quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Rosés de J. A. Liebling

O jornalista J. A. Liebling (1904-1963), que durante décadas escreveu na New Yorker, recebeu a roseta da Legião de Honra francesa por suas reportagens sobre a Segunda Guerra Mundial. Esteve na França em 1939, durante a ocupação alemã e, em 1944, acompanhou as tropas aliadas na libertação de Paris. Seus relatos pungentes tinham o poder de fascinar, salvando de certo modo a reputação do romancista frustrado. Escreveu também sobre o mundo “eletrizante e sujo” do boxe e conseguiu projeção com um perfil do líder religioso negro Father Divine. Mas foi com as crônicas sobre a boa mesa e os vinhos da França – aonde sempre voltava em peregrinação de devoto – que Liebling marcou época, apresentando à elite americana o gosto dos franceses e influenciando críticos do seu país. Em Between Meals (no Brasil, Fome de Paris, editado pela Record), o jornalista trata, em ritmo de autobiografia, de suas andanças como gourmet apaixonado. Ele transitou muito mais pela “camada dickensiana” de Paris, seus becos e bordéis, do que pelos grandes salões e festas de literatos e celebridades. Não à toa, Fome de Paris é comparado e tornou-se um contraponto a Paris é uma Festa de Hemingway. O centro do livro de Liebling é o de sua formação como gastrônomo e enófilo, no período (1926-1927) em que foi “quase” um aluno da Sorbonne, às custas de mesada paterna. Logo descobriu que suas disciplinas de interesse não estavam nos bancos da universidade, mas nas mesas de pequenos restaurantes, bistrôs e cafés onde, acreditava, batia a genuína alma francesa. “O dólar estava cotado a 26 francos, e o pesquisador, se dispusesse apenas de determinada soma – digamos, seis francos – para gastar, em breve estabelecia para si mesmo se, por exemplo, uma meia garrafa de Tavel supérieur, a três francos e meio, e o coração de boi assado na panela, com nabos amarelos, a dois francos e meio, lhe davam mais ou menos prazer que um contra-filé, a cinco francos, e meia garrafa de ordinaire, a um franco. Ele poderia descobrir que o coração, com seu sabor forte e intenso, e sua estranha textura, lhe agradava quase tanto quanto o bife; e já que o Tavel era esmagadoramente melhor que o vinho barato, ele se sairia bem ao pedir o primeiro par. Ou talvez descobrisse que preferia a tal ponto o generoso e sangrento contra-filé que poderia aceitar o amargo corriqueiro no lugar do Tavel.” A resolução dessas equações foram fundamentais no aprendizado de Liebling. Rechonchudo e careca, muitas décadas, pratos e taças depois, Liebling já era íntimo dos grandes rótulos de Bordeaux e da Borgonha, mas sempre fazia reverência aos rosés de Tavel, vinhos incensados por Luís XVI e Balzac. Os rosés eram moda nas décadas de 1950 e 60, mas entraram “em decadência vítima de seu próprio sucesso”, explica o crítico Jorge Lucki em A experiência do Gosto (Companhia das Letras/2010). Muita produção teria resultado em vinhos rosés “banais”, que passaram a ser produzidos no pós-guerra não só no sul da França, mas em todo país em esforço desajeitado de reconstrução também da sua indústria vinícola. Vinhos certamente diferentes dos provados por Liebling na sua juventude. A França de Liebling não existe mais, mas os rosés de Tavel – “o único rosé digno", como proclamava – sim, produzidos agora com competência técnica pelos mesmos viticultores que fazem bons tintos e brancos. A pequena Tavel, vila situada no Vale do Rhône, ao norte de Avignon, produz rosés há séculos, originalmente com uvas Grenache e Cinsault . Hoje são permitidas a Syrah e a Mourvèdre. Os vinhos rosés são elaborados a partir de uvas tintas, maceradas com as cascas por um tempo breve (um flerte, segundo o romancista). As cascas são retiradas antes que o vinho fique tinto. Na paleta do clássico O Gosto do Vinho, de Emile Peynaud, os rosés aparecem em muitos tons, como o rosa claro de uma peônia, os que vão para o pêssego e os indefectíveis cor de salmão, dependendo da habilidade de cada enólogo. Todos lembram, entretanto, a poética fala dos marinheiros que transportavam o Tavel no século XV. Estamos trazendo "un peau de soleil dans l'eau froide" (algo como "um pouco de sol em água fria"), diziam nos portos. Neste exato momento, em algum restaurante do Mediterrâneo, alguém certamente está brindando com rosé – seja ele o Tavel de Liebling, o Bandol da Provença, o Anjou do Vale do Loire, o Marsannay da Borgonha, um rosado espanhol ou um rosato da Itália. Diário do Comércio de 23/08/2013

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