quinta-feira, 27 de junho de 2013

À mesa com Apollinaire

Guillaume Apollinaire (1880-1918) também era um gourmand. O escritor e poeta modernista dos Caligramas não só recebia amigos artistas no seu pequeno apartamento parisiense no Boulevard Saint-German, como com eles ("os exilados de Montparnasse") dividia bons pratos e vinhos em bares e restaurantes da capital: Le Crucifix, Cardinal, Téléphone, Zut, Balzar, Onimus, La Closerie des Lilas ... "Eu tenho notado... que as pessoas que sabem comer nunca são idiotas", defendia assim suas inclinações enogastronômicas e seu círculo de amigos. Ao lado de um fogãozinho de duas bocas, numa acanhada mesa, Picasso e Max Jacob podiam degustar em sua companhia uma perfeita lagosta, já que os frutos do mar eram de sua predileção. Gostava também de um pot-au-feu dos mais franceses, sem descartar a cozinha do mundo – com ênfase para as salsichas da Córsega ("charcruterie do Olimpo") e o risotto piemontês –, que muitas vezes ganhava suas crônicas no Mercure. Hors concours era seu omelete com ouriços do mar. Apollinaire tinha uma coleção de livros de gastronomia e de receitas (muitos pescados nos buquinistas às margens do Sena). E conseguia surpreender na cozinha com os segredos que extraía dos chefs dos restaurantes que frequentava. Para não fazer feio com as musas, tinha sempre à mão Le Manuel Culinaire Aphrodisiaque, e não raro um purê de alcachofras (com um toque de creme bechamel) era prato de resistência. O Chez Baty, bem na esquina dos bulevares Montparnasse e Raspail, era um dos restaurantes preferidos de Apollinaire e de Picasso. O proprietário Pére Baty era considerado pelo poeta "o último verdadeiro comerciante de vinhos" de Paris. O restaurante se destacava muito mais por sua adega do que por sua comida. Era no Chez Paty, antes da Primeira Guerra, que se davam as reuniões editoriais da Les Soirées de Paris, revista literária e de crítica de arte fundada em 1912 por Apollinaire e um grupo de amigos. E se havia pouco dinheiro para imprimir a revista, não faltavam alguns trocados para uma garrafa de Chambertain de 7 francos ou uma pequena taça de fino Clos Vougeot, por 55 centavos. Um dos melhores perfis já escritos do "Apolinnaire gourmand" é de autoria da escritora e editora Heather Hartley, ela também poeta, no livro A Tin House Literary Feast – Food & Booze (Tin House Books/2006). "A comida permeia sua obra [de Apollinaire] – às vezes, é apenas uma estrofe, outras vezes, é o principal ingrediente de uma história, ou simplesmente uma gota de licor escuro para terminar uma linha de poesia (...) Seu apetite para a comida não pode ser separado de seu apetite por palavras", escreve Hartley. Em In a Crowded Kitchen, ela descreve um banquete de 80 talheres oferecido por amigos a Apollinaire em 1916, dois anos antes da morte do poeta. Festas voluptuosas eram comuns em Paris até pouco depois dos anos 20, sem que grandes motivos existissem a não ser mesmo o gosto pela reunião divertida de escritores, poetas, escultores, boêmios e pintores. Nesse banquete a Apollinaire, o cubista Juan Gris era o mestre de cerimônia, chamando atenção para o cardápio, todo ele batizado com títulos e temas de obras do poeta: Méditations esthétiques en salade; Acrelin de chapon à l'Hérisiarque, Vin Blanc de l'Enchanteur, Vin Rouge de la Case d'Armons, Champagne des Artilleurs. E no fim da lista, Alcoóis. Todos. (Alcools é também uma coleção de poemas de 1913, sobre o amor, o fluir do tempo e dos sentimentos, uma das obras-primas do primeiro modernismo.) Apollinaire sempre escrevia aos amigos relatando suas bebedeiras. As leves, de vermute ou vinhos do Reno. E as mais severas quanto mais inventivas, como uns tais coquetéis carabinés , misturas de molho de carne ao porto, absinto, suco de limão ou licor de zimbro. O fato é que ele podia cair nas carnes, nos vinhos ou numa cumbuca de bouillon e, em seguida, se sentar para trabalhar até tarde. Seus amigos diziam que era justamente o profundo amor pela mesa que levava Apollinaire a produzir poemas vívidos, sensuais e inovadores.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Histórias de 25 anos

Os editores da Wine Enthusiast Magazine, popular revista americana de vinhos, estão celebrando os 25 anos da publicação lembrando as reportagens que marcaram época. Escolhidas e resumidas a dedo, não só registram a maneira como os americanos têm se relacionado com a bebida nas últimas décadas, mas colocam na linha histórica as grandes mudanças e tendências internacionais desse universo – da "malbecmania" que consagrou vinhos argentinos de Mendoza em território americano, à ascensão da uva Pinot Noir (e queda da Merloot), estimulada pelo filme Sideways. A seleção passa pela curiosa marca nacional celebrada em 2002. Nesse ano, com a instalação da vinícola Pointe of View na Dakota do Norte, todos os cinquenta estados americanos passaram a ser produtores de vinho, em que pese o fato de algumas vinícolas importarem as uvas de outros estados. A Wine Enthusiast teve motivos para festejar logo de cara, em 1989, quando a baronesa Philippine Rothschild associou-se ao "ítalo-californiano" Roberto Mondavi para criar a Opus One, vinícola instalada na Highway 29, que corta o Vale do Napa. Era o início de uma preocupação com a qualidade dos vinhos, contaminação da França para os Estados Unidos. A WE se orgulha da sua célebre Value Issue, nascida curiosamente em 1990, em anos de fartura. Atendia na verdade a uma demanda natural de consumidores americanos, que, por princípio, sempre estão atrás das melhores ofertas e oportunidades. A Wine Enthusiast acompanhou de perto o aumento do consumo de vinhos tintos nos Estados Unidos puxado pela divulgação do chamado "Paradoxo Francês". O programa 60 Minutes mostrou em 1991 como o consumo moderado de álcool poderia trazer benefícios à saúde, a exemplo do que acontecia na França. Em uma semana, as vendas subiram 40%. Até hoje o resveratrol presente nos taninos das uvas tintas é saudado quase como panaceia nos EUA. Na onda de avanço da cultura do vinho, destaque para a entrada em cena do diretor de cinema Francis Coppola, em 1995, que comprou a história vinícola Inglenook pela soma também histórica de US$ 9 milhões, tornando-se o "Godfather of Napa", com mais apoio aos vinhos de qualidade. No ano seguinte, o símbolo foi Joe Torre, capitão do Yankees, que ganhou a capa da edição de outubro celebrando o baseball, o hot dog, a torta de maçã e ... o vinho", mostrando com todos os exageros de marketing o vinho já como parte da cultura americana tanto quanto o Chevrolet ! Foram também capa da revista chefs badalados como Mario Batali, Emeril Lagasse, Alain Ducasse e Gordon Ramsey, todos ligando o mundo gastronômico à esfera do vinho, uma tendência sem volta que teve os Estados Unidos como forte incentivador e protagonista. A história da WE também é um pouco a história da ascensão do vinho australiano no mercado americano, a partir de 1996. Nesse ano, a Lindeman's sozinha era responsável por 700 mil das duas milhões de caixas de vinho australiano importado. Em 2011, a Yellow Tail registrou a exportação de 8 milhões de caixas. É claro que a acomodação desse mercado já está acontecendo com a crescente melhoria da qualidade do vinho australiano. E como não podia deixar de ser, a última das histórias dos 25 anos da WE tem no foco a "sede vermelha": mais de 1,6 bilhão de garrafas foram vendidas na China em 2011. Não à toa, a Wine Enthusiast lançou no ano passado uma edição especial em mandarim. Na capa, Yao Ming, que foi uma grande estrela do basquete americano e, apreciador de vinhos, é dono de uma vinícola no Vale do Napa. DC de 21/6/2013

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Vinhedos estrelados

De bicicleta, o cantor STING e sua mulher Turdie observam o cenário exuberante da Toscana – patrimônio da humanidade. Estão em Figline Valdarno, entre vinhedos, oliveiras, uma criação de abelhas e de porcos cinta senese. Sting diz que agora é dali daquele histórico território que tira o alimento para sua mesa e para sua alma de artista. Il Palagio é a propriedade de 120 hectares do casal, onde se produz vinhos desde o século XVIII. Hoje é área para a cuidadosa agricultura biodinâmica dos Sting. Na loja que abriram nas imediações, vendem o mel de que têm tanto orgulho, salsichas especiais desses porcos de Siena, azeite e os vinhos que passaram a fazer parte de sua rotina. Dois rótulos de STING ganharam nome de suas canções Sister Moon (uvas Sangiovese, Merlot e Cabernet Sauvignon) e When We Dance, este com um blend de uvas típicas da região (Sangiovese, Canaiolo e Colorino). Condecorado aos pés do grande David de Michelangelo, na Galleria dell’Accademia de Florença, o cantor se diz orgulhoso em estar na Toscana, diante de tantas raízes históricas. E há coerência entre o manejo de sua vinícola e seu discurso prévio em defesa da sustentabilidade. (É certo que Raoni ainda não foi visto por lá). Detalhes do dia a dia de vinicultores-celebridades como Sting recheiam tanto revistas especializadas como as de tipo Caras. Alguns foram parar no recém-lançado Celebrity Vineyards: From Napa to Tuscany in Search of Great Wine (Flexibound/2013), de Nick Wise. Nessa obra, até o presidente THOMAS JEFFERSON (1743-1826) ganhou uma homenagem pelos vinhedos que plantou e que seguem em produção em Monticello. Num movimento iniciado há algumas décadas nos Estados Unidos, não só cantores, mas roqueiros, atores e ex-esportistas passaram a ver no mundo do vinho espaço para negócios e glamour, em relações mais ou menos intensas. MADONNA nunca foi vista com uma tesoura nas mãos. E dificilmente participou de uma colheita em vinhedos na Península de Leelanau, no Michigan, onde seu pai construiu em 1996 a Vinícola Ciccone. Mas "irrigou" a propriedade e aparece na lista de personalidades do mundo do vinho. O ítalo-americano MÁRIO ANDRETTI, ao se aposentar das pistas de corrida, passou a cuidar de vinhedos no Distrito de Oak Knoll, no Vale do Napa, numa propriedade de 16 ha, perto de Yountville. Acompanha de perto a série de vinhos Montona Reserva e orgulha-se da velocidade com que os prêmios chegaram. A família do cineasta Francis Ford COPPOLA produz vinhos na Califórnia desde 1975. Foi um caso de amor à primeira vista. Ele e a mulher, Eleonor, foram passar uma temporada de verão na tradicional propriedade Inglenook, em Rutherford. Diante das lembranças de tradição familiar ligada aos vinhos e da montanha de dinheiro conquistado com seu O Poderoso Chefão, COPPOLA decidiu comprar a propriedade e, mais tarde, restaurar seu château. A Inglenook foi criada em 1879 por Gustave Niebaum, jovem capitão filandês que enriqueceu com uma companhia mercante no Alaska. Até que a mulher californiana o convenceu a mostrar ao mundo que os vinhos locais poderiam ser tão bons quanto os europeus. Coppola batizou a Inglenook ressuscitada de vinícola Niebaum-Coppola – hoje o cineasta está feliz com o resgaste jurídico da marca Inglenook. Tem produzido vinhos finos com a uva Cabernet Sauvignon em Rutherford, praça dos grandes “cabs” americanos. Toca também a mais popular Francis Ford Coppola Winery, em Geyserville, mais que uma vinícola, um grande parque. Rubicon é o vinho de coração de Coppola. Ao entrar no ramo, o cineasta lembrou-se da célebre marcha de César a Roma. Cruzar o rio Rubicão implicava que não havia mais retorno. Todos os vinhos do império Coppola são hoje de uvas de seus próprios vinhedos, incluída a Zinfandel. A atriz OLÍVIA NEWTON-JOHN lançou sua vinícola Koala Blue em 1983 na Austrália, e a ideia era mostrar ao mundo o poder do terroir australiano. Já BOB DYLAN fez uma parceria com o italiano Antonio Terni, viticultor e fã ardoroso do cantor (não se sabe bem em que ordem). Produzem na Fattoria Le Terrazze, em Numana, perto de Ancona, uma série de vinhos, os Planet Waves, inspirados notítulo de um álbum seu de 1974. Dylan assina os rótulos. MICK HUCKNALL, vocalista líder do Simply Red, foi mais longe, até a Sicília, para montar a sua vinícola. Desde 2001 a Il Cantante faz seus vinhos em 20 ha de solo vulcânico, nos terraços ao redor do Etna. Usam as uvas locais Nerello Mascalese e a Nerello Cappuccio e acompanham o boom desses vinhos produzidos na Sicília. O ator ANTONIO BANDERAS está produzindo suas garrafas em Villalba de Duero, em Burgos, no coração de Ribera del Duero. O projeto da Vinícola Anta é de 1999. A arquitetura da bodega, em vidro e madeira, inteiramente sustentável, é um show. Banderas entrou no negócio em 2009 e acrescentou o Banderas ao nome da casa. O ator francês e vigneron (como faz questão de ser chamado) GERARD DEPARDIEU bate todas essas celebridades em número de propriedades. Tem sua base no célebre Château Tigné, entre Angers e Saumur, no Vale do Loire. E L'Esprit de la Fontaine, no Languedoc-Roussillon. Cuida ainda de vinícolas na Argentina, Marrocos, Argélia, Espanha, Sicília e Estados Unidos.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Do Líbano, pela concórdia.

O jovem vinicultor libanês Marc Hochar comanda na próxima terça-feira-feira (11), no restaurante Arola-Vintetres, em São Paulo, um jantar de harmonização com cinco vinhos do Château Musar, vinícola tocada pela família há mais 80 anos em Ghazir, no Vale do Beka'a, região que o pai de Marc, Serge Hochar, chama de “Jardim do Eden", um terroir de herança bíblica. Os vinhos dos Hochar vêm da Fenícia. O proposital anacronismo acima é, evidentemente, uma homenagem aos Hochar, associando-os aos ancestrais fenícios, que produziam disputados vinhos na Antiguidade, no mesmo território hoje libanês onde a família cuida de seus vinhedos. Os “homens dos mantos vermelhos” (como diziam os gregos) eram também corajosos mercadores que zarpavam com seus navios em crescente rota comercial pelo Mediterrâneo. Estão aí 750 ânforas de vinho e azeite que os robôs do oceanógrafo Roberto Ballard há poucos anos encontraram e fotografaram nas profundezas do mar – carga de um navio fenício, com destino ao Egito, que naufragou 2.800 anos atrás diante de Askhelon (hoje Israel) – sinais concretos da vitalidade mercantil desses povos. Os Hochar também são bons mercadores. E a presença de Marc em São Paulo é a versão mais moderna e atualizada desse ímpeto comercial. Marc costuma dizer que enquanto seu irmão Gaston cuida do "líquido", ele cuida da "liquidez" do Château Musar. Hochar vem a convite do antenado importador Ciro Lilla, que desde 1995 tem rótulos do Château Musar no catálogo da sua Mistral. Serge Hochar, pai de Marc, um engenheiro que estudou enologia em Bordeaux, sob as vistas de Emile Peynaud, foi o primeiro timoneiro da família. Sempre seguiu os princípios do pai Gaston, que defendia, já nos anos 30, todos os esforços para a recuperação da qualidade dos vinhos libaneses. O primeiro vinho de Serge Hochar foi engarrafado em 1959, de uvas colhidas em 1956. Até a década de 70, suas safras escorriam nas mesas elegantes da Beirute de ares franceses, e pouca coisa também nas casas fraternas de outros alegres libaneses. Essa lógica foi quebrada com a guerra civil (1975-1990) e outras escaramuças no Oriente Médio. As vendas ao mercado interno desabaram. Mas a hipótese de diminuir a produção nunca foi colocada sobre a mesa dos Hochar. Mantê-la era empunhar uma bandeira contra a hegemonia da violência e da intolerância. Serge decidiu correr todos os riscos. Em meio a bombas e rajadas de fuzis, terreno minado pelo ódio entre muçulmanos e cristãos, conseguiu arduamente manejar seus vinhedos e transportar suas uvas para a vinificação. Nesse momento, Serge teve de assumir o leme agora de um barco com carrancas, rumo à Europa. Com uma carga de tintos, o vinicultor desembarcou para a Bristol Wine Fair de 1979. Teve a sorte de encontrar fundamental reconhecimento nas papilas do crítico britânico Michael Broadbent e do jornalista Roger Voss. Nesses vinhos, as uvas de terroir libanês se expressavam em vinhos de “receita” francesa. Os tintos do Château Musar são basicamente feitos com a "estruturante" Cabernet Sauvignon, Cinsault e Carignan (mais marcante que a plantada no Languedoc-Roussillon, segundo os Hochar). O veredicto de Broadbent viajou o mundo e passou a conquistar outros países. Por isso é que se diz que Serge recolocou os vinhos libaneses no mapa da vinicultura internacional. Seu destemor em enfrentar as agruras da guerra lhe valeu também o título de homem do ano da revista Decanter, o primeiro da série inaugurada em 1984. Nas mesmas ondas desbravadas pelo Château Musar viajam hoje outros vinhos do país, também de grande qualidade, principalmente os produzidos pelo Château Kefraya, na vila de Kefraya; pelo Château Ksara, a vinícola mais antiga de todo o Líbano, iniciada com jesuítas em 1857, com magníficas adegas subterrâneas romanas de mais de 2 quilômetros; e o Domaine des Tourelles, em Chtaura. O interesse internacional pelo terroir libanês tem despertado ainda novos negócios no país. A moderna vinícola IXSIR, em Basbina, iniciada em 2007, tem explorado seis terrenos libaneses, de 400 a 1.700 metros de altitude, de norte (Batroun) ao sul do país (Jezzine). Notícias dão conta que a sangrenta guerra civil na Síria já transborda para o território libanês, levando ao país bombas e mais de 180 mil refugiados. As provocações sem fronteiras do Hezbollah também acirram ânimos. O Château Musar continua em frente, como sempre. Como a dizer que é preciso viver. DC de 7 de junho de 2013