quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Alegrias de Rías Baixas

Os albariños de Rías Baixas, na costa sudoeste da Galícia e ao redor de Vigo, Pontevedra e Arousa, são vinhos brancos frescos e perfumados que nas últimas décadas têm embarcado da região dos "fiordes" espanhóis para ganhar o mundo, a começar dos Estados Unidos. Se considerarmos o incensado Paco & Lola, da vinícola Rosalía de Castro, em Pontevedra, com seu rótulos à la Almodóvar, não há erro em dizer que são vinhos alegres e contemporâneos. Os alvariños são produzidos com a mesma casta – de pequenos bagos e extremamente resistente – plantada logo na fronteira do Minho, em solo português. Em Portugal, a alvarinho faz bonito como varietal, mas entra tradicionalmente, e com muita personalidade, na composição dos vinhos verdes de qualidade. Já na Espanha, a alvariño nasce para brilhar sozinha – é a uva rainha de 130 bodegas. São 1.900 hectares de alvariño, manejados por 4.200 viticultores. Rías Baixas DO – status conseguido apenas em meados dos anos 1980, apesar da longa tradição vinícola – é dividida em cinco subzonas: O Rosal, Condado do Tea, Soutomaior, Ribeira do Ulla e Val do Salnés, sendo esta última responsável por 2/3 da produção. Há pelo menos três décadas os produtores da região passaram a cuidar da qualidade de seus vinhedos. A vinícola Pazo de Señorans é um exemplo de sucesso sob comando de Soledad Bueno e da enóloga Ana Quintela. É de onde saem um dos mais populares alvariños espanhóis, da cepa que os estudiosos tratam de ligar à família da Riesling. Ana encarou uma grande polêmica a partir de 1995, quando a Pazo de Señorans resolveu envelhecer um de seus vinhos em tanques de aço inoxidável. Pazo de Señorans Selección de Añada figura hoje entre os melhores brancos da Europa. O cenário da viticultura da região foi dissecada em recente guia (The Finest Wines of Rioja and Northwest Spain) pelos especialistas Jesús Barquín, Luis Gutiérrez e Víctor de La Serna. Segundo eles, é importante lembrar que pelo menos uma bodega de Rías Baixas já produzia um alvariño de qualidade, bem antes do reconhecimento oficial. Fefiñanes, o nome resumido da vinícola, era sinônimo de alvariño. Lembram ainda que o famoso escritor espanhol Juan Goytisolo, no seu romance Señas de Identidad (1966), já tratava o Fefiñanes como palavra do melhor dos brancos. As Bodegas del Palacio de Fefinãnes produzem hoje alvariños estruturados, sem barrica (Alvariño de Fefiñanes III Año), capazes de derrubar o mito do consumo imediato e que evoluem na garrafa por alguns anos.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Vernaccia de Boccaccio

Fosse apenas a apresentação lírica da refeição “alfresco”, manjares finamente cozinhados e vinhos preciosos servidos em ambiente ao ar livre, com récitas ao final, modelo mais tarde abusado por ricos florentinos da Renascença, os escritos do Decamerão, de Boccaccio (1313-1375), já teriam entrado para a história dos mais elegantes desejos. Seus relatos vitalistas, sensuais e alegres são, entretanto, clássicos da literatura de todos os tempos – os primeiros registros realistas a traduzir os momentos de passagem da Idade Média para o Renascimento. É dentro da pungente narrativa sobre os flagelos da Peste Negra, da Igreja e da moral, que Boccaccio encontrou espaço para retratar a autoindulgência de enfrentá-los à mesa, de preferência em espaços idílicos, fora das cidades – procura da sobrevivência que punha em jogo tanto excessos como asceticismos. O Decamerão é, dizem os estudiosos, uma das melhores fontes sobre os hábitos alimentares dos italianos no século XIV, incluídos aí algumas referências aos vinhos. Na lista de Boccaccio, são identificados os da região de Monferrato (no Piemonte), um vinho grego que era produzido no sul da Itália, e um outro descrito com precisão: o Vernaccia de Corniglia. Corniglia é uma das Cinque Terre da pesqueira costa da Ligúria. Uma das vezes em que Boccaccio cita o Vernaccia é na segunda novella do décimo dia de aventuras de seus jovens personagens (sete moças e três rapazes) nos arredores de Florença, fugindo do cenário da peste. Na novella contada por Pânfilo, o abade de Cluny aparece curado de uma insuportável dor de estômago graças a duas torradas e um grande copo do vinho branco Vernaccia de Corniglia, receita simples e tradicional do malfeitor Ghino di Tacco. O bandido tinha feito do prelado refém quando a sua comitiva dirigia-se aos banhos de Siena. Depois da cura, Cluny ganhou a liberdade e Tacco, seus bens e a promessa de perdão papal. O vinho Vernaccia não é feito mais em Corniglia. Hoje a Vernaccia é a uva cultivada em San Gimignano, na vizinha Toscana, que vem produzindo vinhos de qualidade. Isso graças à dedicação principalmente das famílias Falchini, Montenidoli e Panizzi. Os viticultores dessa região ainda demonstram orgulho por ela ter sido a primeira a ganhar a chancela DOC, em 1966, e de ter um dos poucos brancos da Itália com a consagração do DOCG, anotou o crítico Nicolas Belfrage. Os Falchini tem o seu varietal 100% Vernaccia di San Gimignano Vigna a Solatio, mas já elaboram vinhos mais complexos com a mesma Vernaccia, adicionando Chardonnay, "contra a monotonia". Os Montenidoli produzem, sem medo dos blends que garantem mais estrutura aos vinhos, Il Templare Toscana IGT: 70% Vernaccia, 20% Trebbiano e 10% Malvasia Bianca. Já os tintos de San Gimignano são tema para outra história. Diário do Comércio de 23/11/2012

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Provocações de Tom Wark

Os principais Estados americanos produtores de vinho e também os "bebedores" ajudaram a reeleger o presidente Obama. A tese é do blogueiro Tom Wark, do Fermentation. (Apenas o Texas é ao mesmo tempo vinícola e romneyniano.) Acesse os mapas que ilustram a questão de Tom: "Is wine liberal?" www.fermentationwineblog.com/

A batalha do açúcar

A águia alemã que nos interessa veste um cacho de uvas como armadura e tem, nos últimos anos, sobrevoado outros campos de batalha: os vinhedos e os mercados internacionais. A águia assim vestida é símbolo da VDP, Verband Deutscher Qualitäts – und Prädikatsweingüter, uma das mais antigas associações de vitivinicultores do mundo, criada em 1910. Desde 1982, a águia aparece solenemente em rótulos e hoje até em algumas cápsulas, chancelando vinhos com muitos "predicados". Pelo menos 200 desses produtores associados à VDP são também lideranças do setor e enfrentam corajosamente a lei do vinho alemão, de 1971, calcada principalmente no teor de açúcar da bebida. Eles enxergam certa tirania na inspeção outonal de agentes públicos que medem tão somente a quantidade de açúcar das uvas, que por sua vez determina o peso do mosto e a futura classificação dos vinhos, tudo sob a égide dos graus Oechsle. "Do açúcar para o terroir" é portanto um contramovimento importante, analisa o crítico Stephan Reinhardt no seu recém-lançado The Finest Wines of Germany (Fine Wine Edition/2012). A vinicultura alemã, tão celebrada na Idade Média, custou a recobrar seu vigor depois que vinhos açucarados, baratos e de baixa qualidade inundaram as prateleiras mundo afora nos anos 1970, personalizados nas garrafas azuis de Liebfraumilch e no bombardeio da tradução do rótulo: "O leite da mulher amada". O novo guia da série Fine Wine traz justamente o perfil de 70 produtores (de 24 mil em atividade hoje), todos com uma nova visão de vinho alemão, preocupados com a especificidade das uvas, dos terrenos, e com os processos de vinificação. Os vinhos premium, por exemplo, tem carregado um Erste Lage, um número "1" que abraça um cacho de uvas (comparável a um Grand Cru da Borgonha). Na verdade, a VDP quer ainda mais qualidade do que prevê a própria lei. Isso implica na redução da área dos vinhedos, no aprimoramento das instalações e no manejo sustentável das parreiras. Sob a visão da águia, vinhedos VDP precisam ter 80% de Riesling – a uva típica do país – e também de tintas da família da Pinot. DC de 16/11/2012

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Símbolos de resistência

Numancia saiu das páginas da história da Espanha para batizar vinhos de qualidade da região de Toro, em Castilla y Leon. Está nos rótulos das garrafas que saem da vinícola Numanthia, casa que desde 1998 maneja quatro vinhedos da cepa Tinta de Toro (a Tempranillo local), em área de 49 hectares ao longo do rio Duero, o mesmo Douro que corre em Portugal. Numancia é símbolo de coragem. A vilazinha celtíbera resistiu bravamente, isso há mais de 2.000 anos, ao assédio de 50 mil soldados e alguns generais do cônsul romano Cipião. E foi celebrada em tom de tragédia por Cervantes em El Cerco de Numancia (1582). Em vinte anos de cerco monumental, romanos empenhados em sufocá-los de fome e sede construindo muralhas de até 12 metros, os numancinos nunca se renderam. A última batalha foi selada com sacrifício de todos os seus habitantes, cena que o pintor Alejo Vera y Estaca reviveu em El Último Dia de Numancia (1880). Os vinhos de Toro, reconhecidos desde a Idade Média, cantados nos clássicos castelhanos e que "fizeram parte da aventura do Novo Mundo", já brigam em igualdade de condições com vinhos de Ribera Del Duero, Rioja e Priorato. São produzidos na extremidade oeste de Castilla y Leon e desde 1987 contam com o reconhecimento de "Denominación de Origen". A bodega Numanthia fica perto da vila de Valdefinjas, província de Zamora. As ruínas da velha Numancia ficam a 5 quilômetros da cidade de Soria. A associação dos vinhos de Toro com a brava Numancia tem pelo menos uma explicação. Em Toro há vinhedos que resistiram à praga da Phylloxera, que dizimou a cultura na Europa na segunda metade do século XIX. Portanto há mais de 150 anos produzem frutos sem que suas plantas tenham sido socorridas com enxertos. Cerca de 20 hectares dos terrenos da bodega Numanthia têm parreiras de 70 a 100 anos. E há ainda uma área de 4,8 hectares, em Argujillo, com vinhas raras de mais de 120 anos. O primeiro vintage Numanthia, apresentado pela família Erguren ao mercado em 1998, foi mais do que bem recebido pela crítica. Em 2006 a revista Wine Spectator selecionou seus rótulos como imperdíveis tintos espanhóis e apontou o início de um caminho de qualidade que vem sendo perseguido pela vinícola com seus Termes, Numanthia e Termanthia. Isso mesmo depois de a vinícola ter sido adquirida pelo grupo LVMH. DC de 9/11/2012