sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Vernaccia de Boccaccio

Fosse apenas a apresentação lírica da refeição “alfresco”, manjares finamente cozinhados e vinhos preciosos servidos em ambiente ao ar livre, com récitas ao final, modelo mais tarde abusado por ricos florentinos da Renascença, os escritos do Decamerão, de Boccaccio (1313-1375), já teriam entrado para a história dos mais elegantes desejos. Seus relatos vitalistas, sensuais e alegres são, entretanto, clássicos da literatura de todos os tempos – os primeiros registros realistas a traduzir os momentos de passagem da Idade Média para o Renascimento. É dentro da pungente narrativa sobre os flagelos da Peste Negra, da Igreja e da moral, que Boccaccio encontrou espaço para retratar a autoindulgência de enfrentá-los à mesa, de preferência em espaços idílicos, fora das cidades – procura da sobrevivência que punha em jogo tanto excessos como asceticismos. O Decamerão é, dizem os estudiosos, uma das melhores fontes sobre os hábitos alimentares dos italianos no século XIV, incluídos aí algumas referências aos vinhos. Na lista de Boccaccio, são identificados os da região de Monferrato (no Piemonte), um vinho grego que era produzido no sul da Itália, e um outro descrito com precisão: o Vernaccia de Corniglia. Corniglia é uma das Cinque Terre da pesqueira costa da Ligúria. Uma das vezes em que Boccaccio cita o Vernaccia é na segunda novella do décimo dia de aventuras de seus jovens personagens (sete moças e três rapazes) nos arredores de Florença, fugindo do cenário da peste. Na novella contada por Pânfilo, o abade de Cluny aparece curado de uma insuportável dor de estômago graças a duas torradas e um grande copo do vinho branco Vernaccia de Corniglia, receita simples e tradicional do malfeitor Ghino di Tacco. O bandido tinha feito do prelado refém quando a sua comitiva dirigia-se aos banhos de Siena. Depois da cura, Cluny ganhou a liberdade e Tacco, seus bens e a promessa de perdão papal. O vinho Vernaccia não é feito mais em Corniglia. Hoje a Vernaccia é a uva cultivada em San Gimignano, na vizinha Toscana, que vem produzindo vinhos de qualidade. Isso graças à dedicação principalmente das famílias Falchini, Montenidoli e Panizzi. Os viticultores dessa região ainda demonstram orgulho por ela ter sido a primeira a ganhar a chancela DOC, em 1966, e de ter um dos poucos brancos da Itália com a consagração do DOCG, anotou o crítico Nicolas Belfrage. Os Falchini tem o seu varietal 100% Vernaccia di San Gimignano Vigna a Solatio, mas já elaboram vinhos mais complexos com a mesma Vernaccia, adicionando Chardonnay, "contra a monotonia". Os Montenidoli produzem, sem medo dos blends que garantem mais estrutura aos vinhos, Il Templare Toscana IGT: 70% Vernaccia, 20% Trebbiano e 10% Malvasia Bianca. Já os tintos de San Gimignano são tema para outra história. Diário do Comércio de 23/11/2012

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