quinta-feira, 29 de agosto de 2013

No ritmo da montanha

O forasteiro que trafega pela primeira vez por estradas da montanha Groenland, Western Cape, na África do Sul, vai se deparar com pelo menos uma placa inusitada. O desenho é de uma tartaruga. É um alerta para o motorista, anunciando a rota da tartaruga andarilha, animal endêmico da região, chamada também de tartaruga bico de papagaio, devido as cores vibrantes de sua boca aquilina. Pois a “road walker” foi parar com velocidade nos rótulos do Slowine, um projeto coletivo de vinicultores que têm seus vinhedos justamente nos arredores da onipresente montanha. Ali a vida ainda é governada pela natural marcha das estações. E os vinhos produzidos de maneira sustentável, dentro desse ritmo "slow", ajudam a manter um estilo de vida de qualidade. Um dos princípios do Slowine é produzir vinhos acessíveis para que as famílias da região possam desfrutá-los com amigos, de preferência diante de uma boa refeição compartilhada. A tartaruga dos rótulos evoca uma fábula de Esopo, onde o réptil e uma lebre apostam corrida, vencendo o mais lento. E a moral da história: devagar e sempre. Os objetivos do Slowine são praticamente os mesmos consagrados pelo movimento Slow Food, idealizado na Itália em 1986 por Carlo Petrini e chancelado por manifesto em Paris, três anos depois. Inspirado no caramujo símbolo do Slow Food, o Slowine tratou de colocar em cena a simpática tartaruga. Hoje a Slow Food é uma associação internacional que promove a cultura da comida e do vinho em dezenas de países e, antes de tudo, luta contra a devastadora “estandartização do gosto”. O movimento teve seus primeiros passos numa manifestação contra a abertura de um McDonald’s em plena Piazza di Spagna, um dos cartões-postais de Roma. No Brasil, um entusiasta do movimento, o médico e crítico de vinhos Sérgio de Paula Santos (1930-2010), sempre escreveu contra o que chamava de “mcdonaldização da vida”. O movimento, entretanto, não é mais mero contraponto ao fast food. Petrini diz que “todos têm o direito fundamental ao prazer e por consequência a responsabilidade de proteger a herança dos alimentos, da tradição e da cultura que tornam esse prazer possível”. O Slow Food e também o Slowine baseiam-se no conceito de ecogastronomia – "um reconhecimento das fortes ligações entre o prato e o planeta". Quando, em 2005, Paul Cluver e seu enólogo Andries Burger iniciaram o projeto Slowine, com outros vitivinicultores sul-africanos, tinham em mente que esses vinhos não poderiam ser produzidos em larga escala e que as uvas precisavam ser cultivadas e manejadas dentro de conceitos ecossustentáveis: castas regionais nasceriam nos vinhedos do projeto naturalmente, sem manipulações e sem química. Só assim seriam expressão de uma região protegida por lei, como é a Biosfera Kogelberg, que inclui a montanha onde estão os vinhedos. É importante lembrar que o sonhador Paul Cluver é um respeitado neurocirurgião que, antes de produzir vinhos quase artesanais, entrou na agricultura plantando maçãs e fabricando sucos, mas sempre dedicado ao estudo da produção holística. Participam hoje do Slowine a vinícola Luddite, tocada por Niels e Penny Verburg, especialistas na casta Shiraz; a Beaumont, uma propriedade familiar situada perto da idílica cidade de Bot River; e a Theewaterskloof Cellars, que é o braço vinícola da tradicionalíssima cooperativa Villiersdorp e que, em 2008, incorporou e administra o projeto iniciado por Paul Cluver. Os vinhos produzidos de maneira sustentável ganharam destaque no Slow Food com a inauguração de um site específico. Além disso, o movimento continua a publicar guias do “vini slow” (a próxima edição estará disponível em outubro). Esses guias Slowine mudaram o eixo da crítica enológica, tratando de colocar o produtor como protagonista, alinhando valores culturais e de sustentabilidade de cada vinícola. Uma seção do livro mostra esforços de enoinclusão: nas páginas sob a rubrica Vini Quotidiani estão vinhos de qualidade que podem ir para a adega do consumidor por menos de 10 euros.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Rosés de J. A. Liebling

O jornalista J. A. Liebling (1904-1963), que durante décadas escreveu na New Yorker, recebeu a roseta da Legião de Honra francesa por suas reportagens sobre a Segunda Guerra Mundial. Esteve na França em 1939, durante a ocupação alemã e, em 1944, acompanhou as tropas aliadas na libertação de Paris. Seus relatos pungentes tinham o poder de fascinar, salvando de certo modo a reputação do romancista frustrado. Escreveu também sobre o mundo “eletrizante e sujo” do boxe e conseguiu projeção com um perfil do líder religioso negro Father Divine. Mas foi com as crônicas sobre a boa mesa e os vinhos da França – aonde sempre voltava em peregrinação de devoto – que Liebling marcou época, apresentando à elite americana o gosto dos franceses e influenciando críticos do seu país. Em Between Meals (no Brasil, Fome de Paris, editado pela Record), o jornalista trata, em ritmo de autobiografia, de suas andanças como gourmet apaixonado. Ele transitou muito mais pela “camada dickensiana” de Paris, seus becos e bordéis, do que pelos grandes salões e festas de literatos e celebridades. Não à toa, Fome de Paris é comparado e tornou-se um contraponto a Paris é uma Festa de Hemingway. O centro do livro de Liebling é o de sua formação como gastrônomo e enófilo, no período (1926-1927) em que foi “quase” um aluno da Sorbonne, às custas de mesada paterna. Logo descobriu que suas disciplinas de interesse não estavam nos bancos da universidade, mas nas mesas de pequenos restaurantes, bistrôs e cafés onde, acreditava, batia a genuína alma francesa. “O dólar estava cotado a 26 francos, e o pesquisador, se dispusesse apenas de determinada soma – digamos, seis francos – para gastar, em breve estabelecia para si mesmo se, por exemplo, uma meia garrafa de Tavel supérieur, a três francos e meio, e o coração de boi assado na panela, com nabos amarelos, a dois francos e meio, lhe davam mais ou menos prazer que um contra-filé, a cinco francos, e meia garrafa de ordinaire, a um franco. Ele poderia descobrir que o coração, com seu sabor forte e intenso, e sua estranha textura, lhe agradava quase tanto quanto o bife; e já que o Tavel era esmagadoramente melhor que o vinho barato, ele se sairia bem ao pedir o primeiro par. Ou talvez descobrisse que preferia a tal ponto o generoso e sangrento contra-filé que poderia aceitar o amargo corriqueiro no lugar do Tavel.” A resolução dessas equações foram fundamentais no aprendizado de Liebling. Rechonchudo e careca, muitas décadas, pratos e taças depois, Liebling já era íntimo dos grandes rótulos de Bordeaux e da Borgonha, mas sempre fazia reverência aos rosés de Tavel, vinhos incensados por Luís XVI e Balzac. Os rosés eram moda nas décadas de 1950 e 60, mas entraram “em decadência vítima de seu próprio sucesso”, explica o crítico Jorge Lucki em A experiência do Gosto (Companhia das Letras/2010). Muita produção teria resultado em vinhos rosés “banais”, que passaram a ser produzidos no pós-guerra não só no sul da França, mas em todo país em esforço desajeitado de reconstrução também da sua indústria vinícola. Vinhos certamente diferentes dos provados por Liebling na sua juventude. A França de Liebling não existe mais, mas os rosés de Tavel – “o único rosé digno", como proclamava – sim, produzidos agora com competência técnica pelos mesmos viticultores que fazem bons tintos e brancos. A pequena Tavel, vila situada no Vale do Rhône, ao norte de Avignon, produz rosés há séculos, originalmente com uvas Grenache e Cinsault . Hoje são permitidas a Syrah e a Mourvèdre. Os vinhos rosés são elaborados a partir de uvas tintas, maceradas com as cascas por um tempo breve (um flerte, segundo o romancista). As cascas são retiradas antes que o vinho fique tinto. Na paleta do clássico O Gosto do Vinho, de Emile Peynaud, os rosés aparecem em muitos tons, como o rosa claro de uma peônia, os que vão para o pêssego e os indefectíveis cor de salmão, dependendo da habilidade de cada enólogo. Todos lembram, entretanto, a poética fala dos marinheiros que transportavam o Tavel no século XV. Estamos trazendo "un peau de soleil dans l'eau froide" (algo como "um pouco de sol em água fria"), diziam nos portos. Neste exato momento, em algum restaurante do Mediterrâneo, alguém certamente está brindando com rosé – seja ele o Tavel de Liebling, o Bandol da Provença, o Anjou do Vale do Loire, o Marsannay da Borgonha, um rosado espanhol ou um rosato da Itália. Diário do Comércio de 23/08/2013

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Milagres de Ribera del Duero

Milcampos Viñas Viejas é um vinho de Ribera del Duero, região vinícola no norte da Espanha, preparado com uvas Tempranillo colhidas de antigas parreiras, de baixa produção e, por isso mesmo, garantia de concentração de qualidades. Foi assim que a Bodega La Milagrosa fez um dos seus mágicos serviços. O vinho saído daquele terreno xistoso às margens do Douro, da safra 2010, recebeu 94 pontos da Wine Advocate do crítico Robert Parker, coroando assim o trabalho de formiguinha de uma cooperativa surgida em Ribera del Duero em 1962. O Milcampos ganhou a estrada. No Brasil, importado pela Grand Cru, alcançou ainda mais visibilidade por meio de sites especializados em garimpar preciosidades, como o simpático Sonoma. E, a R$ 55 a garrafa, chegou a ser imbatível na relação custo-benefício, um caro quesito para aqueles apreciadores de vinhos que são simples mortais. La Milagrosa é uma das cerca de 250 vinícolas da região que investem em qualidade, caprichando para que seus vinhos não tenham exagerada madeira. Os vinicultores da então predominante Rioja que se cuidem. Durante pelo menos 100 anos, antes de 1980, os vinhos da Bodega Vega Sicilia eram sinônimo de Ribera del Duero, na região autônoma de Castilla y León – "um posto avançado de fabricação de vinhos finos no meio de campos de beterrabas", como descreve Jay McInerney. Ali eles fazem vinhos desde 1846. Os Vega Sicilia, com seus inigualáveis blends de uvas locais e francesas, têm, digamos, vida própria, como se a região já não fosse tão importante assim. São tidos como os melhores vinhos de toda Espanha. Hugh Johnson trata-o como o Latour espanhol. Cultuados em todo mundo, os Vega Sicilia já nasceram caros – uma garrafa de seu raro rótulo Unico (safra 2002, com 95 pontos RP) não sai por menos de R$ 500. Mas a casa contribuiu, e muito, para despertar e elevar o nível de preocupações de outras propriedades à sua volta. Hoje, quando se fala em Ribera Del Duero, além da Vega Sicilia, é inevitável citar o produtor Alejandro Fernandez e sua vinícola Pesquera. Na lista de bodegas de excelência estão ainda a Dominio de Pingus, Abadia Retuerta e Bodegas Emilio Moro. Já na propriedade de Hermanos Perez Pascua, grandes críticos americanos foram apresentados a vinhos inigualáveis, devidamente acompanhados do mais típico cordero lechal al horno – uma harmonização perfeita para esses tintos espanhóis. A jovem Aalto, vinícola criada em 1999 por Javier Zaccagnini e por Mariano Garcia, respeitadíssimo ex-enólogo da Veja Sicilia, também entra na seleta lista, como grande revelação. E temos mais milagres na região. Mesmo diante do cenário de grave crise econômica vivida em toda Espanha, os vitivinicultores de Ribera del Duero têm motivo para comemorar. O número de garrafas produzidas neste primeiro semestre de 2013 cresceu 3,2% em relação ao mesmo período do ano passado. O avanço é medido pelo Consejo Regulador de la Denominación de Origen Ribera del Duero, a entidade que, entre outras tarefas, controla com mão de ferro a qualidade dos vinhos ali produzidos. O Consejo expediu nos primeiros seis meses deste ano 41.156.419 etiquetas (que são obrigatoriamente colodas nas garrafas). É o quinto ano consecutivo de avanço, com a expectativa de que o recorde de 2012, de mais de 70 milhões de unidades, seja mais uma vez superado este ano. O Consejo está instalado desde março de 2011 numa sede de 4.115 m² em Roa, Burgos, prédio que une o antigo ao moderno e celebra também este bom momento da região. A vitivinicultura da região de Ribera del Duero tem raízes na era romana, mas os vinhedos mais modernos são herança da Idade Média, plantados por monges franceses no monastério cisterciense em Valbuena de Duero. Uma das provas da antiguidade da atividade é um mosaico do século V, na pequena e tranquila vila Baños de Valdearados, que retrata o Triunfo de Baco. Pois parte do mosaico (na reprodução) foi levada por ladrões, como se a primeira página do grande livro espanhol de vinhos tivesse sido rasgada.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Doces combinações

O único problema com os chamados vinhos de sobremesa é ... a sobremesa, escreveu em tom de blague o romancista americano Jay McInerney, com a convicção de que esses vinhos, tão bons e requintados, têm vida própria. Não é difícil concordar com ele. Outro autor, Kevin Zraly, faz um jogo de palavras: doces satisfações podem advir tanto do vinho com a sobremesa quanto do vinho como sobremesa. Zraly é enólogo e educador. Durante anos formou sob essa ótica sommeliers e enófilos no Windows on the World, o famoso restaurante destruído nos ataques de 11 de setembro em Nova York. (Há uma posição radical sobre o assunto, a de Hemingway. Conta a lenda que, em dia de toureiro enfezado, o escritor teria disparado: homem que come sobremesa é porque não bebeu o suficiente). Alguém tem alguma dúvida sobre a personalidade emancipada de um Porto ou de um Sauternes ? Um gole deste último, de preferência com uma fatia de foie gras, sempre encabeça aquelas divertidas listas das coisas indispensáveis a degustar antes de bater as botas. Negligenciados durante muitos anos, os vinhos doces passaram a ganhar espaço na carta de restaurantes, avançando hoje nas prateleiras das importadoras. A demanda também têm estimulado vinícolas, inclusive no Brasil, a reservar algumas fileiras para o seu rótulo de sobremesa. Os vinhos doces eram "como aquele parente gentil que de alguma maneira fica encoberto por outro na foto da família", compara o escritor Mark Oldman. Hoje já conseguem aparecer na fotografia. Porto e Sauternes são os arquétipos dos vinhos de sobremesa. Mais tradicional, o vinho do Porto tem sua elegância e poder baseados na fortificação (recebe aguardente vínica durante a fermentação). É o mais inglês dos vinhos portugueses. Ele pode ser um vinho de meditação, companhia solitária na leitura de um livro. Mas quando acompanhado, no queijo Stilton encontra a harmonização mais clássica. E pode ir à mesa com sobremesas à base de chocolate amargo. No batalhão fortificado do Porto estão alinhados o Sherry espanhol, o Madeira da ilha portuguesa de mesmo nome, e o Marsala da Sicília. Para o Sherry, recomenda-se um perfumado sorvete de baunilha ou uma sobremesa de figos O Madeira vai bem com torta de nozes ou uma sobremesa de chocolate ao leite, ou mesmo um doce regado com café, como o tiramisu. Os doces de figo também combinam com o Marsala (é claro que os marinheiros do almirante Nelson, que tinham o Marsala como vinho da vitória, não tinham essa possibilidade!).. O segundo arquétipo de vinho de sobremesa é o Sauternes de Bordeaux. Mais aristocrático, sempre surpreende os iniciantes com seu inusitado currículo. Afinal, como é possível um vinho de cor e doçura inimitáveis ter origem numa coisa feia dessas: uvas apodrecidas depois de atacadas por um fungo? Até parece história de queijo! Um néctar esplendoroso resulta da vinificação de uvas sémillion e sauvignon blanc completamente atacadas pelo Bortrytis cinerea, a chamada "podridão nobre". A mágica é que o fungo desidrata cada bago, concentrando açúcar. Na fermentação, nem todo açúcar se transforma em álcool e é essa a graça e a doçura natural da história, que tem o Château d'Yquem como emblema de excelência. O Sauternes é o maior representante da categoria "latest harvest", a colheita tardia, com uvas superamadurecidas. Na mesma linha do Sauternes estão os Tokaji da Hungria e outros vinhos doces elaborados no Vale do Loire e na Alsácia, além do Beernauslese e do Trockenbeerenauslese, feitos tanto na Alemanha quanto na Áustria. Zraly indica para o acompanhamento desses vinhos tortas de frutas, o indefectível crème brulée, pudim de creme, bolos de avelãs ou, por contraste, queijo Roquefort. Na lista de irresistíveis e versáteis vinhos de sobremesa com vida própria estão os vini dolci italianos, sendo o mais incensado deles o Vin Santo, tradicionalmente preparado na Toscana com as uvas Trebbiano e Malvasia. Pelo menos um historiador garante que o nome desse vinho está ligado aos monges que iam de casa em casa atendendo a necessitados e doentes. O vinho servido que gerava conforto teria recebido a alcunha de "vinho santo" (Matt Kramer tem pelo menos outra meia dúzia de versões). No rito do vin santo estão os biscotti, que são mergulhados sem vergonha nas pequenas taças. McInerney lista em Bacchus and Me (Vintage Books/Random House/2002), vários outros vinhos doces do Piemonte, como o Moscato d'Asti, o Picolit do Friuli, sem esquecer o Recioto de Valpolicella, preparado a partir de uvas passas, como os passitos e moscatos da ilha de Pantelleria, na Sicília. Santorini, na Grécia, também faz seus vin santo. Mas o doce "incandescente" Mavrodaphne de Patras, que conquistou o escritor Henry Miller antes da Segunda Guerra, é talvez o par mais harmonioso para seus doces de pistache. Do outro lado do mundo, vinificados na Alemanha e no Canadá a partir de uvas congeladas no pé, os icewines passaram a viajar o mundo em pequenas garrafas de pura doçura.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Barbaresco, ele mesmo.

O Barbaresco, vinho 100% Nebbiolo, de vinhedos que crescem nas colinas da Langhe, perto da Alba-das-trufas-brancas, a sudeste de Turim –, não é um pequeno Barolo ou Barolo Jr., apesar de toda história e vizinhança. É essa a defesa sempre necessária que fizeram recentemente alguns sites internacionais, incluindo o didático Snooth . O perfumado e mais leve Barbaresco se ombreia com o Barolo e são ambos grandes clássicos italianos e de todo mundo, enquanto o outro "B" do Piemonte, o Barbera, também galga degraus em qualidade. São os vinhos ideais para acompanhar a gastronomia local, como o bolito, os risotti, os gnocchi alla bava, as pastas enevadas de trufas e o stracotto – aquele cozido que tem um quê de paraíso. Quando em 1787 Thomas Jefferson visitou o Piemonte, essa parte da Itália abraçada à França, ele ainda encontrou um vinho da Nebbiolo doce como o Madeira, adstringente no palato como um Bordeaux e pungente como o Champagne. Era época em que Jefferson anotava tudo o que poderia ser útil para os independentes Estados Unidos - até o modo de preparar um mascarpone não lhe escapava, como conta o enólogo Gerad Asher em Vineyards Tales - Reflection on Wine (Chronicle Books/1996). Décadas mais tarde, a enciclopédia britânica ainda tratava o vinho piemontês como brusco. As mudanças desse vinho, que até então não tinha identidade formada, aconteceram em 1840, quando o enólogo francês Louis Oudart, a convite da mulher de um produtor piemontês, converteu o "doce" Nebbiolo da região de Barbaresco em um vinho seco, envelhecido em então inéditas barricas de carvalho, como os grandes vinhos franceses. Foi um sucesso. Asher conta, num capítulo inteiro dedicado ao Barbaresco, que até Cavour, o primeiro-ministro piemontês à época do rei Vittorio Emanuele II, ativista central do Risorgimento italiano, gostou da ideia e aplicou-a rapidamente a seus vinhedos. O fato é que as práticas de Oudart foram mais rapidamente adotadas pelos vinicultores de Barolo do que pelos de Barbaresco. E o resultado foi que o novo estilo Nebbiolo entrou primeiramente no mercado através das garrafas de Barolo. É verdade também que a área plantada pesou nessa conquista. Hoje, apesar de novos vinhedos em Barbaresco, a área cultivada está perto de 680 hectares, menos que a metade da área de seu vizinho famoso plantada com a Nebbiolo. O trabalho do francês Oudart foi consolidado em 1880 por Domizio Cavazza, um professor respeitado na região e fundador de respeitadas escolas para vinicultores em Alba. Em 1894 ele fundou a cooperativa Produttori del Barbaresco (www.produttoridelbarbaresco.com.). "Pela primeira vez então o Barbaresco passou a ter uma identidade publicamente proclamada", escreve Matt Kramer, no seu Making Sense of Italian Wine (Running Press/2006). Esses produtores cooperados, descontado o período em que foram forçados a parar pelas autoridades fascistas, continuam em plena atividade e trabalham em metade dos vinhedos de Barbaresco (mas não na apelação toda, que inclui Treiso e Neive). São 52 membros produzindo 500 mil garrafas por ano. O renome internacional do Barbaresco, entretanto, foi conquistado, a partir dos anos 1970, graças ao trabalho incansável de Angelo Gaja, que viajou o mundo garantindo mercados e preços. Vários de seus rótulos estão disponíveis nas grandes importadoras do País, incluindo os Langhe Rosso, que são assim identificados porque levam um toque da Barbera local. Na lista de notáveis produtores de Matt Kramer, entram Gaja, os Produttori del Barbaresco, mas também Piero Busso, Ca'Romé di Romano Marengo, Castello di Neive, Ceretto, Giuseppe Cortese, Bruno Giacosa, Ugo Lequio, Marchesi di Grésy, Moccagatta, Paitin di Pasquero-Elia, Cantina del Pino Pio Cesare, Prunotto, Roagna, Sottimano, La Spinetta e Vietti. DC 1/8/2013