sexta-feira, 26 de abril de 2013

Ventos, miragens e vinhos do Magreb.

É como se uma tempestade de areia tivesse encoberto todo o Magreb e só aos poucos se dissipasse. Até hoje é nebulosa a razão pela qual o ator-vigneron Gérard Obelix Depardieu desistiu de sua vinícola na Argélia e perdeu quase todo o investimento feito em Tlemcen, a 500 quilômetros de Argel, região de históricos vinhedos e oliveiras. Depardieu e Bernard Magrez (empreendedor conhecido como "compositor de vinhos raros"), em parceria com a Union Central des Coopératives Viticoles (ONCV), estatal monopolista do vinho argelino, tinham conseguido produzir com uvas do Domaine Saint-Augustin, no Coteaux de Tlemcen, um elogiado vinho: o Cuvée Monica 2002. Com ele, ganharam sonhados 91-94 pontos do crítico americano Robert Parker. O sucesso da primeira safra não garantiu a continuidade do projeto. Para o escritor-sommelier Francis Gimblett, autor de In and Out of Africa ... in search of Gérard Depardieu (The Wine Adventurer Press/2009), o reconhecimento de Parker teria servido pelo menos para anunciar ao mundo que bons vinhos da Argélia, como nos velhos tempos, não são uma miragem, apesar da grande dificuldade em encontrá-los. Novos ventos de oeste: a estatal ONCV trabalha com um plano ousado de replantio em suas cinco principais regiões produtoras (Medea, Mascara, Zaccar, Tlemcen e Dahra) – 5.000 hectares com cepas "internacionais", como Cabernet Sauvignon, Syrah, Chardonnay, Sangiovese e Merlot, com vista à exportação. Plantadas nos contrafortes das montanhas Atlas, essas cepas agora dividem a cena com as variedades introduzidas pelos franceses: Carignan, Cinsault, Grenache, e Alicante Bouschet. A ONCV investe ainda na formação de 300 viticultores-fornecedores, moderniza suas 12 plantas de vinificação e parte para campanhas internacionais para atrair novos consumidores, a começar pelos EUA. Algumas prateleiras já expõem vinhos como o Coteaux du Mascara (Domaine el Bordj), com seus rótulos emoldurados por arabescos, em típico blend do sul do Rhône: Grenache, Syrah e Mourvèdre. O objetivo é atingir, nos próximos anos, a marca de 1,5 milhão de hectolitros – hoje a produção está em 600 mil hl, de 70 mil hectares de vinhedos. Há uma notável nostalgia na Argélia dos tempos em que o porto de Oran (foto acima) era tomado por barricas de vinho a caminho da França. Colônia francesa entre 1830 e 1962, a Argélia participou ativamente durante a ocupação francesa do renascimento de uma cultura milenar, abandonada com a introdução do islamismo, no século VII. As ruínas romanas em Tipasa (a Tipasa de Camus), com a presença de artefatos vinícolas, estão ali para dar corpo à história do vinho local. Com a chegada dos franceses, o país viu sua produção explodir. Entre 1870 e 1900, a área dos vinhedos cresceram 1.000%, chegando a mais de 400 mil ha em 1962, ano da independência, e uma produção de 20 milhões de hectolitros !!! Com um consumo interno reduzido pelas regras do Islã, o aumento da produção era incentivada pelas exportações. A praga da Phylloxera no continente europeu fez com que milhares de viticultores franceses migrassem para a Argélia, levando na bagagem sua experiência. Foi assim que a Argélia chegou a ser, isso há pouco mais de 50 anos, o maior país exportador de vinhos do mundo e o quarto maior produtor. Entusiasmo que contagiou Marrocos e Tunísia, vizinhos do Magreb. Mais recentemente, durante os sangrentos anos da Guerra Civil (1994-2002), agricultores e suas famílias eram ameaçados de morte pelos militantes islâmicos se continuassem a manejar seus vinhedos. O resultado foi dramático, com o fechamento de 300 vinícolas e o abandono de inúmeras plantações, produção e exportação no zero. A tentativa de reversão desse quadro recente está nas mãos da ONCV. PS: A "ascensão e a queda" do maior país exportador de vinhos do mundo é tema de um detalhado estudo de Giulia Meloni e Johan Swinnen escrito para a American Association of Wine Economists (www.wine-economics.org). Vale a pena.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Luz e sombra nos Amontillados

Ao retornar do vitorioso ataque à cidade portuária de Cádiz, em 1596, um dos momentos dramáticos da guerra anglo-espanhola, Lorde de Essex trouxe confiscados no seu navio vários barris de Jerez, que os ingleses desde sempre bebem e chamam de Sherry. A carga que chegou a Londres da Espanha era tão expressiva que serviu para popularizar a bebida em todo reino. Desse lote valeu-se Shakespeare. Na peça Henrique IV, dando voz a Falstaff, Shakespeare faz o elogio da bebida: "Um bom Jerez produz um duplo efeito: sobe à cabeça e te seca todos os humores estúpidos, torpes e espessos que a ocupam, tornando-a aguda, ágil, inventiva e enchendo-a de imagens vivas, ardentes, prazerosas, que, levadas à voz, à língua (que lhe dá vida), produzem felizes ocorrências. A segunda propriedade de um bom Jerez é que esquenta o sangue, que antes estando frio e estagnado, deixava o fígado branco e pálido, sinal de pusilanimidade e covardia. Mas o Jerez o aquece e o faz correr das entranhas para as extremidades. Ilumina a cara, que como um farol, chama às armas o restante deste pequeno reino que é o homem (...)". O Jerez incensado pelo glutão Falstaff não é outro senão o seco Amontillado, um tipo superior de Sherry, de cor âmbar e com um aroma atenuado de avelãs, produzido com a uva palomino. Não à toa, os próprios produtores, circunscritos ao triângulo formado pelas cidades de Xerez de la Frontera, Santa Maria e San Lúcar de Barrameda, na Andaluzia, trataram de incorporar citações artísticas à própria história da bebida. Quem assistiu à Festa de Babette (1987), filme de Gabriel Axel adaptado de um conto de Isak Dinesen, há de se lembrar do general Loewenhielm estalando a língua ao decifrar a preciosidade que enchia sua taça, em harmonização com o fumegante consommé de tartaruga: "Amontillado!". Foi o ponto de partida de um jantar com poderes de resgatar almas e estômagos ao prazer. O Jerez também percorreu o mundo montado n' O Barril de Amontillado, conto do escritor Edgar Allan Poe (1808-1849). Uma história de vingança embalada pelo moto latino Nemo me impune lacessit (Ninguém me insulta impunemente). Cansado dos desaforos e injúrias do "amigo" Fortunato, Montresor planeja uma operação cheia de sutilezas. O cenário é uma adega subterrânea, para onde leva Fortunato, tido como connoisseur de vinhos. O objetivo alegado era o de que Fortunato deveria tirar suas dúvidas sobre a autenticidade de um barril de Amontillado que comprara. Simples Jerez ou mesmo um Amontillado? Embriagado, Fortunato aceita o desafio com a auto-confiança dos bêbados. Montresor o arrasta até onde estaria o barril. No caminho, abre garrafas para aplacar a tosse da vítima, acentuada pela umidade da adega: vinhos do Médoc e de Graves, que Fortunato bebe de talagada. No fim da viagem, já acorrentado, o aterrorizante emparedamento. Poe não era um expert em vinhos, apesar da frequência com que os cita em suas histórias. L. Moffitt Cecil, da Universidade Cristã do Texas, que relacionou os vinhos presentes na obra do escritor, acredita que Poe se divertia ao ridicularizar aqueles que se apresentavam como grandes entendidos de vinho. Há quem ache até que Fortunato mereceu seu fim, mas não pelos nebulosos motivos de Montresor. Simplesmente porque não tratou com o devido respeito, bebendo de qualquer maneira, os nobres vinhos Médoc e de Graves oferecidos pelo caminho. Diário do Comércio de 19/4/2013

sexta-feira, 12 de abril de 2013

As garrafas e as mulheres de Antinori

Frank J. Prial (1930-2012), o primeiro crítico de vinhos do New York Times, o primeiro também a dar valor tanto aos sabores quantos às histórias dos vinhos, perguntou certa vez porque historiadores e romancistas americanos quase deixavam de lado italianos e preferiam pompas de ingleses e franceses. E atirava: “muitos dos antigos clãs na Inglaterra e na França são apenas de parvenus (no sentido de novos-ricos) comparados aos Frescobaldis, Antinoris e Ricasolis, que bebiam na companhia de gente como Dante e os Medici, e que estão lá desde o nascimento da Renascença. ” Completava dizendo que a tarefa seria fácil se esses escritores olhassem para Chianti e toda a tradição vinícola da Toscana. Os Antinori estão no negócio dos vinhos há 26 gerações, desde que em 1385 Giovani de Pierso Antinori aderiu à guilda dos produtores da região (l’Arte dei Vinattieri). O palazzo renascentista adquirido pela família em 1506, no centro de Florença, é até hoje ume espécie de quartel-general dos Antinori. Mas o atual grau de expansão dos negócios – há vinícolas do grupo tanto na Califórnia quanto na Romênia – se deve mesmo ao olhar exigente e elegante do atual pater familias, Piero Antinori. Desde 1966, época de decadência na região do Chianti, Piero não só tratou de resgatar e replantar seus vinhedos como passou a ser o elo aglutinador das mudanças do vinho do seu país. Desde sempre foi uma espécie de embaixador dos vinhos italianos de qualidade por todo o mundo. E não só informalmente, já que comanda o Istituto del Vino Italiano di Qualità – Grandi Marchi. Prial ainda pôde ver, entretanto, uma mudança e o reconhecimento ao esforço do florentino Piero, hoje uma unanimidade no mundo do vinho e figura onipresente nas revistas especializadas, mesmo se agora um pouco ofuscado pelo brilho de suas três fillhas Albiera, Allegra e Alessia, cada uma um ramo da grande videira. Premiado pela revista Wine Spectator pelos serviços prestados ao setor, Piero Antinori foi escolhido em 2011 homem do ano da inglesa Decanter. Se já causou uma revolução ao lançar o seu rótulo Tignanello, em 1971, um blend da local Sangiovese e Cabernet Sauvignon, foi aclamado décadas depois pelo tinto Solaia, vinho do ano de 2000 da mesma Wine Spectator. Os vinhos italianos ícones da Marchesi Antinori, com 1.764 hectares de vinhedos na Toscana, Umbria, Piemonte e na Puglia e cerca de 20 milhões de garrafas produzidas por ano, são os já citados Tignanello e Solaia, ambos vinificados na Tenuta Tignanello, em Chianti (o terroir da Toscana abraçada ao fazer de Bordeaux) o Guado al Tasso, da propriedade em Bolgheri, e o Cevaro della Sal a, o grande vinho branco da casa (Chardonnay e um pouco da local Grechetto), produzido num castelo medieval, na zona de Orvieto, na Umbria. Albiera Antinori, vice-presidente da Marchesi Antinori, acaba de apresentar na Vinitaly, realizada no início deste mês de abril, em Verona, vinhos da mais nova adega de Bargino, na comarca de San Casciano Val di Pesa, a nova menina dos olhos da família. Em O Perfume do Chianti (Rocco/2011), Piero conta a história dos bastidores da família, fazendo loa às "suas meninas". A executiva Albiera, que faz o marketing da casa e vive agora em viagens pela Ásia. Allegra, "cultora da boa cozinha e alma das nossas relações públicas". E Alessia, que é a enóloga envolvida com o espumante Montesina, que trás no rótulo três "as" entrelaçados das iniciais das irmãs (como são na vida real). Um vinho feito no coração da Franciacorta, ao sul do lago de Iseo, já que, como diz Antinori, "uma firma que quer crescer e perdurar no tempo precisa sempre enveredar por novos caminhos e superar velhas fronteiras".

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Paixões muito além da Transilvânia

Todos sabem qual é a bebida preferida do Drácula. Isso não significa, entretanto, que sua sede de "hospitalidade" tenha deixado de lado os vinhos propriamente ditos, produzidos na sua Transilvânia. No sombrio castelo nos Cárpatos, Drácula (Gary Oldman) tratou de servir vinho ao noivo (Keanu Reeves) da eterna amada (Winona Ryder). E já vagando pelos séculos à sua procura, foi com tintos que voltou a seduzi-la. Assim mostra o clássico Drácula de Bram Stoker (1992), dirigido com muito sangue por Coppola. Hoje, os produtores de vinhos da Romênia estão em plena campanha para seduzir novos consumidores mundiais, tratando de dar qualidade (com regras rígidas da União Européia) a uma atividade enraizada nesse canto mais sudeste da Europa há pelo menos 4 mil anos. Cinco vinícolas de excelência (Carl Reh, Cramele Recas, Domeneniul, Murfatlar e Senator), reunidas na entidade Select Wines of Romania, trabalham para aumentar sua participação no mercado dos Estados Unidos – hoje apenas 7% de suas exportações vão para lá. Quem atualmente viaja pela Romênia, atraído principalmente pelo fascínio do Conde Drácula – o histórico e o da ficção –, vai encontrar um país pontilhado de vinhedos, da Transilvânia ao delta do Danúbio, o rio que se abre para o Mar Negro. Além do apelo das variedades autóctones (Babeasca Neagra, Busuioca de Bohotin, Feteasca Alba, Feteasca Neagra, Feteasaca Regala, Tamaioasa Romaneasca, Sarba), os produtores fazem também propaganda da localização geográfica de seus vinhedos, cuidados na mesma latitude de importantes áreas de Bordeaux, Borgonha e do Piemonte. Os investimentos na indústria vinícola romena voltaram a crescer com as privatizações ocorridas em 1990, apagando um passado de declínio, quando os comunistas nacionalizaram e descuidaram de toda a produção. A Transilvânia é apenas uma das sete regiões demarcadas do país, um platô de onde saem principalmente vinhos brancos, feitos com a Feteasca Alba, a uva mais popular da Romênia, com mais de 22 mil hectares plantados. São vinhos bem balanceados, secos e semi-secos, com 11,5 a 12%. Com a Tamaioasa Romaneasca, os vitivinicultores romenos estão elaborando vinhos de um amarelo ouro cintilante, com aromas de flores e mel, bons para guarda. Os tintos da Babeasca Neagra e da Feteasca Neagra (na foto ao lado) são de um vermelho intenso, têm alta acidez e encheriam não só os olhos de Drácula. DC de 5 de abril de 2013