, tal qual o vinho". Léry também tratou do cauim como fonte agregadora e ritualística, indispensável numa festa tupinambá. O mesmo status social do seu vinho europeu, propulsor de boas conversas, capaz de nos abrir para exercícios metafísicos. Com o cauim em mãos, não seria educado dizer aos canibais tupinambás que estava faltando Champagne na festa. A estudiosa inglesa Karen Bakewell garante que Montaigne (1533-1592), o célebre autor dos monumentais Ensaios, leu os relatos de Léry. Mas o contato de Montaigne (na gravura) com os tupinambás se deu também ao vivo, na tão festiva quanto constrangedora apresentação da etnia à corte francesa, em Rouen (Sting, séculos mais tarde, repetiria a cena ao levar o cacique caiapó Raoni Metuktire para a Inglaterra). Whitaker-Penteado também registra que Montaigne se interessou pelo testemunho de um criado, recém-chegado do Novo Mundo. E que toda essa curiosidade somada foi definitiva para que escrevesse o ensaio Dos Canibais. "Sua bebida extrai-se de certa raiz; tem a cor de nossos claretes e só a tomam morna. Conserva-se apenas dois ou três dias, com um gosto algo picante, sem espuma. É digestiva e laxativa para os que não estão acostumados, e muito agradável para quem se habitua com ela." Montaigne, convém lembrar, era de uma família de viticultores, chegou a ser prefeito de Bordeaux e viveu cercado de vinhedos. Em tom de blague, o crítico Sérgio de Paula Santos (1930-2010) escreveu: "(...) alguns vinhos prestam-se a combinações perfeirtas; Chablis, com ostras, Châteu d’Yquem, com foie gras etc, são 'casamentos' ideais. Para o cauim, nossa primeira bebida alcoólica, insalivado de mandioca preparado por nossas índias e cunhãs (...), qual seria o melhor acompanhamento?" O certo é que Léry foi acordado certa noite por um tupinambá de Villegaignon. Exaltado, o índio o convidava para a festa: queria lhe servir um braço humano assado. Como nas cenas descritas por Hans Staden. O vinho de uva foi apresentado aos índios brasileiros logo após a chegada das caravelas de Pedro Álvares Cabral. A carta do achamento, de Pero Vaz de Caminha, diz que os índios não quiseram comer nem pão, nem o pescado cozido oferecido a dois deles. Também não provaram o mel, os figos. E o vinho português servido numa taça também foi logo rejeitado. Mas Caminha, atento a outras cenas desses primeiros contatos, chegou a profetizar ao rei de Portugal, Dom Manuel, o Venturoso: "bebiam alguns deles vinho, e outros o não podiam beber, mas parece-me que, se a ele se acostumarem, o beberão de boa vontade". "A carta de Pero Vaz de Caminha autentica a intervenção dos portugueses na substituição do cauim pelo vinho. Grandes bebedores, transferindo-se para o Brasil, devem ter feito o possível para não perderem contato com Dioniso", escreveu Whitaker-Penteado, referindo-se ao deus grego do vinho. A cultura do vinho deve sua expansão também aos religiosos, que precisavam da bebida para suas celebrações. Nos registros de um tesoureitro quinhentista, aparece uma pipa de vinho destinada a um vigário de Olinda e a outro da Vila de Cosmos, em Pernambuco. Mas essa já é outra história. DC de 1/11/2013

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Vinhos com queijos... brancos!

Com a abertura do mercado para vinhos de quase todas as cepas e de todas as regiões do mundo e vista à diversificação da queijaria nacional (já há bons chèvres feitos por aqui, até mesmo alguns com a receita do demarcado grego feta), a enraizada e restritiva regra "queijo combina com vinho tinto – e no inverno" vai aos poucos sendo desfeita. Queijos mais duros e farinhentos, como o Parmigiano-Reggiano, sempre pedirão em casamento vinhos tintos mais encorpados, como, por exemplo, os toscanos Chianti e Brunello, até por afinidade regional. E o clima de lareira é realmente uma grande pedida. Mas queijos de cabra como o Boucheron ou o fora de série Crottin de Chavignol, apertam, como amantes, as mãos de vinhos brancos, cítricos e aromáticos da uva Sauvignon Blanc, especialmente aquelespreparados no Vale do Loire, no noroeste da França. E o cenário, nesse caso, pode ser al fresco, numa bela tarde de verão. Abaixo, adaptei algumas dicas de harmonização de queijos e vinhos dos críticos Jorge Lucki, Renato Machado e do irreverente Willie Gluckstern, fundador da Wines for Food, uma escola para consumidores de vinho em Nova York. Gouda, Emmenthal, Gruyère, Fontina d’Aosta, Tomme de Savoie (ou outros queijos semi-macios) : Borgonhas como Meursault (Chardonnay), Riesling alsaciano, Vouvray (Chenin Blanc). Montrachet, Boucheron, Valençay, Crotin de Chavignol, Chabichoudu Poitou (ou outros queijos de cabra, os chèvres): Sauvignon Blanc. "Prefiro os Sancerres e, em seguida, os Pouillys-fumés, ambos do rio Loire", escreve Renato Machado em Em volta do vinho (Editora Globo/2004). Stilton, Roquefort, Gorgonzola ¬(os blues, "nobres de veias azuis"): Porto, Sauternes, Olorosos, Pedro-Ximenez ou tacinha de Poire. Salgados e poderosos, esses queijos têm uma e só uma afinidade gastronômica: os vinhos doces, defende Gluckstern em The Wine Avenger (Fireside/1998). A harmonização por polos opostos explica esses casamentos excêntricos que se tornaram modelos, explica Jorge Lucki em A experiência do gosto (Companhia das Letras/2010). Além disso, ele reforça, o Stilton vai bem mesmo é com Porto Vintage, "o mais intenso e mais nobre dos Portos". Fondue (que na receita da Suíça leva os suaves e adocicados Emmenthal e Gruyère): Fendant ou um branco de boa acidez e não muito frutado. Brie, Reblochon, Camembert(ou outros maduros macios): Champagne e espumantes, mas também tintos frescos como Beaujolais, Saumur-Champigny (Cabernet Franc), Pinot Noir. "A restrição é com relação a vinhos tânicos, que imprimem algo de aspereza ao paladar e batem de frente com a textura mole dos queijos", escreve Lucki. Parmigiano-Reggiano, Gouda envelhecido, Pecorino, Grana Padano, Provolone : Bordeaux, Chianti, Brunello di Montalcino, Barolo, Barbaresco, Châteauneuf du Pape, vinhos à base de Syrah e Grenache(sul da França), Cabernet Sauvignon. Cheddar, o grego Kasseri, Comte e o espanhol Mahon (e outros queijos meio-duros): Montepulciano d’Abruzzo, Rioja ou vinhos à base de Cabernet Sauvignon. "As versões defumadas desses queijos, salgados e oleosos, podem ser acompanhadas sem fazer feio por vinhos alemães brancos frutados: Riesling, Scheurebe, e Gewürztraminer", anota Gluckstern. Saint-André, Boursault (e outros supercremosos): Champagne, mas também, por contraste, “vinho rico com queijo rico”, Sherry Oloroso, Tokay (Hungria) e Bual Madeira.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Nas barbas do Monte Ararat

Depois que os soviéticos se foram, há pouco mais de 20 anos, os agricultores da Armênia trataram de, literalmente, buscar suas raízes, as mais profundas delas enterradas nos seus então aparentemente perdidos vinhedos da autóctone cepa Areni, nas barbas do bíblico Monte Ararat. Nas últimas décadas, à época da colheita, as uvas voltaram a frequentar o altar das igrejas ortodoxas, abençoadas num rito cheio de simbolismo. Os pagãos ancestrais ofereciam os frutos em homenagem aos deuses. A prática foi absorvida ao longo dos tempos pelos fervorosos cristãos locais e hoje transformou-se numa cerimônia colorida dedicada à Virgem Maria, sempre no domingo mais próximo do dia 15 de agosto. Depois que o império soviético veio abaixo, é possível também se falar numa ressurreição do vinho da Armênia. Alguns rótulos já podem ser encontrados em vários países europeus e, mais recentemente, aportou com sucesso nos Estados Unidos. O vinho Areni Noir Karasi 2010, por exemplo, da vinícola Zorah, já foi devidamente incensado no site da crítica de vinhos Jancis Robinson, renomada especialista inglesa que é elegante defensora da abertura do mercado para variedades menos conhecidas. A região Transcaucásia, onde está a Armênia, é pesquisada pelos arqueólogos como local da domesticação da videira e de outras tantas plantas durante a "revolução neolítica". E se o alemão Heinrich Schliemann foi atrás da Antiga Tróia com a Ilíada de Homero debaixo do braço, alguns arqueólogos ligados à botânica se inspiram em passagem bíblica para formular a sua intrigante "Hipótese Noé": uma única videira, nascida nas escarpas do Monte Ararat, seria a mãe de todas as outras espalhadas pelo mundo, tal como uma Lucy vegetal. Isso porque no Gênesis está escrito que, após o Dilúvio, arca ancorada no Monte Ararat, Noé plantou a primeira videira, de suas uvas fez vinho e com ele embriagou-se. A primeira bebedeira registrada da história, como lembra o filósofo Michel Onfray. A Armênia orgulha-se profundamente de tudo isso. O Monte Ararat, que hoje está em território turco, sempre foi monumento natural da Armênia. A ancestralidade da vitivinicultura local ganhou ainda mais evidência com as descobertas arqueológicas em uma caverna perto da vila de Areni, em 2010: além de sementes de uvas carbonizadas, potes e cacos de cerâmica, os arqueólogos encontraram uma prensa e um tanque de fermentação escavado na pedra com reconhecidos 6.100 anos de idade. Para o arqueólogo molecular Patrick McGovern, da Universidade da Pennsylvania, a sofisticação desses achados da Idade do Cobre sugere que a tecnologia de produção de vinho começou provavelmente muito antes desse período. Pavel Avetisian, diretor do Instituto de Arqueologia da Armênia, atesta tratar-se do mais antigo complexo para produção de vinhos já escavado em todo o mundo. Foi esse peso da história que levou o iraniano Zorik Gharibian de volta da sua Itália de adoção à Armênia de seus antepassados para implantar a vinícola Zorah, que produz vinhos de extrema qualidade. Há doze anos cuida de vinhedos da cepa Areni Noir plantados nas encostas do Monte Ararat, a 1.400 metros de altitude. Zorik Gharibian conta que esse local pode ter sido o mesmo explorado por monges no século XIX. A ligação afetiva de Gharibian com a Armênia fez com que o projeto focasse nas cepas locais, ideia devidamente encampada pelo renomado enólogo Alberto Antonini (com assinaturas em vinhos de várias partes do globo, incluindo sua Toscana e os da bodega Alto Las Hormigas, na Argentina) e o viticulturista Stefano Bartolomei. Ambos integram desde o primeiro momento o time de Gharibian. A Armênia tem cinco zonas vinícolas e conta com dezenas de variedades autóctones. A Areni (parente da Pinot Noir) é a tinta considerada âncora dos atuais produtores. Há ainda a Garan Dmak, Nazeli e Chillar, além de uma branca especial, a Voskeat - "Pingos de Ouro". A vinícola Zorah também pensa em explorar as uvas brancas do país, mas esse projeto está sendo desenvolvido sem pressa. Por ora, Gharibian tem a Areni como menina dos olhos, a cepa de milhares de anos, provavelmente originária da região sul da Armênia. Além disso, trata de adaptar as práticas de vinificação indicadas pelos achados arqueológicos e a experiência dos locais. O vinho é primeiramente preparado em "karasì" (ânforas, em armênio), que são depois enterradas no solo. Apenas um terço é armazenado em barricas francesas e armênias. Gharibian tem certeza de que os karasì concentram a expressão da fruta. E é fiel ao mote: Zorah: 6.000 anos de história em uma garrafa. DC de 18/10/2013

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

A arte dos vinhos de Bordeaux

Robert Coustet e Jacques Sargos, estudiosos da cultura francesa, atualizaram seu livro Bordeaux, l’art et le Vin (Editora Horizon Chimérrique), publicado com sucesso há duas décadas. O minucioso trabalho dos historiadores relaciona obras de arte dos mais variados gêneros ao crescimento do próprio prestígio dessa mais que tradicional região vitivinícola da França. Foram pesquisados acervos mais ou m enos conhecidos de pinturas, desenhos, esculturas, detalhes arquitetônicos, máscaras, cartazes, rótulos e utensílios domésticos que registraram e deram identidade ao mundo do vinho de Bordeaux, em um período que se estende dos romanos aos dias atuais. E os motivos dessas obras de arte realçam os cenários dos châteaux - marca registrada de Bordeaux -, o folclore da colheita e seus personagens, os mestres de adega, os rituais de degustação, a sisudez ou a alegria dos rótulos, sem contar as mais diversas representações de Baco, o embriagante deus do vinho. Em entrevista a jornalistas à época do lançamento da nova edição, Coustet justificou a empreitada dizendo que importantes obras de arte contemporâneas ligadas ao vinho foram criadas nos últimos anos, além do que a pesquisa sobre o tema não para. A começar da Coluna do Vinho, do artista Ivan Theimer, na Place de la Victoire, em Bordeaux, inaugurada em junho de 2005.Imigrante morávio, Theimer construiu um imponente obelisco "retorcido" de 16 metros de altura, em mármore vermelho do Languedoc e detalhes em bronze, como a indicar a centralidade da produção local no mapa da vinicultura francesa. Há ainda na praça duas tartarugas, com cachos de uva na boca. O livro traz em destaque obras de artistas locais como Gustave de Galard, Buthaud René e Jean Dupas, mas também de nomes mais celebrados Monet, Daumier, Toulouse-Lautrec, Bartholdi, Juan Gris, Cassandra e Andy Warhol. (Ao lado, vemos Bacchus et l’Amour, de Jean-Léon Gérôme, 1850, que se encontra no Museu de Belas Artes de Bordeaux. Acima, gravura de um camponês do Médoc, de Gustave de Galard, 1818). DC de 11/10/2013

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Identidade e proteção

O que pode existir em comum entre uma panela de barro – aquela para a moqueca capixaba! – , moldada por oleiros do bairro das Goiabeiras, em Vitória (ES), e um vinho fermentado no Vale dos Vinhedos, entre Bento Gonçalves e Caxias do Sul (RS)? Ou ainda: o que é capaz de valorizar produtos tão diferentes entre si como o queijo enformado no município de Serro, no coração de Minas Gerais, os camarões da paradisíaca Costa Negra cearense, e o vinho que sai dos Vales da Uva Goethe, em Santa Catarina? Pois todos esses produtos são pioneiros na obtenção de uma especial certificação de origem, reconhecidos no catálogo de “indicações geográficas brasileiras”. Essa prática de identificação de produtos da terra, agrícolas ou mesmo culturais, já é histórica e determinante na Europa e mesmo em algumas regiões dos Estados Unidos. Na França pioneira, as appelations d'origine controlée (AOCs) foram fundamentais para o desenvolvimento e afirmação da própria indústria vinícola do país. Num outro extremo, por exemplo, vemos a moderna Grécia vencendo homérica batalha pelo seu – e só seu – queijo Feta. Como a luta que levou os arrozeiros do Litoral Norte Gaúcho a conseguir sua denominação de origem. No Brasil, a certificação ainda é uma área do direito de propriedade intelectual que começou a ganhar impulso somente nos últimos anos. A chancela vem do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), órgão que aprova e registra tanto as “indicações de procedência” (IPs) como as certificações ainda mais detalhadas, as chamadas “denominações de origem” (DOs). O INPI leva em conta as pesquisas de tipicidade dos produtos, defendidas por engajados produtores e técnicos da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). No ano passado, os vinhos e espumantes do Vale dos Vinhedos, na Serra Gaúcha, conquistaram sua DO, a primeira para vinhos no Brasil. “A DO revela a qualidade diferenciada, controle, rastreabilidade, garantia da origem e tradição”, diz Beatriz Junqueira, coordenadora de Incentivo à Indicação Geográfica de Produtos Agropecuários do Ministério da Agricultura (Mapa). Vale dos Vinhedos já tinha a DO na União Européia desde 2010 e foi o primeiro do Brasil a ter uma IP, em 2002. No campo da vitivinicultura, já tem suas indicações de procedência os vinhos finos e espumantes de Pinto Bandeira, nos municípios de Bento Gonçalves (91%) e Farroupilha (9%). Já a IP Vales da Uva Goethe, na região de Urussanga (SC), recebeu a IP em novembro de 2011. Todos à caminho da sua DO. A denominação de origem (DO) é um passo adiante na linha da certificação, um “carimbo” que indica características ainda mais específicas do meio geográfico (solo, clima, relevo) e também da história e do saber-fazer daqueles que plantam e produz vinhos por ali, muitos descendentes de imigrantes italianos que chegaram à Serra Gaúcha em 1875. Os vinhos DO do Vale dos Vinhedos precisam obedecer a regras específicas. A começar da exigência de que 100% das uvas sejam cultivados dentro dos limites do Vale dos Vinhedos. A uva Merlot, “variedade tinta que ao longo dos anos mostrou melhores resultados nos vinhos” , foi a eleita como representante da identidade da DO, mas também são permitidas Cabernet Sauvignon, Cabernet Franc, Tannat e Pinot Noir. Para os brancos, são usadas tão somente a Chardonnay e a complementar Riesling Itálico (os espumantes Vale dos Vinhedos podem levar a tinta Pinot Noir). Além dos varietais, há os vinhos de corte (assemblage), com as proporções rigorosamente definidas. Segundo dados da Aprovale, a associação de produtores do vale dos Vinhedos detentora da DO, as vinícolas integrantes não podem produzir mais do que 10 toneladas de uva por hectare para vinhos e 12 toneladas por hectare para os espumantes. Concentração que garante qualidade dos frutos e expressividade, como na poesia. DC de 4/10/2013

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

'Col' de novo na estrada

A Kombi vermelha dos Darricarrère continua na estrada. Em 1972, rodava o Brasil e suas praias conduzida pelos irmãos Jean Daniel e Pierre Darricarrère. De origem francesa, radicados no Uruguai, vieram estudar aqui “e foram conquistados pelos atrativos do Brasil”. Chamavam carinhosamente a Kombi de ‘Col’, diminutivo de caracol, pois era a divertida casa ambulante nas viagens em ritmo de paz e aventura. Acabaram ficando. Décadas depois, eis que a Kombi vermelha foi resgatada e volta triunfante à estrada, polida e com novíssima suspensão. Está hoje no rótulo do ReD, um dos vinhos criados pelo jovem enólogo Anthony Darricarrère, filho de Pierre. A sigla “tinta” ReD, para um corte bem balanceado de Cabernet Sauvignon e Merlot, acaba abraçando toda a vinícola Routhier & Darricarrère, criada em 2002 em Rosário do Sul, na Campanha gaúcha, a 100 quilômetros do Uruguai. A Kombi do rótulo tem ido longe: não só homenageia a liberdade da animada geração anterior como anuncia o espírito jovem do próprio vinho. Não à toa, a embalagem do ReD acaba de ser premiada com ouro na categoria voto popular profissionais pela Associação Brasileira de Embalagem (ABRE). O projeto é da publicitária e diretora de marketing da empresa Gabriela Darricarrère, mulher de Anthony, que trouxe humor e criatividade extra da Califórnia, onde formou-se como designer. E tudo isso é como se a Kombi tivesse engatado uma primeira. A Routhier & Darricarrère tem 6 hectares de vinhedos “na nova velha Campanha”, como diz Anthony. Ele ressalta, assim, uma espécie de realinhamento da região no cenário vitivinícola do Rio Grande do Sul, a partir do final dos anos 1990, com a integração de todos os seus municípios. A entidade Vinhos da Campanha tem 16 vinícolas associadas para a promoção dos vinhos locais. Ao empreendimento dos Darricarrère estão unidos os Routhier, sócios históricos nas plantações de cítricos. A tradição vinícola da família já tem dez gerações, iniciada em 1656 por Jean Darricarrère em Bayonne, capital do País Basco. Em meados do século 20, vamos encontrar André, avô de Anthony, na Argélia, cuidando de vinhedos da cepa Alicante Bouschet. Antes da guerra e da independência da Argélia, em 1962, Oran era um porto apinhado de barricas – vinhos da colônia exportados com orgulho para a Borgonha, contra a chamada “palidez” da Pinot Noir. André saiu de lá para plantar bergamotas no Uruguai. Anthony foi atraído para o mundo dos vinhos após uma visita aos primos enólogos na Califórnia, no ano 2000, com direito a escala no Vale do Napa, na vinícola Robert Mondavi. Formou-se no Curso Superior de Tecnologia em Viticultura e Enologia de Bento Gonçalves e, já como enólogo-estagiário, em 2005 voltou ao mundo dos Cabs dos Mondavi. Também tem aproveitado os ensinamentos e a experiência dos tios com vinícola em Bordeaux. O ReD tem um pouco dessas duas escolas, com destaque para o uso criterioso das barricas francesas, o corte de safras e tudo que representa o savoirfaire bordelaise. A Routhier & Darricarrère produz também o Província de São Pedro (100% Cabernet Sauvignon), além do Província de São Pedro (100% Chardonnay), este com o requinte de ter descansado por 12 meses em barricas de carvalho da Fôret-des-Voges, na Alsácia. Além disso, como explica Anthony, "após a fermentação, esse vinho foi criado sur lies, sobre as borras, processo que confere untuosidade e mineralidade ao vinho Chardonnay". A vinícola tem hoje capacidade para produzir 20 mil garrafas/ano, mas já tem planos de dobrar esse número para garantir a saúde financeira do negócio. Quer tomar um ReD “do seu jeito”, como sugere o rótulo? Consulte a vinícola e saiba onde a Kombi já os levou. Uma parceria com o site de vinhos Sonoma, do também jovem Alykhan Karim, colocou "o vinho da Kombi" em boa vitrine. Mas o ReD de Anthony Darricarrère não poderia estar em melhor companhia do que no restaurante Esquina Mocotó, na Vila Medeiros (SP), do chef Rodrigo Oliveira. Todos jovens, com desafios sincronizados, como que embarcados na mesma Kombi vermelha.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

O vinho ético da Sicília

O jornal italiano Corriere della Sera batiza de ético o vinho produzido pela vinícola Centopassi na Sicília. Isso porque trata-se de um vinho feito com uvas que nascem em terras confiscadas de mafiosos. É considerado ético também porque é elaborado na esteira da cultura biológica, natural, que respeita o meio ambiente e, principalmente, a tradição dos viticultores da região. Mas o apelo dessa origem – “terras dos chefões da Cosa Nostra” – por si só não bastaria para que os vinhos alcançassem tanto sucesso, como vem acontecendo em grandes feiras internacionais. “A nossa ideia fixa agora é a busca da excelência”, disse ao Corrieri o jovem Francesco Galante, que comanda a Centopassi, o braço vinícola da Libera Terra. O site da inglesa Jancis Robinson tem sido generoso com esses vinhos sicilianos enquanto outros críticos são unânimes em apontar os avanços na qualidade da bebida. As 200 mil garrafas produzidas pela Centopassi são vendidas na Europa, mas já chegam aos Estados Unidos e ao Japão. Nada mal para uma vinícola que teve sua primeira colheita em 2006. A Centopassi é resultante da fusão de três cooperativas (Libera Terra, Cooperativa Sociale Pio La Torre e Cooperativa Sociale Placido Rizotto) e trabalha em 90 hectares de vinhedos na região de Palermo e também na província de Trapani e Agrigento, terras legalmente confiscadas pelo estado italiano e confiadas a organizações populares. Além das uvas e dos vinhos, a Centopassi produz pastas, azeite e cultiva legumes. A Itália, em conjunto com a União Européia, já investiu 1,2 bilhão de euros em projetos de reaproveitamento e integração das terras dos mafiosos à economia formal na Sicília, mas também na Calábria, Puglia e Campânia. O governo não nega que está interessado nos empregos que as iniciativas podem gerar. No início do ano passado, foram notícia os investimentos do banco Unicredit feitos na recuperação de 150 hectares de vinhedos perto de Palermo, de propriedade de Michele Grego, o papa, morto na prisão em 2008, sentenciado por vários assassinatos, entre eles o do general Carlo Alberto Dalla Chiesa, conhecido pelo combate à máfia. Na descrição técnica de seus vinhedos, a Centopassi faz questão de incluir originais itens que mostram seu engajamento político. Nos vinhedos de Scheda Vigna Pietralunga, em Monreale, anuncia que as variedades grillo e chardonnay estão em terras de Simonetti, do clã dos Riina. A Scheda Vigna Muffoletto, onde se cultiva a trebbiano toscano, foi confiscada de Genovese, da família mafiosa de Giovanni Brusca. Alguns personagens da luta contra a máfia também aparecem nas fichas técnicas de seus vinhos varietais. O Rocce di Pietra Longa Grillo Terre Siciliane IGT 2012 (100% da uva Grillo) foi dedicado a Nicoló Azoti, sindicalista de Baucina, assassinado pela máfia, “para que sua memória possa ser difundida de maneira indelével na nossa consciência”. Terre Rosse di Giabbascio Catarratto Terre Siciliane IGT 2012 (vinho com certificação biológica) homenageia o dirigente comunista Pio La Torre, “por sua incessante luta pela paz e pela justiça”. Tendoni di Trebbiano Sicilia IGT 2011 é dedicado a “todos os cidadãos que, conhecendo a arrogância e violência da máfia, tiveram a coragem de reagir e levantar a cabeça restituindo dignidade e esperança à própria terra”. Giuseppe Peppino Impastato é um deles. Argille di Tagghia Via Nero d’Avola Terre Siciliane IGT 2012 faz uma homenagem especial a esse jovem morto pela máfia, “cujas ideais continuam apaixonando quem ama a liberdade”. O próprio nome da vinícola Centopassi (cem passos, em português) foi emprestado do filme I Cento Passi(2000), de Marco Tullio Giordana. O filme conta a história de Peppino, que enfrentou um chefão que morava a cem passos da sua casa. O jovem militante antimáfia que lutava via rádio a partir de Cinisi foi morto em 1978, durante campanha como candidato à prefeitura da sua cidade. Gaetano Badalamenti, mafioso traficante de heroína, mandou amarrar o corpo de Peppinonum trilho de ferrovia e o explodiu com TNT. P.S.: Vale a pena ler Palmento – A Sicilian Wine Odyssey (University of Nebraska Press/2010), no qual Robert V. Camuto dedica um capítulo inteiro a suas andanças por Corleone e toda Sicília e os primeiros passos da Centopassi. DC de 20/9/2013

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Festa na Califórnia

Setembro é um mês de festa nos vinhedos da Califórnia. Além das atividades ligadas diretamente à colheita, dezenas de eventos artísticos e culturais dão o tom da celebração da vinicultura local. E o velho "velho oeste" americano fica mais colorido e musical. É época em que parreiras, cubas de aço e barris dividem espaço com músicos, boa comida e apaixonados pelo vinho do mundo inteiro e muitas garrafas são abertas. O California Wine Month foi criado em 2004 por Bobby Koch, presidente e CEO do Wine Institute, com apoio do governo do estado, que anualmente decreta solenemente o período da festa. E a programação desse mês especial tem crescido a cada ano (confira em www.discovercaliforniawines.com / californiawinemonth). Mais de 20 milhões de turistas visitam a Califórnia anualmente, encantados tanto com as praias e as famosas ondas, quanto com os organizados vinhedos e as salas de degustação de suas mais de 3.800 vinícolas. As principais regiões (Mendocino, Vale do Napa, Sonoma, Sierra Foothills, Santa Cruz Montains, Monterey, San Luis Obispo e Santa Barbara) parecem ter sido desenhadas para o turismo. Ali podem ser vistas construções modernas, com jardins de esculturas, como os da vinícola Hall, em Santa Helena, ou instalações que emulam as antigas missões dos espanhóis – a vinícola Mondavi, no Vale do Napa, é o melhor exemplo. Há até uma uma Persépolis californiana, a Darioush Winery, com colunatas inspiradas nas construções do antigo Império Pérsia. Desde 1997 é comandada por Darioush Khaledi, um imigrante iraniano que tornou-se um exemplar empreendedor americano. Em dez anos, o número de bodegas na Califórnia cresceu 124%, segundo dados do Wine Institute, organização que promove a região e advoga por políticas oficiais em nome dos produtores. Afinal, a Califórnia é onde é praticada a "democracia do vinho", proclama o escritor Stephen Brook em seu The Finest Wines of California (Aurum/2011), querendo com isso mostrar a vivacidade da região, onde as grandes propriedades são poucas e a maioria das pequenas faz seus caprichados vinhos com uvas de terceiros. Neste mês de colheita, uma das uvas mais incensadas é a Zinfandel, a cepa americana por excelência. Mas há muita gente em busca mesmode famosos Cabs e Chards, a abreviação carinhosa para os Cabernet Sauvignon e os Chardonnay. A Califórnia é responsável por 90% da produção de vinhos dos Estados Unidos e cerca de 40% de suas frutas e vegetais. Nesse ambiente fértil desenvolveu uma cozinha criativa, atração dos circuitos das vinícolas. É graças à viticultura na Califórnia que os EUA são hoje o quarto maior país produtor de vinhos do mundo, atrás apenas da França, Itália e França. As garrafas americanas são basicamente consumidas internamente. Mas é notável ver que as exportações de vinho americano alcançaram US$ 1.43 bilhões em 2012, um crescimento de 2,6% em relação ao ano anterior.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Champagne no iPhone

O jornal The Washington Post não perdoa os excessos dos vinicultores da região de Champagne, no nordeste da França. E isso, desta vez, nada tem a ver com a defesa intransigente que os orgulhosos franceses fazem de seus vinhos e terroir. O colunista Brian Fung, do site de tecnologia The Switch chama-os de esnobes e os trata como radicais porque agora estão implicando, vejam só, com a cor champanhe com a qual a Apple quer "pintar" alguns modelos de iPhone. “Não podemos sequer dizer que a cor champanhe existe", satirizou Charles Goamaere, diretor de um comitê de defesa do vinho da Champagne. Para ele, champanhe é só vinho. E faz um alerta à Apple sobre esse artifício da cor. Como se a gigante de informática precisasse da carona etílica. Anos antes, como relata o jornalista Brian Fung, a patrulha já tinha avançado para além da indústria dos vinhos. Em 1987, o mesmo comitê processou a Perrier, que fazia o marketing de seus produtos com o slogan: "a champagne das águas minerais". Em 1993, os defensores do vinho da Champagne também correram atrás de um perfume homônimo da alquimia de Yves Saint Laurent. E nem mesmo um singelo iogurte lançado na Suécia em 2002, aromatizado com champanhe, passou no crivo do comitê. Agora, os iPhones. Há os que acreditam que Goamaere transbordou do mote justo de um antigo ditado champanês: "Il n'est champagne que de la Champagne" (Não é champanhe senão o da Champagne). Esse dito há mais de um século passou de ecos entre vinhedos para as tábuas da lei. Hoje somente o vinho produzido em condições especiais na Champagne pode usar esse nome. Não à toa, vinho produzido com mesmo método e mesmas cepas não é champanhe e, sim, cava (Espanha), prosecco (Itália), sekt (Alemanha), espumante (Brasil),.. Há até gente querendo arranjar um nome fantasia para o nosso. Imagine como os franceses ficaram irritados, e desta vez com razão, quando se depararam com uma garrafa do Korbel Champagne, um vinho feito no norte da Califórnia ! "É difícil reclamar da França por ser tão protecionista quando vemos e apreciamos as condições especiais sob as quais o real champagne é manufaturado", escreve o especialista Mark Oldman. As especificidades da região estão no solo calcário e no clima frio, que deixa as uvas com grande e desejável acidez. Champagne é hoje o vinho produzido em zona vinícola 150 quilômetros a nordeste de Paris, compreendendo o Vale do Marne, a montanha de Reims e a Côte des Blancs – área que abraça 167 municípios do Marne, 63 de Aube e 27 do Aise. São cerca de 25 mil hectares de vinhedos destinados às cepas pinot noir (35%), pinot meunier (35%) e chardonnay (27%). O processo (champenoise), extremamente trabalhoso, também é fundamental nessa rotina que busca a qualidade. São etapas complicadas que exigem grande dedicação. Para se ter uma ideia, a sequência de prensagens são delicadas e os vinicultores têm de induzir uma segunda fermentação, aquela que dá ao vinho a espuma, garrafa por garrafa. Foram justamente essas características especiais que os vignerons levantaram como bandeira na Revolta da Champagne, em 1911. Saíram às ruas, queimaram e depredaram lojas de negociantes que estavam adulterando vinhos da Champagne, com mostos de outras regiões. Foi o início de um movimento que levou às AOCs (Apellations d'Origine Controlées) – ou seja, delimitação de territórios e normatização de produção de cada vinho. Um movimento de proteção inicialmente de viticultores, ampliada para uma questão maior de preservação de uma identidade cultural. Os interessados na origem desse "sentimento francês" deve ler o completo estudo de Kolleen M. Guy When Champagne Became French (The John Hopkins University Press/2007). Um sentimento muito distante da atual teoria da cor do Comitê de Champagne.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

No ritmo da montanha

O forasteiro que trafega pela primeira vez por estradas da montanha Groenland, Western Cape, na África do Sul, vai se deparar com pelo menos uma placa inusitada. O desenho é de uma tartaruga. É um alerta para o motorista, anunciando a rota da tartaruga andarilha, animal endêmico da região, chamada também de tartaruga bico de papagaio, devido as cores vibrantes de sua boca aquilina. Pois a “road walker” foi parar com velocidade nos rótulos do Slowine, um projeto coletivo de vinicultores que têm seus vinhedos justamente nos arredores da onipresente montanha. Ali a vida ainda é governada pela natural marcha das estações. E os vinhos produzidos de maneira sustentável, dentro desse ritmo "slow", ajudam a manter um estilo de vida de qualidade. Um dos princípios do Slowine é produzir vinhos acessíveis para que as famílias da região possam desfrutá-los com amigos, de preferência diante de uma boa refeição compartilhada. A tartaruga dos rótulos evoca uma fábula de Esopo, onde o réptil e uma lebre apostam corrida, vencendo o mais lento. E a moral da história: devagar e sempre. Os objetivos do Slowine são praticamente os mesmos consagrados pelo movimento Slow Food, idealizado na Itália em 1986 por Carlo Petrini e chancelado por manifesto em Paris, três anos depois. Inspirado no caramujo símbolo do Slow Food, o Slowine tratou de colocar em cena a simpática tartaruga. Hoje a Slow Food é uma associação internacional que promove a cultura da comida e do vinho em dezenas de países e, antes de tudo, luta contra a devastadora “estandartização do gosto”. O movimento teve seus primeiros passos numa manifestação contra a abertura de um McDonald’s em plena Piazza di Spagna, um dos cartões-postais de Roma. No Brasil, um entusiasta do movimento, o médico e crítico de vinhos Sérgio de Paula Santos (1930-2010), sempre escreveu contra o que chamava de “mcdonaldização da vida”. O movimento, entretanto, não é mais mero contraponto ao fast food. Petrini diz que “todos têm o direito fundamental ao prazer e por consequência a responsabilidade de proteger a herança dos alimentos, da tradição e da cultura que tornam esse prazer possível”. O Slow Food e também o Slowine baseiam-se no conceito de ecogastronomia – "um reconhecimento das fortes ligações entre o prato e o planeta". Quando, em 2005, Paul Cluver e seu enólogo Andries Burger iniciaram o projeto Slowine, com outros vitivinicultores sul-africanos, tinham em mente que esses vinhos não poderiam ser produzidos em larga escala e que as uvas precisavam ser cultivadas e manejadas dentro de conceitos ecossustentáveis: castas regionais nasceriam nos vinhedos do projeto naturalmente, sem manipulações e sem química. Só assim seriam expressão de uma região protegida por lei, como é a Biosfera Kogelberg, que inclui a montanha onde estão os vinhedos. É importante lembrar que o sonhador Paul Cluver é um respeitado neurocirurgião que, antes de produzir vinhos quase artesanais, entrou na agricultura plantando maçãs e fabricando sucos, mas sempre dedicado ao estudo da produção holística. Participam hoje do Slowine a vinícola Luddite, tocada por Niels e Penny Verburg, especialistas na casta Shiraz; a Beaumont, uma propriedade familiar situada perto da idílica cidade de Bot River; e a Theewaterskloof Cellars, que é o braço vinícola da tradicionalíssima cooperativa Villiersdorp e que, em 2008, incorporou e administra o projeto iniciado por Paul Cluver. Os vinhos produzidos de maneira sustentável ganharam destaque no Slow Food com a inauguração de um site específico. Além disso, o movimento continua a publicar guias do “vini slow” (a próxima edição estará disponível em outubro). Esses guias Slowine mudaram o eixo da crítica enológica, tratando de colocar o produtor como protagonista, alinhando valores culturais e de sustentabilidade de cada vinícola. Uma seção do livro mostra esforços de enoinclusão: nas páginas sob a rubrica Vini Quotidiani estão vinhos de qualidade que podem ir para a adega do consumidor por menos de 10 euros.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Rosés de J. A. Liebling

O jornalista J. A. Liebling (1904-1963), que durante décadas escreveu na New Yorker, recebeu a roseta da Legião de Honra francesa por suas reportagens sobre a Segunda Guerra Mundial. Esteve na França em 1939, durante a ocupação alemã e, em 1944, acompanhou as tropas aliadas na libertação de Paris. Seus relatos pungentes tinham o poder de fascinar, salvando de certo modo a reputação do romancista frustrado. Escreveu também sobre o mundo “eletrizante e sujo” do boxe e conseguiu projeção com um perfil do líder religioso negro Father Divine. Mas foi com as crônicas sobre a boa mesa e os vinhos da França – aonde sempre voltava em peregrinação de devoto – que Liebling marcou época, apresentando à elite americana o gosto dos franceses e influenciando críticos do seu país. Em Between Meals (no Brasil, Fome de Paris, editado pela Record), o jornalista trata, em ritmo de autobiografia, de suas andanças como gourmet apaixonado. Ele transitou muito mais pela “camada dickensiana” de Paris, seus becos e bordéis, do que pelos grandes salões e festas de literatos e celebridades. Não à toa, Fome de Paris é comparado e tornou-se um contraponto a Paris é uma Festa de Hemingway. O centro do livro de Liebling é o de sua formação como gastrônomo e enófilo, no período (1926-1927) em que foi “quase” um aluno da Sorbonne, às custas de mesada paterna. Logo descobriu que suas disciplinas de interesse não estavam nos bancos da universidade, mas nas mesas de pequenos restaurantes, bistrôs e cafés onde, acreditava, batia a genuína alma francesa. “O dólar estava cotado a 26 francos, e o pesquisador, se dispusesse apenas de determinada soma – digamos, seis francos – para gastar, em breve estabelecia para si mesmo se, por exemplo, uma meia garrafa de Tavel supérieur, a três francos e meio, e o coração de boi assado na panela, com nabos amarelos, a dois francos e meio, lhe davam mais ou menos prazer que um contra-filé, a cinco francos, e meia garrafa de ordinaire, a um franco. Ele poderia descobrir que o coração, com seu sabor forte e intenso, e sua estranha textura, lhe agradava quase tanto quanto o bife; e já que o Tavel era esmagadoramente melhor que o vinho barato, ele se sairia bem ao pedir o primeiro par. Ou talvez descobrisse que preferia a tal ponto o generoso e sangrento contra-filé que poderia aceitar o amargo corriqueiro no lugar do Tavel.” A resolução dessas equações foram fundamentais no aprendizado de Liebling. Rechonchudo e careca, muitas décadas, pratos e taças depois, Liebling já era íntimo dos grandes rótulos de Bordeaux e da Borgonha, mas sempre fazia reverência aos rosés de Tavel, vinhos incensados por Luís XVI e Balzac. Os rosés eram moda nas décadas de 1950 e 60, mas entraram “em decadência vítima de seu próprio sucesso”, explica o crítico Jorge Lucki em A experiência do Gosto (Companhia das Letras/2010). Muita produção teria resultado em vinhos rosés “banais”, que passaram a ser produzidos no pós-guerra não só no sul da França, mas em todo país em esforço desajeitado de reconstrução também da sua indústria vinícola. Vinhos certamente diferentes dos provados por Liebling na sua juventude. A França de Liebling não existe mais, mas os rosés de Tavel – “o único rosé digno", como proclamava – sim, produzidos agora com competência técnica pelos mesmos viticultores que fazem bons tintos e brancos. A pequena Tavel, vila situada no Vale do Rhône, ao norte de Avignon, produz rosés há séculos, originalmente com uvas Grenache e Cinsault . Hoje são permitidas a Syrah e a Mourvèdre. Os vinhos rosés são elaborados a partir de uvas tintas, maceradas com as cascas por um tempo breve (um flerte, segundo o romancista). As cascas são retiradas antes que o vinho fique tinto. Na paleta do clássico O Gosto do Vinho, de Emile Peynaud, os rosés aparecem em muitos tons, como o rosa claro de uma peônia, os que vão para o pêssego e os indefectíveis cor de salmão, dependendo da habilidade de cada enólogo. Todos lembram, entretanto, a poética fala dos marinheiros que transportavam o Tavel no século XV. Estamos trazendo "un peau de soleil dans l'eau froide" (algo como "um pouco de sol em água fria"), diziam nos portos. Neste exato momento, em algum restaurante do Mediterrâneo, alguém certamente está brindando com rosé – seja ele o Tavel de Liebling, o Bandol da Provença, o Anjou do Vale do Loire, o Marsannay da Borgonha, um rosado espanhol ou um rosato da Itália. Diário do Comércio de 23/08/2013

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Milagres de Ribera del Duero

Milcampos Viñas Viejas é um vinho de Ribera del Duero, região vinícola no norte da Espanha, preparado com uvas Tempranillo colhidas de antigas parreiras, de baixa produção e, por isso mesmo, garantia de concentração de qualidades. Foi assim que a Bodega La Milagrosa fez um dos seus mágicos serviços. O vinho saído daquele terreno xistoso às margens do Douro, da safra 2010, recebeu 94 pontos da Wine Advocate do crítico Robert Parker, coroando assim o trabalho de formiguinha de uma cooperativa surgida em Ribera del Duero em 1962. O Milcampos ganhou a estrada. No Brasil, importado pela Grand Cru, alcançou ainda mais visibilidade por meio de sites especializados em garimpar preciosidades, como o simpático Sonoma. E, a R$ 55 a garrafa, chegou a ser imbatível na relação custo-benefício, um caro quesito para aqueles apreciadores de vinhos que são simples mortais. La Milagrosa é uma das cerca de 250 vinícolas da região que investem em qualidade, caprichando para que seus vinhos não tenham exagerada madeira. Os vinicultores da então predominante Rioja que se cuidem. Durante pelo menos 100 anos, antes de 1980, os vinhos da Bodega Vega Sicilia eram sinônimo de Ribera del Duero, na região autônoma de Castilla y León – "um posto avançado de fabricação de vinhos finos no meio de campos de beterrabas", como descreve Jay McInerney. Ali eles fazem vinhos desde 1846. Os Vega Sicilia, com seus inigualáveis blends de uvas locais e francesas, têm, digamos, vida própria, como se a região já não fosse tão importante assim. São tidos como os melhores vinhos de toda Espanha. Hugh Johnson trata-o como o Latour espanhol. Cultuados em todo mundo, os Vega Sicilia já nasceram caros – uma garrafa de seu raro rótulo Unico (safra 2002, com 95 pontos RP) não sai por menos de R$ 500. Mas a casa contribuiu, e muito, para despertar e elevar o nível de preocupações de outras propriedades à sua volta. Hoje, quando se fala em Ribera Del Duero, além da Vega Sicilia, é inevitável citar o produtor Alejandro Fernandez e sua vinícola Pesquera. Na lista de bodegas de excelência estão ainda a Dominio de Pingus, Abadia Retuerta e Bodegas Emilio Moro. Já na propriedade de Hermanos Perez Pascua, grandes críticos americanos foram apresentados a vinhos inigualáveis, devidamente acompanhados do mais típico cordero lechal al horno – uma harmonização perfeita para esses tintos espanhóis. A jovem Aalto, vinícola criada em 1999 por Javier Zaccagnini e por Mariano Garcia, respeitadíssimo ex-enólogo da Veja Sicilia, também entra na seleta lista, como grande revelação. E temos mais milagres na região. Mesmo diante do cenário de grave crise econômica vivida em toda Espanha, os vitivinicultores de Ribera del Duero têm motivo para comemorar. O número de garrafas produzidas neste primeiro semestre de 2013 cresceu 3,2% em relação ao mesmo período do ano passado. O avanço é medido pelo Consejo Regulador de la Denominación de Origen Ribera del Duero, a entidade que, entre outras tarefas, controla com mão de ferro a qualidade dos vinhos ali produzidos. O Consejo expediu nos primeiros seis meses deste ano 41.156.419 etiquetas (que são obrigatoriamente colodas nas garrafas). É o quinto ano consecutivo de avanço, com a expectativa de que o recorde de 2012, de mais de 70 milhões de unidades, seja mais uma vez superado este ano. O Consejo está instalado desde março de 2011 numa sede de 4.115 m² em Roa, Burgos, prédio que une o antigo ao moderno e celebra também este bom momento da região. A vitivinicultura da região de Ribera del Duero tem raízes na era romana, mas os vinhedos mais modernos são herança da Idade Média, plantados por monges franceses no monastério cisterciense em Valbuena de Duero. Uma das provas da antiguidade da atividade é um mosaico do século V, na pequena e tranquila vila Baños de Valdearados, que retrata o Triunfo de Baco. Pois parte do mosaico (na reprodução) foi levada por ladrões, como se a primeira página do grande livro espanhol de vinhos tivesse sido rasgada.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Doces combinações

O único problema com os chamados vinhos de sobremesa é ... a sobremesa, escreveu em tom de blague o romancista americano Jay McInerney, com a convicção de que esses vinhos, tão bons e requintados, têm vida própria. Não é difícil concordar com ele. Outro autor, Kevin Zraly, faz um jogo de palavras: doces satisfações podem advir tanto do vinho com a sobremesa quanto do vinho como sobremesa. Zraly é enólogo e educador. Durante anos formou sob essa ótica sommeliers e enófilos no Windows on the World, o famoso restaurante destruído nos ataques de 11 de setembro em Nova York. (Há uma posição radical sobre o assunto, a de Hemingway. Conta a lenda que, em dia de toureiro enfezado, o escritor teria disparado: homem que come sobremesa é porque não bebeu o suficiente). Alguém tem alguma dúvida sobre a personalidade emancipada de um Porto ou de um Sauternes ? Um gole deste último, de preferência com uma fatia de foie gras, sempre encabeça aquelas divertidas listas das coisas indispensáveis a degustar antes de bater as botas. Negligenciados durante muitos anos, os vinhos doces passaram a ganhar espaço na carta de restaurantes, avançando hoje nas prateleiras das importadoras. A demanda também têm estimulado vinícolas, inclusive no Brasil, a reservar algumas fileiras para o seu rótulo de sobremesa. Os vinhos doces eram "como aquele parente gentil que de alguma maneira fica encoberto por outro na foto da família", compara o escritor Mark Oldman. Hoje já conseguem aparecer na fotografia. Porto e Sauternes são os arquétipos dos vinhos de sobremesa. Mais tradicional, o vinho do Porto tem sua elegância e poder baseados na fortificação (recebe aguardente vínica durante a fermentação). É o mais inglês dos vinhos portugueses. Ele pode ser um vinho de meditação, companhia solitária na leitura de um livro. Mas quando acompanhado, no queijo Stilton encontra a harmonização mais clássica. E pode ir à mesa com sobremesas à base de chocolate amargo. No batalhão fortificado do Porto estão alinhados o Sherry espanhol, o Madeira da ilha portuguesa de mesmo nome, e o Marsala da Sicília. Para o Sherry, recomenda-se um perfumado sorvete de baunilha ou uma sobremesa de figos O Madeira vai bem com torta de nozes ou uma sobremesa de chocolate ao leite, ou mesmo um doce regado com café, como o tiramisu. Os doces de figo também combinam com o Marsala (é claro que os marinheiros do almirante Nelson, que tinham o Marsala como vinho da vitória, não tinham essa possibilidade!).. O segundo arquétipo de vinho de sobremesa é o Sauternes de Bordeaux. Mais aristocrático, sempre surpreende os iniciantes com seu inusitado currículo. Afinal, como é possível um vinho de cor e doçura inimitáveis ter origem numa coisa feia dessas: uvas apodrecidas depois de atacadas por um fungo? Até parece história de queijo! Um néctar esplendoroso resulta da vinificação de uvas sémillion e sauvignon blanc completamente atacadas pelo Bortrytis cinerea, a chamada "podridão nobre". A mágica é que o fungo desidrata cada bago, concentrando açúcar. Na fermentação, nem todo açúcar se transforma em álcool e é essa a graça e a doçura natural da história, que tem o Château d'Yquem como emblema de excelência. O Sauternes é o maior representante da categoria "latest harvest", a colheita tardia, com uvas superamadurecidas. Na mesma linha do Sauternes estão os Tokaji da Hungria e outros vinhos doces elaborados no Vale do Loire e na Alsácia, além do Beernauslese e do Trockenbeerenauslese, feitos tanto na Alemanha quanto na Áustria. Zraly indica para o acompanhamento desses vinhos tortas de frutas, o indefectível crème brulée, pudim de creme, bolos de avelãs ou, por contraste, queijo Roquefort. Na lista de irresistíveis e versáteis vinhos de sobremesa com vida própria estão os vini dolci italianos, sendo o mais incensado deles o Vin Santo, tradicionalmente preparado na Toscana com as uvas Trebbiano e Malvasia. Pelo menos um historiador garante que o nome desse vinho está ligado aos monges que iam de casa em casa atendendo a necessitados e doentes. O vinho servido que gerava conforto teria recebido a alcunha de "vinho santo" (Matt Kramer tem pelo menos outra meia dúzia de versões). No rito do vin santo estão os biscotti, que são mergulhados sem vergonha nas pequenas taças. McInerney lista em Bacchus and Me (Vintage Books/Random House/2002), vários outros vinhos doces do Piemonte, como o Moscato d'Asti, o Picolit do Friuli, sem esquecer o Recioto de Valpolicella, preparado a partir de uvas passas, como os passitos e moscatos da ilha de Pantelleria, na Sicília. Santorini, na Grécia, também faz seus vin santo. Mas o doce "incandescente" Mavrodaphne de Patras, que conquistou o escritor Henry Miller antes da Segunda Guerra, é talvez o par mais harmonioso para seus doces de pistache. Do outro lado do mundo, vinificados na Alemanha e no Canadá a partir de uvas congeladas no pé, os icewines passaram a viajar o mundo em pequenas garrafas de pura doçura.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Barbaresco, ele mesmo.

O Barbaresco, vinho 100% Nebbiolo, de vinhedos que crescem nas colinas da Langhe, perto da Alba-das-trufas-brancas, a sudeste de Turim –, não é um pequeno Barolo ou Barolo Jr., apesar de toda história e vizinhança. É essa a defesa sempre necessária que fizeram recentemente alguns sites internacionais, incluindo o didático Snooth . O perfumado e mais leve Barbaresco se ombreia com o Barolo e são ambos grandes clássicos italianos e de todo mundo, enquanto o outro "B" do Piemonte, o Barbera, também galga degraus em qualidade. São os vinhos ideais para acompanhar a gastronomia local, como o bolito, os risotti, os gnocchi alla bava, as pastas enevadas de trufas e o stracotto – aquele cozido que tem um quê de paraíso. Quando em 1787 Thomas Jefferson visitou o Piemonte, essa parte da Itália abraçada à França, ele ainda encontrou um vinho da Nebbiolo doce como o Madeira, adstringente no palato como um Bordeaux e pungente como o Champagne. Era época em que Jefferson anotava tudo o que poderia ser útil para os independentes Estados Unidos - até o modo de preparar um mascarpone não lhe escapava, como conta o enólogo Gerad Asher em Vineyards Tales - Reflection on Wine (Chronicle Books/1996). Décadas mais tarde, a enciclopédia britânica ainda tratava o vinho piemontês como brusco. As mudanças desse vinho, que até então não tinha identidade formada, aconteceram em 1840, quando o enólogo francês Louis Oudart, a convite da mulher de um produtor piemontês, converteu o "doce" Nebbiolo da região de Barbaresco em um vinho seco, envelhecido em então inéditas barricas de carvalho, como os grandes vinhos franceses. Foi um sucesso. Asher conta, num capítulo inteiro dedicado ao Barbaresco, que até Cavour, o primeiro-ministro piemontês à época do rei Vittorio Emanuele II, ativista central do Risorgimento italiano, gostou da ideia e aplicou-a rapidamente a seus vinhedos. O fato é que as práticas de Oudart foram mais rapidamente adotadas pelos vinicultores de Barolo do que pelos de Barbaresco. E o resultado foi que o novo estilo Nebbiolo entrou primeiramente no mercado através das garrafas de Barolo. É verdade também que a área plantada pesou nessa conquista. Hoje, apesar de novos vinhedos em Barbaresco, a área cultivada está perto de 680 hectares, menos que a metade da área de seu vizinho famoso plantada com a Nebbiolo. O trabalho do francês Oudart foi consolidado em 1880 por Domizio Cavazza, um professor respeitado na região e fundador de respeitadas escolas para vinicultores em Alba. Em 1894 ele fundou a cooperativa Produttori del Barbaresco (www.produttoridelbarbaresco.com.). "Pela primeira vez então o Barbaresco passou a ter uma identidade publicamente proclamada", escreve Matt Kramer, no seu Making Sense of Italian Wine (Running Press/2006). Esses produtores cooperados, descontado o período em que foram forçados a parar pelas autoridades fascistas, continuam em plena atividade e trabalham em metade dos vinhedos de Barbaresco (mas não na apelação toda, que inclui Treiso e Neive). São 52 membros produzindo 500 mil garrafas por ano. O renome internacional do Barbaresco, entretanto, foi conquistado, a partir dos anos 1970, graças ao trabalho incansável de Angelo Gaja, que viajou o mundo garantindo mercados e preços. Vários de seus rótulos estão disponíveis nas grandes importadoras do País, incluindo os Langhe Rosso, que são assim identificados porque levam um toque da Barbera local. Na lista de notáveis produtores de Matt Kramer, entram Gaja, os Produttori del Barbaresco, mas também Piero Busso, Ca'Romé di Romano Marengo, Castello di Neive, Ceretto, Giuseppe Cortese, Bruno Giacosa, Ugo Lequio, Marchesi di Grésy, Moccagatta, Paitin di Pasquero-Elia, Cantina del Pino Pio Cesare, Prunotto, Roagna, Sottimano, La Spinetta e Vietti. DC 1/8/2013

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Na Umbria, de Lamborghini.

Os vinhos da Umbria já conseguem brilho próprio, saindo da sombra da sua exuberante vizinha, a Toscana. A viticultura nessa região conhecida como "coração verde" da Itália é uma tradição tão antiga quanto os etruscos, garantida pela qualidade do seu solo. Os monges beneditinos também gostavam desse terreno calcário e arenoso, que séculos depois, a partir dos anos 1930, passou a abrigar vinhedos e oliveiras a perder de vista, estas nas colinas de Assis e Spoleto. Hoje, graças ao empenho de jovens empreendedores e também ao microclima muito parecido ao da Toscana, a Umbria conseguiu status DOCG (Denominazione di Origine Controllata e Garantita) para duas regiões, com seus vinhos top Sagrantino di Montefalco e Torgiano Rosso Riserva. Além desses vinhos de altíssima qualidade, há aqueles provenientes de 11 regiões DOC (Denominazione di Origine Controllata): Assisi, Colli Altotiberini, Colli Amerini, Colli del Trasimeno, Colli Martani, Colli Perugini, Lago di Corbara, Montefalco, Orvieto, Rosso Orvietano e Torgiano.Colli é a palavra italiana para colinas. Durante boa parte da sua história política e econômica, a Umbria esteve sob o peso de Roma, no Lazio, que é a outra região limítrofe (a Umbria também faz divisa com Le Marche). Já a Toscana, ao sul e a oeste, exercia sua influência cultural, onde entram as uvas e os vinhos. O enólogo Nicolas Belfrage acha que esses registros talvez sejam um pouco injustos com a Umbria. Afinal, ele escreve em The Finest Wines of Tuscany and Central Italy (Aurum/2009), "não era o mais influente cristão do segundo milênio, São Francisco de Assis, um homem da Umbria? " Belfrage também cita a riqueza de arte e cultura presente em cidades medievais como Orvieto, Todi, Spoleto e a capital Perugia. E pergunta por fim: "Não são a sagrantino, do lado das tintas, e a grechetto, do lado das brancas, as duas uvas mais interessantes da Itália? " Testes de DNA já mostraram que a sagrantino é uma uva autóctone da Umbria, sendo a variedade com mais concentração de taninos em todo o mundo. A cepa é estudada em minúcias graças principalmente aos esforços de Marco Caprai, que toca a vinícola fundada pelo pai Arnaldo Caprai, em 1971. A propriedade, que é líder na produção do Sagrantino de Montefalco, abriu parte de seus vinhedos aos pesquisadores da Universidade de Milão. Em nada menos do que 30 hectares da propriedade estão crescendo e se multiplicando 300 diferentes clones da sagrantino. Os DOCG Sagrantino de Montefalco são produzidos nas colinas de Montefalco, ao sul de Perugia, nas versões secco e doce (passito. A vinícola Adanti é outra casa bem avaliada pelos críticos e que encanta o mundo com seu passito. É da pequena vila de Torgiano o elegante DOCG Rubesco Torgiano - Vigna Monticchio, que só em anos de boa safra saem das adegas da família Lungarotti. Tocada hoje por duas herdeiras do fundador Giorgio Lungarotti, a propriedade produz cerca de 2,7 milhões de garrafas por ano, incluindo o seu Sagrantino di Montefalco. Já o Orvieto, elaborado com as uvas procanico (versão local da trebbiano) e malvasia, talvez seja o vinho mais conhecido internacionalmente, responsável por 80% dos vinhos DOC produzidos na Umbria. A vinícola Barberani, em Baschi, é uma das mais bem cotadas, apresentando ao mercado seu cru Castagnolo (50% grechetto, mais procanico, chardonnay, vermentino, verdello e riesling). A beleza da paisagem da Umbria chamou a atenção de Ferruccio Lamborghini (1916-1993) nos anos 1970. Numa de suas férias, o construtor de eficientes tratores e reluzentes máquinas esportivas, resolveu adquirir 100 hectares entre o lado sul do Lago Trasimeno e a vila medieval de Panicale. Hoje a família administra, sem limite de velocidade, um campo de golfe, uma fazenda de agroturismo e 32 hectares de vinhedos, com destaque para as uvas sangiovese e merlot. Seus rótulos IGT (Indicazione Geografica Tipica) são o Trescone, Torami, Era e o mais conhecido Campoleone (50% sangiovese e 50% merlot).

quinta-feira, 11 de julho de 2013

'Soave' Harry's

O lendário e insuspeito Harry's Bar de Veneza, desde 1931 funcionando na Calle Vallaresso, a dois passos da Piazza San Marco, já recebeu em seu salão escritores, maestros, divas, cineastas, músicos, atores, cantores, coroados, e todo tipo de celebridade (incluindo espivetados turistas). Ali todos são tratados com elegância, principalmente aquela emanada do serviço impecável e da simplicidade dos bons ingredientes, tanto os usados nos famosos drinques quanto os que compõem seus pratos de resistência – filosofia defendida com rigor pelo fundador da casa, Giuseppe Cipriani. O compositor Arturo Toscanini esteve por lá em 1936, quando assinou o livro de ouro da casa, época da criação do disputado drinque Bellini, Prosecco encorpado com purê de pêssegos brancos. Hemingway era freguês de carteirinha e lá batizou de Montgomery "o mais seco e delicioso martini do mundo". O diretor Vittorio De Sica levava ao Harry's a netinha para um cinematográfico Risotto alla Primavera ("com arroz carnaroli, não o arbório"). Nos anos 50, a condessa Amalia Nani Mocenigo chegou ao bar e pediu a Giuseppe um prato de carne crua, rico em ferro, indicado por seu médico diante de uma anemia profunda. Giuseppe foi à cozinha e de lá trouxe finíssimas fatias de carne de boi, cobertas com um molho especial à base de maionese caseira, com traçado à la Kandinsky. Nascia ali o carpaccio, que ganhou esse nome em homenagem ao pintor veneziano Vittore Carpaccio (1460-1525), que em suas obras empregava fortes tons de vermelho. Um coleção de quadros de Carpaccio era exibida em Veneza à época da visita da condessa. Arrigo Cipriani, filho de Giuseppe, tem mantido o charme do Harry's, com sua decoração sóbria de madeira escura, os mármores cinzas do balcão, e certo clima art deco. No restaurante, "que é antes de tudo um bar", estão disponíveis dois vinhos da casa, escolhidos a dedo entre os produtores da região. Chegam à mesa em tradicionais garrafas de vidro e são responsáveis por 80% dos vinhos vendidos no Harry's. O Soave vem de Verona. O Cabernet Sauvignon, do Friuli. "Penso que as pessoas criam um pouco de fetiche em relação ao vinho", escreve Cipriani em The Harry's Bar Cookbook (Bantan Book/2006). Nesse livro, Arrigo conta histórias dos tempos de seu pai e abre segredos de todas as famosas receitas do Harry's, incluindo a do "molho universal" usado no carpaccio. Os garçons são orientados a fornecer a carta de vinhos apenas àqueles que insistem. Cipriani tem pavor dos comensais que pedem vinhos caros por puro esnobismo. Mas é claro que, "para quem sabe o que quer e está preparado para pagar por isso, nós temos uma relativamente pequena, mas cuidadosamente selecionada lista de vinhos finos", italianos e americanos (certamente em homenagem ao Harry que foi o primeiro sócio de seu pai e que lhe valeu o nome de Arrigo). Para acompanhar o emblemático presunto com figo, Arrigo sugere um Tocai (Jermann) ou um Chardonnay (Kendall-Jackson). Para a versão veneziana do Croque Monsieur (frito em óleo de oliva), Soave (Anselmi) e Chardonnay (Pindar). A sopa de cardo, segundo Arrigo, deve ser escoltada por um Chardonnay (Lungarotti) ou um Fumé Blanc (Valley Oaks Fumé/Fetzer). Para o Tagliolini con Tartufi, Barolo "Zonchera" (Ceretto) ou um Cabernet (Clos du Val). E para o seu famoso carpaccio, Arrigo? Um italianíssimo Vintage Tunina (Jerman) ou um vinho da americana Zinfandel (Fetzer). Diário do Comércio de 12/7/2013

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Uvas do jardim de Mandela

Contam que os olhos de Nelson Mandela se acenderam e logo aquele peculiar sorriso se agigantou quando recebeu, pouco depois de seu aniversário de 94 anos, a meia garrafa de The Parable. Mais ainda quando soube de toda empreitada para sua produção. Um ou dois goles de vinho doce era uma prática diária de Mandela às refeições, relata Joanne Gibson em artigo na The World of Fine Wines. Mas o daquela garrafa tinha um gosto muito diferente. O The Parable, afinal, era uma inédita homenagem a Mandela: tinha sido produzido com as uvas colhidas do jardim que ele próprio plantou na ilha Robben, a prisão de segurança máxima onde ficou encarcerado por quase duas décadas. Mandela havia revelado na sua autobiografia Longa Caminhada Até a Liberdade, que logo que chegou a Robben, ilha que fica a 11 quilômetros de Cape Town, tratou de pedir às autoridades permissão para plantar e cuidar de um pequeno jardim num dos pátios da prisão. Muito vento e pouca chuva eram um grande desafio, mas conseguiu colher naquele terroir inóspito pequenos tomates, pimentões e cebolas. Foi também ali, naquele restrito pedaço de terra, que Mandela escondeu outra semente – justamente os manuscritos de seu livro. Quando em 1982 foi transferido de prisão,de Robben para Pollsmoor, Mandela deixou o jardim por conta do amigo Elias Motsoaledi, como ele um dos grandes nomes do ativismo anti-Apartheid. Foi quando as sementes da "árvore de uvas" floresceram. Joanne Gibson conta que, durante uma visita turística à ilha, em 2005, o vinicultor sul-africano Philip Jonker e sua mulher depararam-se com as antigas parreiras, que cresciam "selvagemente" em diversos pontos da prisão. Nascia ali a ideia de produzir com uvas daquelas plantas um vinho em homenagem aos líderes políticos que cuidaram daquele "vinhedo" durante anos. Jonker, da vinícola Weltevrede, em Robertson Valley, primeiro venceu os obstáculos burocráticos, deixando claro que não havia na iniciativa nenhuma intenção de lucro próprio. Depois, venceu os problemas agrícolas. Numa primeira viagem de reconhecimento, em 2008, funcionários da sua vinícola identificaram no total sete parreiras. Ficaram abismados como elas puderam sobreviver ali, num terreno de conchas quebradas, com os fortes ventos do Cabo das Tormentas. Em outra visita de trabalho, foi a vez de podá-las. Em 2010, apareceram os primeiros cachos. Eram 94 no total, contou Jonker, mas nenhum deles sobrou diante da fúria de pássaros do oceano. Na safra seguinte, foram 228 cachos, protegidos com redes, mas todos eles também foram devorados pelos pássaros. A safra usada no The Parable é resultado da colheita de 2012. Foram pesados 180 quilos de uvas colhidas em Robben e cuidadosamente transportadas para as instalações da Weltevedre, a 200 quilômetros dali. Jonker comemorou ainda o fato do vinho ser lançado justamente nos 100 anos da fundação da ANC (sigla em inglês do Congresso Nacional Africano), em 1912, o partido político de Mandela. Além do The Parable, as uvas, de variedades ainda não identificadas, renderam o The Manuscript,feito no tradicional Méthode Cap Classique Brut (o espumante sul-africano). Além de Mandela, receberam a garrafa de 375 ml, o professor Jakes Gerwed, chairman da Fundação Mandela Rodhes, Ahmed Kathrada, chairman do Museu de Robben, e o presidente americano Barack Obama. Restaram só 13 meia-garrafas, que serão vendidas futuramente em leilões para arrecadar fundos para caridade. Circulou o mundo na semana passada uma fotografia de Obama visitando a cela onde Mandela esteve confinado. Da pequena janela, Obama tinha a visão do pátio e também do pequeno e florescente jardim plantado por Mandela. O nome de Mandela está ligado aos vinhos também por meio da vinícola House of Mandela, fundada por suas filhas em 2010. Há quem critique a iniciativa pela exagerada exploração da imagem de Mandela. Apelação na mesma linha da grife de familares, exoticamente batizada com o nome da autobiografia de Mandela. Diário do Comércio de 5/7/2013

quinta-feira, 27 de junho de 2013

À mesa com Apollinaire

Guillaume Apollinaire (1880-1918) também era um gourmand. O escritor e poeta modernista dos Caligramas não só recebia amigos artistas no seu pequeno apartamento parisiense no Boulevard Saint-German, como com eles ("os exilados de Montparnasse") dividia bons pratos e vinhos em bares e restaurantes da capital: Le Crucifix, Cardinal, Téléphone, Zut, Balzar, Onimus, La Closerie des Lilas ... "Eu tenho notado... que as pessoas que sabem comer nunca são idiotas", defendia assim suas inclinações enogastronômicas e seu círculo de amigos. Ao lado de um fogãozinho de duas bocas, numa acanhada mesa, Picasso e Max Jacob podiam degustar em sua companhia uma perfeita lagosta, já que os frutos do mar eram de sua predileção. Gostava também de um pot-au-feu dos mais franceses, sem descartar a cozinha do mundo – com ênfase para as salsichas da Córsega ("charcruterie do Olimpo") e o risotto piemontês –, que muitas vezes ganhava suas crônicas no Mercure. Hors concours era seu omelete com ouriços do mar. Apollinaire tinha uma coleção de livros de gastronomia e de receitas (muitos pescados nos buquinistas às margens do Sena). E conseguia surpreender na cozinha com os segredos que extraía dos chefs dos restaurantes que frequentava. Para não fazer feio com as musas, tinha sempre à mão Le Manuel Culinaire Aphrodisiaque, e não raro um purê de alcachofras (com um toque de creme bechamel) era prato de resistência. O Chez Baty, bem na esquina dos bulevares Montparnasse e Raspail, era um dos restaurantes preferidos de Apollinaire e de Picasso. O proprietário Pére Baty era considerado pelo poeta "o último verdadeiro comerciante de vinhos" de Paris. O restaurante se destacava muito mais por sua adega do que por sua comida. Era no Chez Paty, antes da Primeira Guerra, que se davam as reuniões editoriais da Les Soirées de Paris, revista literária e de crítica de arte fundada em 1912 por Apollinaire e um grupo de amigos. E se havia pouco dinheiro para imprimir a revista, não faltavam alguns trocados para uma garrafa de Chambertain de 7 francos ou uma pequena taça de fino Clos Vougeot, por 55 centavos. Um dos melhores perfis já escritos do "Apolinnaire gourmand" é de autoria da escritora e editora Heather Hartley, ela também poeta, no livro A Tin House Literary Feast – Food & Booze (Tin House Books/2006). "A comida permeia sua obra [de Apollinaire] – às vezes, é apenas uma estrofe, outras vezes, é o principal ingrediente de uma história, ou simplesmente uma gota de licor escuro para terminar uma linha de poesia (...) Seu apetite para a comida não pode ser separado de seu apetite por palavras", escreve Hartley. Em In a Crowded Kitchen, ela descreve um banquete de 80 talheres oferecido por amigos a Apollinaire em 1916, dois anos antes da morte do poeta. Festas voluptuosas eram comuns em Paris até pouco depois dos anos 20, sem que grandes motivos existissem a não ser mesmo o gosto pela reunião divertida de escritores, poetas, escultores, boêmios e pintores. Nesse banquete a Apollinaire, o cubista Juan Gris era o mestre de cerimônia, chamando atenção para o cardápio, todo ele batizado com títulos e temas de obras do poeta: Méditations esthétiques en salade; Acrelin de chapon à l'Hérisiarque, Vin Blanc de l'Enchanteur, Vin Rouge de la Case d'Armons, Champagne des Artilleurs. E no fim da lista, Alcoóis. Todos. (Alcools é também uma coleção de poemas de 1913, sobre o amor, o fluir do tempo e dos sentimentos, uma das obras-primas do primeiro modernismo.) Apollinaire sempre escrevia aos amigos relatando suas bebedeiras. As leves, de vermute ou vinhos do Reno. E as mais severas quanto mais inventivas, como uns tais coquetéis carabinés , misturas de molho de carne ao porto, absinto, suco de limão ou licor de zimbro. O fato é que ele podia cair nas carnes, nos vinhos ou numa cumbuca de bouillon e, em seguida, se sentar para trabalhar até tarde. Seus amigos diziam que era justamente o profundo amor pela mesa que levava Apollinaire a produzir poemas vívidos, sensuais e inovadores.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Histórias de 25 anos

Os editores da Wine Enthusiast Magazine, popular revista americana de vinhos, estão celebrando os 25 anos da publicação lembrando as reportagens que marcaram época. Escolhidas e resumidas a dedo, não só registram a maneira como os americanos têm se relacionado com a bebida nas últimas décadas, mas colocam na linha histórica as grandes mudanças e tendências internacionais desse universo – da "malbecmania" que consagrou vinhos argentinos de Mendoza em território americano, à ascensão da uva Pinot Noir (e queda da Merloot), estimulada pelo filme Sideways. A seleção passa pela curiosa marca nacional celebrada em 2002. Nesse ano, com a instalação da vinícola Pointe of View na Dakota do Norte, todos os cinquenta estados americanos passaram a ser produtores de vinho, em que pese o fato de algumas vinícolas importarem as uvas de outros estados. A Wine Enthusiast teve motivos para festejar logo de cara, em 1989, quando a baronesa Philippine Rothschild associou-se ao "ítalo-californiano" Roberto Mondavi para criar a Opus One, vinícola instalada na Highway 29, que corta o Vale do Napa. Era o início de uma preocupação com a qualidade dos vinhos, contaminação da França para os Estados Unidos. A WE se orgulha da sua célebre Value Issue, nascida curiosamente em 1990, em anos de fartura. Atendia na verdade a uma demanda natural de consumidores americanos, que, por princípio, sempre estão atrás das melhores ofertas e oportunidades. A Wine Enthusiast acompanhou de perto o aumento do consumo de vinhos tintos nos Estados Unidos puxado pela divulgação do chamado "Paradoxo Francês". O programa 60 Minutes mostrou em 1991 como o consumo moderado de álcool poderia trazer benefícios à saúde, a exemplo do que acontecia na França. Em uma semana, as vendas subiram 40%. Até hoje o resveratrol presente nos taninos das uvas tintas é saudado quase como panaceia nos EUA. Na onda de avanço da cultura do vinho, destaque para a entrada em cena do diretor de cinema Francis Coppola, em 1995, que comprou a história vinícola Inglenook pela soma também histórica de US$ 9 milhões, tornando-se o "Godfather of Napa", com mais apoio aos vinhos de qualidade. No ano seguinte, o símbolo foi Joe Torre, capitão do Yankees, que ganhou a capa da edição de outubro celebrando o baseball, o hot dog, a torta de maçã e ... o vinho", mostrando com todos os exageros de marketing o vinho já como parte da cultura americana tanto quanto o Chevrolet ! Foram também capa da revista chefs badalados como Mario Batali, Emeril Lagasse, Alain Ducasse e Gordon Ramsey, todos ligando o mundo gastronômico à esfera do vinho, uma tendência sem volta que teve os Estados Unidos como forte incentivador e protagonista. A história da WE também é um pouco a história da ascensão do vinho australiano no mercado americano, a partir de 1996. Nesse ano, a Lindeman's sozinha era responsável por 700 mil das duas milhões de caixas de vinho australiano importado. Em 2011, a Yellow Tail registrou a exportação de 8 milhões de caixas. É claro que a acomodação desse mercado já está acontecendo com a crescente melhoria da qualidade do vinho australiano. E como não podia deixar de ser, a última das histórias dos 25 anos da WE tem no foco a "sede vermelha": mais de 1,6 bilhão de garrafas foram vendidas na China em 2011. Não à toa, a Wine Enthusiast lançou no ano passado uma edição especial em mandarim. Na capa, Yao Ming, que foi uma grande estrela do basquete americano e, apreciador de vinhos, é dono de uma vinícola no Vale do Napa. DC de 21/6/2013

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Vinhedos estrelados

De bicicleta, o cantor STING e sua mulher Turdie observam o cenário exuberante da Toscana – patrimônio da humanidade. Estão em Figline Valdarno, entre vinhedos, oliveiras, uma criação de abelhas e de porcos cinta senese. Sting diz que agora é dali daquele histórico território que tira o alimento para sua mesa e para sua alma de artista. Il Palagio é a propriedade de 120 hectares do casal, onde se produz vinhos desde o século XVIII. Hoje é área para a cuidadosa agricultura biodinâmica dos Sting. Na loja que abriram nas imediações, vendem o mel de que têm tanto orgulho, salsichas especiais desses porcos de Siena, azeite e os vinhos que passaram a fazer parte de sua rotina. Dois rótulos de STING ganharam nome de suas canções Sister Moon (uvas Sangiovese, Merlot e Cabernet Sauvignon) e When We Dance, este com um blend de uvas típicas da região (Sangiovese, Canaiolo e Colorino). Condecorado aos pés do grande David de Michelangelo, na Galleria dell’Accademia de Florença, o cantor se diz orgulhoso em estar na Toscana, diante de tantas raízes históricas. E há coerência entre o manejo de sua vinícola e seu discurso prévio em defesa da sustentabilidade. (É certo que Raoni ainda não foi visto por lá). Detalhes do dia a dia de vinicultores-celebridades como Sting recheiam tanto revistas especializadas como as de tipo Caras. Alguns foram parar no recém-lançado Celebrity Vineyards: From Napa to Tuscany in Search of Great Wine (Flexibound/2013), de Nick Wise. Nessa obra, até o presidente THOMAS JEFFERSON (1743-1826) ganhou uma homenagem pelos vinhedos que plantou e que seguem em produção em Monticello. Num movimento iniciado há algumas décadas nos Estados Unidos, não só cantores, mas roqueiros, atores e ex-esportistas passaram a ver no mundo do vinho espaço para negócios e glamour, em relações mais ou menos intensas. MADONNA nunca foi vista com uma tesoura nas mãos. E dificilmente participou de uma colheita em vinhedos na Península de Leelanau, no Michigan, onde seu pai construiu em 1996 a Vinícola Ciccone. Mas "irrigou" a propriedade e aparece na lista de personalidades do mundo do vinho. O ítalo-americano MÁRIO ANDRETTI, ao se aposentar das pistas de corrida, passou a cuidar de vinhedos no Distrito de Oak Knoll, no Vale do Napa, numa propriedade de 16 ha, perto de Yountville. Acompanha de perto a série de vinhos Montona Reserva e orgulha-se da velocidade com que os prêmios chegaram. A família do cineasta Francis Ford COPPOLA produz vinhos na Califórnia desde 1975. Foi um caso de amor à primeira vista. Ele e a mulher, Eleonor, foram passar uma temporada de verão na tradicional propriedade Inglenook, em Rutherford. Diante das lembranças de tradição familiar ligada aos vinhos e da montanha de dinheiro conquistado com seu O Poderoso Chefão, COPPOLA decidiu comprar a propriedade e, mais tarde, restaurar seu château. A Inglenook foi criada em 1879 por Gustave Niebaum, jovem capitão filandês que enriqueceu com uma companhia mercante no Alaska. Até que a mulher californiana o convenceu a mostrar ao mundo que os vinhos locais poderiam ser tão bons quanto os europeus. Coppola batizou a Inglenook ressuscitada de vinícola Niebaum-Coppola – hoje o cineasta está feliz com o resgaste jurídico da marca Inglenook. Tem produzido vinhos finos com a uva Cabernet Sauvignon em Rutherford, praça dos grandes “cabs” americanos. Toca também a mais popular Francis Ford Coppola Winery, em Geyserville, mais que uma vinícola, um grande parque. Rubicon é o vinho de coração de Coppola. Ao entrar no ramo, o cineasta lembrou-se da célebre marcha de César a Roma. Cruzar o rio Rubicão implicava que não havia mais retorno. Todos os vinhos do império Coppola são hoje de uvas de seus próprios vinhedos, incluída a Zinfandel. A atriz OLÍVIA NEWTON-JOHN lançou sua vinícola Koala Blue em 1983 na Austrália, e a ideia era mostrar ao mundo o poder do terroir australiano. Já BOB DYLAN fez uma parceria com o italiano Antonio Terni, viticultor e fã ardoroso do cantor (não se sabe bem em que ordem). Produzem na Fattoria Le Terrazze, em Numana, perto de Ancona, uma série de vinhos, os Planet Waves, inspirados notítulo de um álbum seu de 1974. Dylan assina os rótulos. MICK HUCKNALL, vocalista líder do Simply Red, foi mais longe, até a Sicília, para montar a sua vinícola. Desde 2001 a Il Cantante faz seus vinhos em 20 ha de solo vulcânico, nos terraços ao redor do Etna. Usam as uvas locais Nerello Mascalese e a Nerello Cappuccio e acompanham o boom desses vinhos produzidos na Sicília. O ator ANTONIO BANDERAS está produzindo suas garrafas em Villalba de Duero, em Burgos, no coração de Ribera del Duero. O projeto da Vinícola Anta é de 1999. A arquitetura da bodega, em vidro e madeira, inteiramente sustentável, é um show. Banderas entrou no negócio em 2009 e acrescentou o Banderas ao nome da casa. O ator francês e vigneron (como faz questão de ser chamado) GERARD DEPARDIEU bate todas essas celebridades em número de propriedades. Tem sua base no célebre Château Tigné, entre Angers e Saumur, no Vale do Loire. E L'Esprit de la Fontaine, no Languedoc-Roussillon. Cuida ainda de vinícolas na Argentina, Marrocos, Argélia, Espanha, Sicília e Estados Unidos.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Do Líbano, pela concórdia.

O jovem vinicultor libanês Marc Hochar comanda na próxima terça-feira-feira (11), no restaurante Arola-Vintetres, em São Paulo, um jantar de harmonização com cinco vinhos do Château Musar, vinícola tocada pela família há mais 80 anos em Ghazir, no Vale do Beka'a, região que o pai de Marc, Serge Hochar, chama de “Jardim do Eden", um terroir de herança bíblica. Os vinhos dos Hochar vêm da Fenícia. O proposital anacronismo acima é, evidentemente, uma homenagem aos Hochar, associando-os aos ancestrais fenícios, que produziam disputados vinhos na Antiguidade, no mesmo território hoje libanês onde a família cuida de seus vinhedos. Os “homens dos mantos vermelhos” (como diziam os gregos) eram também corajosos mercadores que zarpavam com seus navios em crescente rota comercial pelo Mediterrâneo. Estão aí 750 ânforas de vinho e azeite que os robôs do oceanógrafo Roberto Ballard há poucos anos encontraram e fotografaram nas profundezas do mar – carga de um navio fenício, com destino ao Egito, que naufragou 2.800 anos atrás diante de Askhelon (hoje Israel) – sinais concretos da vitalidade mercantil desses povos. Os Hochar também são bons mercadores. E a presença de Marc em São Paulo é a versão mais moderna e atualizada desse ímpeto comercial. Marc costuma dizer que enquanto seu irmão Gaston cuida do "líquido", ele cuida da "liquidez" do Château Musar. Hochar vem a convite do antenado importador Ciro Lilla, que desde 1995 tem rótulos do Château Musar no catálogo da sua Mistral. Serge Hochar, pai de Marc, um engenheiro que estudou enologia em Bordeaux, sob as vistas de Emile Peynaud, foi o primeiro timoneiro da família. Sempre seguiu os princípios do pai Gaston, que defendia, já nos anos 30, todos os esforços para a recuperação da qualidade dos vinhos libaneses. O primeiro vinho de Serge Hochar foi engarrafado em 1959, de uvas colhidas em 1956. Até a década de 70, suas safras escorriam nas mesas elegantes da Beirute de ares franceses, e pouca coisa também nas casas fraternas de outros alegres libaneses. Essa lógica foi quebrada com a guerra civil (1975-1990) e outras escaramuças no Oriente Médio. As vendas ao mercado interno desabaram. Mas a hipótese de diminuir a produção nunca foi colocada sobre a mesa dos Hochar. Mantê-la era empunhar uma bandeira contra a hegemonia da violência e da intolerância. Serge decidiu correr todos os riscos. Em meio a bombas e rajadas de fuzis, terreno minado pelo ódio entre muçulmanos e cristãos, conseguiu arduamente manejar seus vinhedos e transportar suas uvas para a vinificação. Nesse momento, Serge teve de assumir o leme agora de um barco com carrancas, rumo à Europa. Com uma carga de tintos, o vinicultor desembarcou para a Bristol Wine Fair de 1979. Teve a sorte de encontrar fundamental reconhecimento nas papilas do crítico britânico Michael Broadbent e do jornalista Roger Voss. Nesses vinhos, as uvas de terroir libanês se expressavam em vinhos de “receita” francesa. Os tintos do Château Musar são basicamente feitos com a "estruturante" Cabernet Sauvignon, Cinsault e Carignan (mais marcante que a plantada no Languedoc-Roussillon, segundo os Hochar). O veredicto de Broadbent viajou o mundo e passou a conquistar outros países. Por isso é que se diz que Serge recolocou os vinhos libaneses no mapa da vinicultura internacional. Seu destemor em enfrentar as agruras da guerra lhe valeu também o título de homem do ano da revista Decanter, o primeiro da série inaugurada em 1984. Nas mesmas ondas desbravadas pelo Château Musar viajam hoje outros vinhos do país, também de grande qualidade, principalmente os produzidos pelo Château Kefraya, na vila de Kefraya; pelo Château Ksara, a vinícola mais antiga de todo o Líbano, iniciada com jesuítas em 1857, com magníficas adegas subterrâneas romanas de mais de 2 quilômetros; e o Domaine des Tourelles, em Chtaura. O interesse internacional pelo terroir libanês tem despertado ainda novos negócios no país. A moderna vinícola IXSIR, em Basbina, iniciada em 2007, tem explorado seis terrenos libaneses, de 400 a 1.700 metros de altitude, de norte (Batroun) ao sul do país (Jezzine). Notícias dão conta que a sangrenta guerra civil na Síria já transborda para o território libanês, levando ao país bombas e mais de 180 mil refugiados. As provocações sem fronteiras do Hezbollah também acirram ânimos. O Château Musar continua em frente, como sempre. Como a dizer que é preciso viver. DC de 7 de junho de 2013

quinta-feira, 30 de maio de 2013

The New York Wines

Frank J. Prial (1930-2012) escreveu sua primeira coluna sobre vinhos no New York Times em 1972, época em que os americanos ainda compravam seus vinhos em garrafões, sem distinção. Repórter que tratava dos assuntos da cidade de Nova York, ao ser convidado para a tarefa pelo editor do jornal, Prial respondeu que iria tentar por alguns meses. Afinal, não se sabia nada do interesse dos leitores sobre vinhos. Sua crítica, iniciada com a coluna semanal Wine Talk, durou mais de 40 anos. Era a primeira vez que um jornal americano de interesse geral, fora do âmbito das publicações especializadas, se aventurava nessa direção. Foi um sucesso que acompanhou não só a evolução do interesse do americano pela bebida, mas a da própria transformação da indústria vinícola dos Estados Unidos, encabeçada principalmente pelo empresário vinicultor Robert Mondavi (1913-2008). “Muitos desses vinhos de garrafão [dos anos 70] recebiam nomes ligados ao Velho Mundo – Chablis, Chianti, Rhine Wine, Hearty Burgundy – porque, antes de tudo, o vinho era pensado como europeu por natureza. Na verdade, muitos dos históricos vinhedos da Califórnia foram plantados por imigrantes europeus que não queriam deixar milhares de milhas entre eles e sua bebida diária”, explica Eric Asimov, atual crítico de vinhos do NYT. Foram nessas décadas de pioneirismo de Prial que as regiões vinícolas da Califórnia, como o Vale do Napa e o Russian River Valley, se firmaram como das melhores do mundo, “bebendo” na experiência e na “carta” de novas uvas europeias e globais. Foi também o período no qual os Estados Unidos passaram a olhar para os vinhos finos de Bordeaux e os envelhecidos Borgonhas (isso antes do lançamento da Wine Spectator e do advento Robert Parker Jr. e a propagação irremediável de seu ranking), tornando-se hoje os maiores consumidores de vinhos do mundo. É essa a história que pode ser revivida em The New York Times Book of Wine (Sterling Epicure/2012) – uma elegante coleção de 156 artigos assinados tanto por Prial quanto por Asimov, passando por nomes como Florence Fabricant, R.W. Apple Jr., William Grimes e Frank Bruni. Howard G. Goldberg, editor do livro, derrama-se em elogios a Prial: um genial observador da "Comédia Humana", que tinha tolerância zero em relação aos pretensiosos, realizando punções com a palavra, mas sem inflingir dor aos leitores. Causou certa comoção entre especialistas uma sua coluna de 2000 intitulada “So Who Needs Vintage Charts” (Então, quem precisa de uma tabela de safras?), na qual ele decretava certa inutilidade dessas tabelinhas com avaliação das safras por países, que durante anos ele mesmo arduamente compunha e atualizava. A inutilidade vista por Prial viraria óbito para os leitores do NYT. A tradição antiesnobismos de Prial encontrou continuidade na pena de Asimov, “educadamente cético”, “comentarista pró-consumidor”, que aproximou o vinho da mesa dos simples mortais, tratando-o também como um objeto cultural, como observou Howard. O primeiro artigo trata justamente do saca-rolhas, essa peça fundamen tal da cultura do vinho, que pode variar do prático waiter's friend de US$ 10 a sofisticados e bem desenhados como o australiano Code-38, de US$ 410. Asimov vai no ponto: todos abrem igualmente a sua garrafa para o prazer. Durante toda a sua carreira, Prial foi crítico da linguagem cifrada dos escritos sobre vinhos – “um subgênero da língua inglesa” que tem sua versão e seus excessos em todos os idiomas. E servem mais para afastar do que para atrair novos consumidores. Prial também ficava atônito com as descrições lidas nas cartas de vinhos dos restaurantes. “Uma Pol Roger 1979 custa US$ 35, e no Anotherthyme é isso o que você vai levar com seu dinheiro: “lírios frágeis abençoados, com permanência de granito. Fabuloso, Champagne de vintage intemporal". O oxímoro 'timeless vintange' soa até bem diante dos lírios e do granito, consolava-se Prial. Mesmo toda essa carga de adereços pode estar fadada ao fracasso. Segundo o "herege" Asimov, o vinho degustado e descrito pelos críticos, o que estes encontraram na taça, num dia "x", num salão "y", pode estar oceanicamente distante do vinho bebido pelo mortal apreciador na sua informal mesa de amigos. Sem contar que a "variação do gosto" pode se dar numa onda ainda mais curta, no período do encontro, quando o vinho é capaz de vibrar e criar surpresas, epifanicamente, com a rapidez e a fugacidade de um pirilampo, como já escrevi aqui, parafraseando Asimov. P.S.: Para mais artigos de Frank J. Prial, recomenda-se Decantations (St. Martin’s Press/2001). De Eric Asimov há o How to Love Wine – A memoir and Manifesto (William Morrow/2012), aqui já resenhado. Diário do Comércio de 31/5/2013