quinta-feira, 21 de março de 2013

Obsessão Vermelha

O documentário australiano Red Obsession , que trata da gana dos novos ricos chineses por vinho, acabou de ser exibido no Festival Internacional de Berlim – na programação de filmes "gastronômicos" – e agora ganha tapete vermelho em direção à Asia. O evento conjuga assim dois mercados em franca ascensão na China, o cinematográfico e o de vinhos finos de Bordeaux. Em 2020, a China deve roubar dos Estados Unidos o título de maior mercado para filmes, aponta recente estudo da Ernst & Young. Mas se há muitos filmes a distribuir, não há tanto Bordeaux assim para alimentar a sede insaciável de 600 supermilionários do país comunista. Como disse um personagem de Red Obsession à revista Der Spiegel, "o chinês adora engolir a civilização ocidental". A nova rica Kelly Cheng, habitué de leilões de vinhos finos em Hong Kong, escancara que já pagou quase duzentos mil dólares por uma garrafa de Château Lafite. E muitos de seus pares arrematam de olhos fechados lotes e lotes de Margaux. O jornalista e crítico alemão Stuart Pigott aponta Red Obsession como o melhor filme do gênero dos últimos anos, que trata dessa apropriação dos caros Bordeaux como símbolo de status e sofisticação, numa trilha cruzada ao misto de arrogância e pavor que a invasão desses ávidos consumidores provoca nos vitivinicultores franceses. Segundo Pigott, no fundo trata-se de um documentário sobre poder, riqueza e vaidade que deve cativar um público muito além do estritamente ligado ao mundo do vinho. No mesmo dia da exibição de Red Obsession, mostrando invejável senso de oportunidade, uma vinícola de Changyu (Yantai/China) promoveu uma degustação de seus próprios vinhos, já que a busca dos melhores tintos pelo mundo alavancou a viticultura local. Os aussies Warwick Ross (também um viticultor) e David Roach, produtores e diretores do documentário, trouxeram astros do próprio cinema para a empreitada. Francis Ford Coppola, também produtor de vinhos na California, fala sobre a tradição cultural do vinho, das safras de Bordeaux, encabeçando uma lista de proprietários de châteaux, produtores e masters of wine. Estão em companhia do polêmico e festejado crítico Robert Parker Jr., que, com seu propagado ranking de pontos, também contribuiu para a "commoditização" das garrafas. Já a voz do "gladiador" Russell Crowne dá vida ao apetite dos chineses pelos Bordeaux. Foram 14 meses de filmagens. Em Bordeaux, estiveram com príncipe Roberto de Luxemburgo, no seu celebrado Château Haut-Brion. Visitaram também o projeto do Domaines Baron de Rotschild (Lafite), na província chinesa de Shandong. O dragão mais que emula sofisticação francesa. DC de 22/3/2013

quinta-feira, 14 de março de 2013

Vinhedos do impossível

Lanzarote, a ilha mais oriental das Canárias, ganhou grande evidência quando lá se "exilou" o escritor José Saramago, em 1991, depois da censura do governo português a seu livro Evangelho segundo Jesus Cristo. Nos Cadernos de Lanzarote, Saramago reuniu escritos da "vida privada" produzidos já na casa de Tías, cercada por um cenário de rochas vulcânicas dos mais áridos. A ilha aprenderia a brindar o Nobel de Literatura, de preferência com seu vinho branco, extremamente mineral, elaborado com a cepa Malvasia de Lanzarote. A vitivinicultura nas Canárias começou no século XV, depois da conquista das ilhas Gran Canaria, Tenerife e La Palma. Com a descoberta da América, a cana de açúcar deu lugar às uvas e ao trigo, para atender desbravadores que dali zarpavam. No século XVI os vinhos das Canárias ganhavam o mundo, chegando com vida à Inglaterra de Shakespeare. Lanzarote foi a última das ilhas do arquipélago a cuidar de suas videiras, a partir de 1737. Mas é lá onde funciona até hoje a mais antiga bodega das Canárias, El Grifo, fundada em 1775. É uma das 17 vinícolas em atividade em Lanzarote, que tiram, literalmente, vinho de pedra. Nas barbas de um dos 250 vulcões de Lanzarote, alguns deles nem tão inativos assim, está a Bodegas Los Bermejos, que tem produzido um vinho tinto de prestígio com a Listán Negro (a versão tinta da uva Palomino, como classifica Jancis Robinson). Além da Listán Negro, da Malvasia (ao nome que os nativos colam a palavra Vulcânica), há boa vinificação a partir das uvas Moscatel, Güal, e a Pedro Ximénez. Os vinicultores da Lanzarote de Saramago sempre enfrentaram os rigores dessa ilha distante da península ibérica e muito mais vizinha da África – está a 100 quilômetros do Marrocos. Lá quase não chove e os ventos saharianos são insistentes. Suas plantações são conhecidas como "vinhedos do impossível": as videiras são plantadas em buracos escavados como pequenas crateras na rocha vulcânica (3 m de diâmetro por 2,5 m de profundidade). E algumas videiras precisam ainda ser protegidas por um pequeno muro em semicírculo. Essas estruturas são "acolchoadas" com uma capa de cinza vulcânica capaz de reter a única umidade disponível, aquela que vem do oceano. Saramago certamente admirava a bravura desses agricultores em terreno inóspito, assim como fez odes aos socalcos da região do Douro, no seu Portugal, também erguidos com destreza e suor. DC de 16/03/2013

quinta-feira, 7 de março de 2013

Mapa de cabeça para baixo

A maioria dos guias de vinho internacionais já incorporou a seus índices “os vinhos do hemisfério sul”, que há cerca de 25 anos passaram a disputar prateleiras com os do Velho Mundo e, em carreira fulminante, hoje já dominam 30% do mercado consumidor global. Em 1999, a participação era de apenas 3%. Em 20 anos, cresceu para 27% – em 2009 a Austrália já exportava para os Estados Unidos mais vinhos do que a França, uma salto marcado pelos "vinhos do canguru" (vinícola [yelow tail ]). Além da Austrália, países como a Argentina, Chile, Nova Zelândia e África do Sul conquistam ano a ano mais espaço nessas publicações especializadas (e por tabela, mais mercados), enquanto o Brasil e também o Uruguai muitas vezes são até esquecidos (quando não sombreados pelos vizinhos), apesar dos esforços individuais de divulgação e integração mercadológica. O recém-lançado Wines of the Southern Hemisphere: The Complete Guide (Sterling Epicu re/2012) surpreende, portanto, quando apresenta os vinhos brasileiros e uruguaios em abordagem semelhante a de seus companheiros do Novo Mundo. Escrito por Mike DeSimone e Jeff Jensen, editores de entretenimento e estilo de vida da revista Wine Enthusiast, a obra de 580 páginas, divididas por país, traz uma descrição das regiões vinícolas, das principais uvas cultivadas e breves perfis das vinícolas, dando voz aos vitivinicultores em entrevistas chanceladas como in their own words. A capa da obra é ao mesmo tempo evocativa e provocativa ao mostrar uma inquietante taça de vinho de cabeça para baixo – uma defesa da mudanças do próprio mapa dos vinhos. Na entrada do Brasil estão contempladas as regiões do Vale dos Vinhedos, Planalto Catarinense, Serra do Sudeste e Campanha, Serra Gaúcha e o Vale do São Francisco. A região com indicação de procedência (IP) Pinto Bandeira, na Serra Gaúcha, também ganhou referência. Entre as vinícolas apresentadas estão: Boscato Vinhos, Casa Perini, Casa Valduga, Cavalleri, Chandon, Courmayer, Don Giovanni, Lidio Carraro, Miolo, Piagentini, Pizzato, Sanjo, Santo Emilio, Don Laurindo, Aurora, Geisse, Irmãos Basso e a tradicional Salton. DC de 8/3/2013