quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

A uva Norton de Thomas Jefferson

Thomas Jefferson, um dos pais da pátria norte-americana, principal autor da Declaração da Independência e terceiro presidente dos Estados Unidos (1801-1809) cunhou uma máxima que os puritanos de plantão não engoliram: “o vinho é o único antídoto contra a perdição do whisky”, dizia Thomas Jefferson. Não só não engoliram, como mais tarde ganharam a guerra, misturando todos os alcoóis na mesma lista de proibidos, com a decretação da Lei Seca (1920 a 1933).

O vinho caiu nas graças de Jefferson depois de sua passagem pela França, como embaixador (1784-1789). A partir de Paris, ele realizou inúmeras viagens pelas regiões vinícolas européias e tomou gosto pelo assunto (e pelos vinhos). Há registros de que chegou a enviar grandes rótulos para a adega da Casa Branca. Quando deixou Paris, levou com ele 125 garrafas do Château Haut-Brion, o premier cru classé produzido em Pessac, não distante de Bordeaux. Jefferson dizia: “Nós poderíamos, nos Estados Unidos, produzir variedades de vinho tão boas como aquelas feitas na Europa, não exatamente dos mesmos tipos, mas sem dúvida da mesma qualidade.”

Como defensor da horticultura e de todas as potencialidades da terra americana, Jefferson chegou a plantar vinhas na sua propriedade de Monticello, na suaVirgínia natal, mas grande parte das vitis viníferas de tradição europeia não resistiram às doenças da América. O grande sonho do vinho americano, emulando ou superando os da Europa, não foi atingido em sua época (isso demoraria cerca de um século e meio, se contarmos o início da revolução vinícola nos Estados Unidos, a partir dos anos 1960, com Robert Mondavi, na Califórnia).

Entre as uvas cultivadas por Thomas Jefferson estava a variedade Norton, batizada a partir do nome de seu descobridor, Daniel Norbone Norton (1794-1842), médico e horticultor de Richmond, Virgínia, que passou a promover essa cepa a partir de 1820.

Doctor. Norton dizia que a variedade Norton era uma planta híbrida de Bland (Vitis lambrusca X Vitis vinífera) e Pinot Meunier. Estudos recentes de DNA, entretanto, registrados no livro Wine Grapes (Jancis Robinson, Julia Harding e José Vouillamoz) dizem que a Norton é uma uva híbrida que inclui entre seus ancestrais Vitis aestivalis e Vitis vinifera, rejeita o parentesco com a Pinot Meunier, e fala de uma relação com a Enfariné Noir.

No final dos anos 1800, bons clarets da uva Norton chegaram a ser vinificados na Monticello Wine Company de Charlottesville. Hoje, a Horton Vineyards, por exemplo, tem orgulho de reintroduzir entre seus vinhedos a variedade Norton da Virgínia ao lado de cepas francesas do Rhône e de Bordeaux. Variedades que se dão bem no clima de Old Dominion.

Os vinhos da Norton produzidos pela Horton, segundo o site da própria vinícola, são escuros, frutados, com aroma intenso de ameixas e cerejas azedas. Passam 14 meses em barricas de carvalho, o que garante ao vinho um final aromático de especiarias. Um vinho indicado para carne de caça, linguiças grelhadas e pratos étnicos apimentados. Nos vinhos Norton da Horton, 93% das uvas são Norton, sendo os 7% restantes da casta portuguesa Touriga Nacional.

A Norton é muito cultivada na região Nordeste e no Midwest dos Estados Unidos. Outras vinícolas de respeito na terra da Norton são Augusta Winery, Crown Valley, Stone Hill (Missouri) e Pontchartain (Louisiana).  Segundo Tyler Colman (Wine Politcs/University of California Press/2008), a vinícola Stone Hill, fundada em 1847, faz o que os colonizadores do rei James nunca puderam fazer, ou seja, bons vinhos com a variedade local. Outro fã da Norton é o filósofo inglês Roger Scruton, que a incluiu num dos capítulos de seu festejado livro I Drink Therefore I am (Continuum/2011)

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Punch hot 25, sem esnobismos

William Thackeray (1811-1868), amigo de Charles Dickens e frequentador da Trafalgar Tavern, em Greenwich, era romancista e escreveu ferinas críticas aos esnobes de seu tempo, a quem chamava de England Dinner-giving Snobs.  Colaborava com a revista Punch, artigos posteriormente reunidos em Book of Snobs, em 1848. 
    Hoje há uma competente e moderna revista Punch, virtual, que consegue capturar o ethos que leva os vinhos, os destilados e os coquetéis adiante na sua jornada de inovação e alegria, reportando com criatividade que suplanta o tão alquebrado esnobismo do tema. A revista não se contenta com o comum, nem com as unanimidades geradas pelo mercado. Veja a seguir a lista dos 25 vinhos do ano, segundo a Punch. Visite o site, com a reportagem completa assinada por Jon Bonné e crítica e serviço de cada rótulo.

Punch hot 25
Day Wines Mamacita! Mae’s Vineyard Malvasia Pétillant Naturel
Terroir al Limit Pedra de Guix Priorat Blanco
Domaine des Ardoisières Argile Blanc IGP Vin des Allobriges
Benoît Ente Bourgogne Aligoté
Domaine Rietsch Demoiselle Alsace Gewurztraminer
Arbe Garbe Sonoma County White
Ciro Picariello Irpinia Fiano
Luneau-Papin Clos des Allées Muscadet Sèvre et Maine Sur Lie
Weiser-Künstler Estate Mosel Riesling
Benoit Courault Gilbourg Vin de France
Dominique Belluard Grandes Jorasses Savoie White
Domaine Berthaut Fixin Les Crais
Schlossgut Diel Rosé de Diel Nahe Pinot Noir Rosé
Forlon Hope Dragone Ramato Rorick Vineyard Pinot Gris
Los Bermejos Lanzarote Listán Rosado
Broc Cellars Green Valley Solano County Valdiguié
Château de Brézé Clos Mazurique Saumur Red
Tom Shobbrook Poolside Barossa Syrah
Giacomo Fenocchio Barolo
Adegas Guímaro Finca Capeliños Ribeira Sacra
Holger Koch Kaiserstuhl Baden Spätburgunder
Richard Rottiers Dernier Souffle Moulin à Vent
Enfield Pretty Horses California Tempranillo
Pedro Parra y Familia Imaginador Itata Cinsault

E depois eles dizem que não gostam de listas!


domingo, 11 de dezembro de 2016

Garrafa Melquizedeque e Abraão

As grandes garrafas de vinho, com seus nomes de referências bíblicas, chamam minha atenção. As informações sobre sua gênese sempre estiveram difusas, mas ganharam novos contornos no livro Divine Vintage (Palgrave Macmillan/2012), de Randall Heskett e Joel Butler. A maior de todas as garrafas, a garrafa de 30 litros, onde cabem o volume de 40 garrafas de 750 ml, é chamada de Melquizedeque. E não é à toa.

Intencional ou não, esse batismo tem grande simbolismo, marcando um momento importante da história do vinho. Em seu caminho de Ur para Israel, o patriarca Abraão encontrou-se com Melquizedeque, rei de Salem (de Jerusalém), na cidade de Shaveh. Foi quando Melquizedeque lhe serviu pão e vinho dos vinhedos locais. Duas culturas, a canaanita e a hebreia, desafiando padrões de animosidade, se encontravam pela primeira vez diante do vinho, em paz. Abraão vinha da terra da cerveja, da Mesopotâmia transbordante dos rios Tigre e Eufrates, e o vinho de Canaã, com todo seu peso cultural, pode ter sido um ponto de inflexão.

Nomes e tamanhos das garrafas

Melquizedeque --- 30 litros, 40 garrafas (de 700 ml)

Primat -------------- 27 litros, 36 garrafas

Sovereign ---------- 25 litros, 33,3 garrafas

Salomão ------------ 20 litros, 28 garrafas

Melchior ----------- 18 litros, 24 garrafas

Nabucodonosor ---15 litros, 20 garrafas (Champagne)

Baltasar ------------ 12 litros, 16 garrafas (Champagne)

Salmanazar -------- 9 litros, 12 garrafas

Matusalém --------- 6 litros, 8 garrafas (Borgonha)

Impériale ------------ 6 litros, 8 garrafas (Champagne)

Rehoboam --------- 4,5 litros, 6 garrafas

Jeroboam ---------- 3 litros, 4 garrafas (Bordeaux)

Double Magnum - 3 litros, 4 garrafas (Borgonha e Champagne)

Marie-Jeanne ----- 2,25 litros, 3 garrafas (Champagne)

Magnum ----------- 1,5 litros, 2 garrafas

Standard ----------- 750 ml, 1 garrafa

Demi ou Split ----- 375 ml, meia-garrafa

Piccolo ------------- 187 ml, um quarto de garrafa

O aprofundamento histórico sobre os nomes dessas garrafas tem tudo a ver com a própria formação de um dos autores. Randall Heskett é professor universitário e um biblical scholar com formação em Velho Testamento pela Universidade de Yale e Universidade de Toronto. Ex-importador de vinhos, escreveu diversos livros e artigos, incluindo Reading the Book of Isaiah: Destruction and Lament in the Holy Cities (Palgrave Macmillan/2011).

Segundo Tom Stevenson, respeitado autor de The World Encyclopedia of Champagne and Other Sparkling Wines (Wine Appreciation Guild/ 2003), a mais antiga garrafa com nome bíblico é a Jeroboam, usada em Bordeaux pelo menos desde o século XVIII. As demais, com capacidades que ultrapassam 1,5 l ( Magnum), foram nomeadas a partir dos anos 1920.

Jeroboam foi o primeiro rei de Israel (922-901 a.C.), depois do sucesso da revolta das dez tribos do norte contra Rehoboam (o da garrafa de 4,5 litros), que resultou num reino dividido, Rehoboam à frente de Judá. Os autores conjecturam que a escolha de Jeroboam tenha ocorrido porque um dos seus vícios era, talvez, beber demais. Há também a possibilidade de tudo não passar de puro marketing,
tática que os produtores de Champagne conhecem muito bem.

Os pilotos da Fórmula I costumam subir ao podium ostentando garrafas Jeroboam, com 3 litros de Champagne (double Magnum). Sempre foi Champagne. Mas depois de 15 anos como símbolo da premiação da F-1, a vinícola G H Mumm perdeu o lugar no contrato para a australiana Chandon, submarca da Moët & Chandon. E como Champagne é só o vinho de Champagne...











sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

O verão e os vinhos de Hesíodo


Alguns versos de  Os Trabalhos e os Dias , do grego Hesíodo (séc. VIII a.C.), trata da vida agrícola e dos campos em Ascra, na Beócia, onde cultivou seus campos e fez poesia, sempre com vinho e pão à mão. Os versos a seguir (de 582 a 596) foram traduzidos diretamente do grego e do latim pelo poeta e ensaísta Péricles Eugênio da Silva Ramos (1919-1992), e constam do livro Poesia Grega e Latina (Editora Cultrix, 1964).

Verão

Quando floresce o cardo e, na árvore, a cigarra
verte de sob as asas doce canto estrídulo,
no tempo em que o verão é fatigante,
mais gordas vêem-se as cabras e melhor o vinho,
mais sensuais as mulheres, débeis os varões:
- Sírius lhes queima a fronte e os joelhos, e o calor
lhes seca a pele. Oh, possa eu ter, nessa ocasião,
a sombra de uma rocha, vinho bíblino,
pão e leite de cabras que já desmamaram,
e carne de novilha que parou no bosque
e ainda não deu cria, ou, caso falte,
de cordeirinhos do primeiro parto.
E possa eu, para beber o vinho negro,
à sombra me estender, de coração feliz
com o meu banquete, e, dando o rosto ao vento oeste,
junto a fonte perpétua, viva e imperturbada,
mesclar três partes de água e uma de vinho.

Acredita-se que vinho bíblino do poema de Hesíodo é uma versão grega do vinho negro de Biblos (importante cidade fenícia), incensado por seu perfume e por sua cor escura. Era feito principalmente na Trácia, resultado da fermentação de uma variedade conhecida como "bibline".

Vinhos de Biblos

Povo de origem semita, os fenícios habitavam não somente Biblos, mas também Sidon e Tiro, no que é o Líbano de hoje. Os vinhos de Biblos foram muito famosos com os romanos, mas foi apreciado muito antes pela família real egípcia. Enquanto carregamentos de vinhos da Anatólia abasteciam o sul de Canaã, no quarto milêmo a.C., vinhos com destino ao Egito eram embarcados no porto de Biblos, ao norte de onde está a atual Beirute. "Viticultores libaneses reivindicam hoje que a sua uva merwah é a uva do vinho bíblino e que ela está relacionada com a cepa Semillon", escrevem Randall Heskett e Joel Buttler em Divine Vintage (Palgrave Macmillan/2012). A merwaah não é usada mais para vinhos de mesa e sim entra na destilação do raki.

A referência à mistura de água ao vinho, na última estrofe aqui reproduzida, revela um costume dos gregos, muito presente nos simpósios, a reunião de homens entorno do vinho, pós-refeição. Filósofos chegavam a discutir em altos termos a melhor proporção da mistura durante esses encontros movidos a vinho. Embriagar-se aos poucos era uma das regras.Para a diluição do vinho depositado em crateras (três crateras para um grupo de 11 bebedores) era usada uma outra vazia chamada hidria. Na média as misturas variavam de uma parte de vinho para uma de água a cinco de vinho para duas de água.

Leia também: No início eram os divinos