segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Histórias (quase) enogastrocêntricas

Em Aqueles Cães Malditos de Arquelau (Editora 34/1993), o professor Isaías Pessotti faz da ficção um espaço para a defesa do estar à mesa. Seus personagens, pesquisadores na Itália dos anos 60, sempre prontos a decifrar enigmas históricos medievais, não dispensam esse cenário para encontros de paixão e ciência. As genialidades da cozinha temperam o pensamento acadêmico. Não à toa, muitas das preferências enogastronômicas de Pessotti, um especialista uspiano em história da loucura, aparecem com destaque em suas obras. Já escrevi aqui sobre os Barbarescos dionisíacos, os Barberas honestíssimos e os Gattinaras de verdade, presentes no premiado Aqueles Cães..., todos aditivos exemplares de uma boa conversa, no caso em temporadas na Lombardia e no Piemonte. Mas a volta a outros de seus romances históricos, nos leva a mais deliciosas referências. Em O Manuscrito de Mediavilla (1995), nem uma rotineirabruschetta escapa da companhia de uma garrafa de Grechetto ou de Torgiano. Em Lua da Verdade (1997), dietas de conventos e restaurantes se misturam. Desta feita um padre, uma jornalista, um engenheiro e um romancista debatem mistérios de um processo da Inquisição portuguesa e a condenação do heliocentrismo. Estão no menu: Galileu, Tycho Brahe, Kepler... Os pesquisadores estão no navio Provence e já observam a lista de grandes vinhos franceses e italianos. O jesuíta reclama da ausência de vinhos verdes para acompanhar os peixes e dá uma dica preciosa ao romancista, que está a caminho de Évora: beba um Alandra. Em outro momento, diante de um menu com Ossibuchi Bellunesi ("mais vêneto, impossível"), a lombardíssima Faraona Gaieri e um canneloni especial, recheado com abóbora, a escolha de um Chiaretto, da Puglia. "Costumam ser leves, brilhantes, pouco frutados. São até alegres: não têm a sisudez de um Nebbiolo, por exemplo..." Todos do grupo gostaram da escolha e aproveitam para falar dos críticos de vinho, suas encenações e escritos impressionistas. Segundo o engenheiro, estes fazem seus comentários muitas vezes como a paleta dos críticos de pintura: "matizes melancólicos, chiaro-scuro angustiante, luzes e reflexos eufóricos, profundidades agitadas que se contorcem como num espasmo..." E para uma gargalhada geral, o complemento do jesuíta: "...num espamo telúrico, onde, à força primária e instintiva da forma, sobrepõe-se, ainda que tímido, o equilíbrio de uma geometria crepuscular, quase macabra..."


Diário do Comércio de 3/12/2010

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