sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Bishop, Ponche, Pudding, Dickens

No final da vida, o grande escritor inglês Charles Dickens (1812-1870), muito requisitado para leituras públicas de sua obra, tinha um remédio infalível para o cansaço e outros males da velhice: batia alguns ovos com Sherry, o vinho que fazia com o Porto a dobradinha da Era Vitoriana. Ou mesmo os misturava ao Champagne. Apesar de ser um degustador comedido, às voltas com ideais de temperança, seus relatos das celebrações do Natal nunca dispensaram um bom copo, delineando sempre os estágios de bebeira de seus personagens, como escreveu o bisneto Cedric Dickens em Drinking with Dickens (New Amsterdam Books/1980). De bêbados incorrigíveis como Maypole Hugh, "capaz de beber um Tâmisa" inteiro, passando por bons bebedores como Bob Sawyer e seu milk punch, até o emblemático Mr. Pickwick, que bebia por prazer, com brindes intermináveis à comilança e à amizade. Um dos relatos dickensianos mais pungentes é o conto A Christmas Carol, de 1843, não à toa escrito na década da invenção do primeiro cartão de Natal. Nessa obra prima de Dickens, o avaro Scrooge é convertido ao espírito natalino depois rever, com a ajuda de fantasmas, os seus vários 25 de dezembro. Simbolicamente, o vinho aguado da infância se contrapõe a um belo poncho, o estalo emotivo no qual Scrooge "se manifesta humano". Ele não só aumenta o salário de seu funcionário como oferece a ele um Bishop, o vinho tinto vertido em laranjas amargas, com especiarias e açúcar. A Dickens era caro a oportunidade proporcionada pelo Natal de reunir as famílias diante de um peru e um voluptuosopudding, das mais pobres às de uma classe média em ascensão. Em outros livros, vemos que o Natal foi inventado ali, em suas páginas, ou pelo menos na sua literatura ganhou mais cor, "foi redefinido", como analisou Simon Callow em Dickens' Christmas– A Victorian Celebration (Harry N. Abrams/NY/2003). Estão lá as velas, as guirlandas, a ceia copiosa, a alegria, o calor, os vinhos, os punchs, os brindes.


DC de 24/12/2010

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Som na caixa, Dioniso

As plantas gostam de música, têm fé os viticultores da DeMorgenzon, uma das mais antigas vinícolas de Stellenbosch, colônia fundada pelo governador holandês Simon van der Stel, em 1679, na África do Sul, durante a conquista do Cabo da Boa Esperança. A área dos atuais vinhedos fazia parte de uma fazenda, a Uiterwyk, cedida a Dirk Cauchet em 1699. Um ano depois, as primeiras videiras foram plantadas. A terapia de música às vinhas foi implantada recentemente, a partir de 2003, quando a propriedade foi comprada pelo casal Wendy e Hylton Appelbaum. DeMorgenzon, ou "Sol da Manhã", foi assim batizada porque suas fileiras de plantas, graças a altitude e geografia, são as primeiras a serem iluminadas ao amanhecer. Pois os Appelbaum espalharam caixas de som por todo o vinhedo e ininterruptamente o expõe principalmente à música barroca. E por que barroca? É um estilo de precisão harmônica e de muita matemática, justificam. A lista de compositores abriga dezenas de nomes menos ou mais conhecidos, de Johann Sebastian Bach a Domenico Cimarosa, de Luigi Boccherini a Georg Friedirich Handel, de Franz Joseph Hayden a Charles Avison. E, não poderia faltar, Wolfgang Amadeus Mozart (veja relação completa no site da vinícola). Os Appelbaum acreditam que os frutos de suas videiras crescem mais saudáveis e com mais vigor graças à música, e têm comprovado no dia a dia da cultura que há conexões entre som, vibrações e a realidade física de seus vinhedos. A prova final são seus respeitáveis vinhos das uvas Chenin Blanc, Sauvignon Blanc e Shiraz, produzidos, antes de tudo, com impecável respeito ao meio ambiente. Wendy e Hylton têm consciência de que os estudos científicos sobre o intrigante assunto ainda são esparsos. Mas já se apegam a algumas pesquisas realizadas pelo mundo, como a descrita na bíblia do casal The Sound of Music and Plant, livro no qual cientistas de Denver, Colorado, demonstram que, com música, as plantas crescem mais rápido. Falam também da semaphore, uma planta que até responde aos estímulos, dançando com harmonia. Sem contar os efeitos da música – e aí já estamos no terreno das aberrações – nos tomates, gigantes de 2 kg nascidos na França, e das beterrabas inglesas que alcançaram 13 kg, depois de "ouvirem" um belo som. Os estudos japoneses, comandados pelo cientista Masaru Emoto, comprovaram que a música tem efeitos positivos nas moléculas de água. Como o vinho tem 80% de água, outro vinicultor da África do Sul, o norueguês Robert Jorgensen, da vinícola La Vigne resolveu é colocar som na própria adega, para que os vinhos nos barris de carvalho recebam a emanação positiva da música clássica. Para que a música chegue a todos os barris e não se perca no caminho, as músicas são executadas em alto volume, som a mais de 90 decibéis.


www.lavigne.co.za

DC de 17/12/2010

domingo, 12 de dezembro de 2010

Eataly, por uma vida melhor

Barricas com frescos vinhos piemonteses, água dos Alpes Marítimos (não sem a beleza de garrafas com design), pastas de grano duro de Gragnano (e de outras regiões de mesa caprichosa), azeite da Ligúria, carne bovina, salames (e uma infinidade de embutidos), queijos de tradição piemontesa, aromáticos manjericões gigantes... É com essa receita de produtos regionais de qualidade, sob a vigilância do Slow Food, que as lojas da grife Eataly têm conquistado seus clientes gourmet e gourmand de todo mundo. A primeira loja Eataly nasceu em Turim, no Piemonte, em janeiro de 2007. Foi montada nas instalações da antiga fábrica do vermute Carpano, no histórico complexo industrial da Via Nizza – não à toa Carpano é hoje o nome do café na Eataly de Turim. Além de pontos de venda em outras cidades italianas – está em Milão, Alba, Gênova – a Eataly chegou a Tóquio e, em meados deste ano, ganhou uma superloja em plena Madison Square, Nova York, maior em área do que a própria loja original, em Turim, com investimentos da ordem de US$ 20 milhões. E se os vinhos têm presença marcante na Eataly, isso se deve à origem de seu criador. Oscar Farinetti consolidou uma carreira bem sucedida de aquisição de vinícolas italianas, culminando com a tradicional Fontanafredda. Hoje também mantém negócios como restaurateur em Nova York. Os vinhos italianos estão todos nas prateleiras da Eataly, não sem referências didáticas. Há ainda ponto para aulas e degustação e mesmo um chef para produzir pratos harmonizados com o vinho tirado nas prateleiras. O consumidor pode ainda escolher a garrafa vazia que mais se adequar à sua sede e se servir de vinho regional, abrindo as torneirinhas da série de tonéis. O passeio a uma das lojas da Eataly é plano para horas. Ao lado de cada uma das seções de alimentos, um restaurante temático aguarda o visitante. A pizzaria ao lado das infinitas galerias de massas artesanais. Um grill para a seção de carnes. Uma biblioteca com títulos de arte e enogastronomia alimenta a alma. O mote da loja? "Comer bem ajuda a viver melhor".

www.eataly.com

DC de 10/12/2010

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Histórias (quase) enogastrocêntricas

Em Aqueles Cães Malditos de Arquelau (Editora 34/1993), o professor Isaías Pessotti faz da ficção um espaço para a defesa do estar à mesa. Seus personagens, pesquisadores na Itália dos anos 60, sempre prontos a decifrar enigmas históricos medievais, não dispensam esse cenário para encontros de paixão e ciência. As genialidades da cozinha temperam o pensamento acadêmico. Não à toa, muitas das preferências enogastronômicas de Pessotti, um especialista uspiano em história da loucura, aparecem com destaque em suas obras. Já escrevi aqui sobre os Barbarescos dionisíacos, os Barberas honestíssimos e os Gattinaras de verdade, presentes no premiado Aqueles Cães..., todos aditivos exemplares de uma boa conversa, no caso em temporadas na Lombardia e no Piemonte. Mas a volta a outros de seus romances históricos, nos leva a mais deliciosas referências. Em O Manuscrito de Mediavilla (1995), nem uma rotineirabruschetta escapa da companhia de uma garrafa de Grechetto ou de Torgiano. Em Lua da Verdade (1997), dietas de conventos e restaurantes se misturam. Desta feita um padre, uma jornalista, um engenheiro e um romancista debatem mistérios de um processo da Inquisição portuguesa e a condenação do heliocentrismo. Estão no menu: Galileu, Tycho Brahe, Kepler... Os pesquisadores estão no navio Provence e já observam a lista de grandes vinhos franceses e italianos. O jesuíta reclama da ausência de vinhos verdes para acompanhar os peixes e dá uma dica preciosa ao romancista, que está a caminho de Évora: beba um Alandra. Em outro momento, diante de um menu com Ossibuchi Bellunesi ("mais vêneto, impossível"), a lombardíssima Faraona Gaieri e um canneloni especial, recheado com abóbora, a escolha de um Chiaretto, da Puglia. "Costumam ser leves, brilhantes, pouco frutados. São até alegres: não têm a sisudez de um Nebbiolo, por exemplo..." Todos do grupo gostaram da escolha e aproveitam para falar dos críticos de vinho, suas encenações e escritos impressionistas. Segundo o engenheiro, estes fazem seus comentários muitas vezes como a paleta dos críticos de pintura: "matizes melancólicos, chiaro-scuro angustiante, luzes e reflexos eufóricos, profundidades agitadas que se contorcem como num espasmo..." E para uma gargalhada geral, o complemento do jesuíta: "...num espamo telúrico, onde, à força primária e instintiva da forma, sobrepõe-se, ainda que tímido, o equilíbrio de uma geometria crepuscular, quase macabra..."


Diário do Comércio de 3/12/2010