sexta-feira, 24 de setembro de 2010

A polida mesa da rainha

Estamos a alguns dias do banquete que sua majestade a rainha Elizabeth II oferecerá ao presidente da França, Nicolas Sarkozy, e sua mulher Carla Bruni, no Castelo de Windsor, festa para 158 convidados. Os preparativos são muitos, das despensas à cozinha, das adegas aos salões. Uma funcionária já está destacada para dar forma aos impecáveis guardanapos de linho. Um dos serviçais tira os sapatos e, com um pequeno escovão, lustra o tampo da monumental mesa de madeira, de 53 metros de extensão, que fica bem no centro do Hall St. George. Toda revestida de mahogany cubana, a mesa é polida para ficar como espelho. As porcelanas, os talheres, o conjunto de taças, os arranjos de flores e os candelabros têm sua beleza multiplicada na mesa de Windsor. Nas adegas, a missão é separar os vinhos de acordo com o menu aprovado pela rainha. São contadas duas garrafas para cada 10 convidados, fora o Champagne dos brindes. No dia do banquete, bem ao gosto dos ingleses, a tarefa é decantar o vinho tinto e o vinho do Porto, "condecorando" posteriormente as jarras e os decanters de cristal com trabalhados colares de identificação. Banquetes em Windsor eram de praxe na era vitoriana. Hoje o Palácio de Buckingham é o palco mais frequente para receber os visitantes. Sua adega, do século XVI, abriga 25 mil garrafas, incluindo relíquias como quatro garrafas de Malmsey de 1850 e uma de Sherry de 1660. Na adega de Windsor repousam outras 5 mil garrafas. "Até o século XIII, apenas vinho inglês era servido na corte", escreve Kathryn Jones em For The Royal Table – Dining at the Palace (Royal Collection Publications/2008), quer trata dos segredos enogastronômicos dos reis ingleses. Hoje estão disponíveis tanto vinhos do Velho Mundo como do Novo Mundo. Para celebrar a vitória contra Napoleão Bonaparte, George IV promoveu uma recepção relâmpago em Londres, preparada e executada em 8 dias, tendo como convidados o imperador da Rússia e o rei da Prússia. O banquete em Windsor para Sarkozy foi planejado sem pressa – foi o 97° banquete comandado por Elizabeth II até aquela data, 26 de março de 2008. No menu de quatro pratos, filé de rodovalho, noisettes de cordeiro acompanhadas de alcachofras, favas, cenouras, couve-flor e batatas. De sobremesa, torta de ruibarbo com creme de baunilha e frutas. Nas taças posicionadas como batalhão de cristal na brilhante mesa de madeira foram servidos Chassagne-Montrachet 2000 e Château-Margaux 1961. Para o brinde, champagne Louis Roederer. Outros tempos, mas boa retribuição à diplomacia francesa, que em 1520 recebeu Henrique VIII em Calais com um fonte de onde jorrava vinho à vontade.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

La Voce ecoa em Come Fly With Me

Crescem na etrusca Fiesole, ao lado de Florença, as uvas com as quais a vinícola Sinatra Family States, com base no Vale do Napa, elabora seu supertoscano La Voce, uma homenagem mais que elegante ao cantor ítalo-americano Frank Sinatra (1915-1998). A primeira garrafa, da safra 2008, acaba de ser lançada graças a uma parceria entre os filhos de Sinatra (Tina, Nancy e Frank Jr.) e os enólogos John Schwartz (Amuse Bouche Winery) e Danielle Price (Coup de Foudre Winery). O La Voce foi apresentado por Nancy e Amanda Erlinger (uma das netas de Sinatra) no final de agosto, durante uma viagem do Napa Valley Wine Train, que cruza com requintes de um "Orient Express da Califórnia" 58 quilômetros dessa que é uma das mais belas e importantes regiões produtoras de vinho dos Estados Unidos. Os convidados a bordo conheceram o La Voce diante de um cardápio preparado pelor Kelly Macdonald, que desde 2001 é a chef executiva desse sofisticado resturante-locomotiva. La Voce foi um dos primeiros e mais marcantes apelidos do cantor e agora aparece no rótulo desse tinto produzido com uvas autóctones da mais que toscana Fiesole, a onipresente Sangiovese (92%) e a Colorino (8%). As frutas desse vinho nascem num pedaço de terra mínimo, de não mais de três hectares, e geram limitadíssimas 250 caixas. De Fiesole se tem uma das vistas mais deslumbrantes de Florença, panorama que encantava o pintor Fra Angelico (1387-1455), interno em um dos monastérios da terra. Gertrude Stein e Alice B. Toklas, depois da Primeira Guerra, gozaram inúmeros verões em Fiesole. Além da novidade La Voce, os Sinatra já mostraram a que vieram com seu distinto e encorpado Cabernet Sauvignon Come Fly With Me, safra 2007, vinho batizado com o nome da primeira canção de sucesso na BillBoard, em 1957, feito com uvas de vinhedos ao sul de Calistoga. As poucas garrafas dos cabernets dos Sinatra ganharão a cada safra o título de uma das canções do pai. O Cabernet 2008 é Nothing But the Best, mas esse vinho já está esgotado.

http://www.sinatrafamilyestates.com/

DC de 17/09/2010

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Homo Imbibens

Patrick E. McGovern é um arqueólogo biomolecular da Universidade da Pennsylvania que viaja o mundo atrás das mais remotas evidências da produção de vinho e cerveja, visitando sítios arqueológicos de cidadezinhas perdidas na imensidão chinesa ou escavados nas grandiosas montanhas iranianas. Quando não está em campo, está mergulhado no sofisticado laboratório da universidade, examinando potes e ânforas milenares, peças que guardam menores que microscópicos resquícios de outras civilizações e que têm ajudado a compor a trajetória alimentar do homem. Numa cerâmica de 7 mil anos, retirada das montanhas Zagros, no Irã, identificou, com técnicas de DNA, o vinho de uvas mais antigo já encontrado numa cozinha neolítica. Em Jiahu, província de Henan, norte da China, um vinho fermentado de várias frutas era preparado com sofisticação há cerca de 9 mil anos. Seus livros se tornaram referência dos historiadores – o mais recente, Uncorking the Past (University of California Press/2009), traça um panorama completo das descobertas na área. Mais do que uma linha do tempo, entretanto, McGovern alimenta e vai desvendando o que chamou de Homo Imbibens, mostrando que o álcool ocorre na natureza desde as profundezas do espaço e esteve presente no caldo primordial que pode ter gerado a primeira vida na Terra. A essa visão com gosto de metafísica, mas emprestada da Astronomia, soma a da Antropologia, mostrando que os primeiros hominídeos e chimpanzés tiveram um poderoso incentivo a se empanturrar de frutas fermentadas e outras fontes ricas em açúcar, como o mel, aproveitando ao máximo os frutos só encontrados numa estação. "Era uma excelente solução para sobreviver num ambiente geralmente hostil e pobre de recursos", escreve McGovern. É da lavra do arqueólogo a "hipótese paleolítica" ligada ao vinho, já que não tem dúvidas de que o homem "descobriu" o suco de frutas fermentadas, "apreendeu seus êxtases e perigos", centenas de milhares de anos antes dos primeiros assentamentos e domesticação de plantas e animais. Diz que em algum momento da pré-história, uma criatura não diferente de nós, com olhos sensíveis a frutas supercoloridas, um gosto para açúcar e álcool, e um cérebro familiarizado com os efeitos psicotrópicos da bebida, se moveu da inconsciente procura de frutas fermentadas, como faziam os macacos bêbados, para a produção e o consumo intencionais. Ao levar as uvas de plantas silvestres (Vitis vinifera ssp. sylvestris) das florestas do Cáucaso (muitos estudiosos acreditam que a planta é nativa dessa região do planeta) para sua caverna, o "milagre" se consumou. Frutas maduras transportadas em recipientes de madeira ou em odres primitivos, violentamente sacudidas, liberavam a substância natural presente nas cascas para o início da fermentação. McGovern acredita que dessa forma nasceu um vinho de baixo teor alcoólico, disputado pelos homens das cavernas. A partir da observação, trataram de repetir a experiência. "Era uma espécie de Beaujolais Noveau" da Idade da Pedra, arremata o arqueólogo. O cartunista Leo Cullum tratou de celebrar a experiência pré-histórica: desenhou dentro de uma caverna, três degustadores de então. E um deles proclama como um connoisseur , depois de experimentar a poção natural: "Estou sentindo notas de um fofo mamute!"

DC de 10/set/2010

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Púrpuras no Mediterrâneo

Os fenícios tingiam de vermelho o Mediterrâneo, empinando barcos com proas de cabeça de cavalo – assim estão representados na parede do palácio de Sargon, em Khosabad, do século VII a.C. Os gregos invejavam os mantos desses antigos homens do mar, roupas de cor púrpura, de pigmentos extraídos do Murex trunculus, molusco em profusão nas águas que banham sua terra de origem, na faixa hoje correspondente ao Líbano e à Síria – "a tripa que corre entre montanhas e o mar", como escreveu o historiador Fernand Braudel em Les Mémoires de la Mediterranée. Na carga dos navios, produtos para serem comercializados no oeste desse mar, outros púrpuras, ânforas de vinho que testemunham a dimensão do comércio que regiam. Arqueólogos submarinos comandados por Robert D. Ballard, o mesmo da descoberta do Titanic, têm corroborado as teses do grego Heródoto (c.485–420 a.C). O historiador e geógrafo escreveu que os navios fenícios tinham os melhores marinheiros, sendo os de Sidon, os melhores entre os fenícios". Os arqueólogos acreditam nessa habilidade: um dos navios de descoberta mais recente, de 2.800 anos, empreendia a seguinte rota: zarpava do porto de Tiro, parava em Ashkelon e seguia rumo ao Egito ou especificamente para Cartago, Norte da África. Numa das viagens, um poderoso vento leste tirou o navio da rota e a embarcação naufragou na costa de Israel. Robôs com câmeras fotográficas registraram no fundo do mar uma espantosa carga de 400 ânforas de vinho. Andrew Dalby, em Siren Feasts ( Routledge/1996), conta que, nessa época, os egípcios produziam tintos e brancos, mas em pequenas quantidades, e tinham de importar de gregos e fenícios. Na 'História de Sinube' , uma narrativa do segundo milênio a. C., um egípcio em visita a Biblos elogia toda a Fenícia, onde o mel é abundante e onde há mais vinho do que água".

DC de 3/09/2010