quinta-feira, 18 de abril de 2013

Luz e sombra nos Amontillados

Ao retornar do vitorioso ataque à cidade portuária de Cádiz, em 1596, um dos momentos dramáticos da guerra anglo-espanhola, Lorde de Essex trouxe confiscados no seu navio vários barris de Jerez, que os ingleses desde sempre bebem e chamam de Sherry. A carga que chegou a Londres da Espanha era tão expressiva que serviu para popularizar a bebida em todo reino. Desse lote valeu-se Shakespeare. Na peça Henrique IV, dando voz a Falstaff, Shakespeare faz o elogio da bebida: "Um bom Jerez produz um duplo efeito: sobe à cabeça e te seca todos os humores estúpidos, torpes e espessos que a ocupam, tornando-a aguda, ágil, inventiva e enchendo-a de imagens vivas, ardentes, prazerosas, que, levadas à voz, à língua (que lhe dá vida), produzem felizes ocorrências. A segunda propriedade de um bom Jerez é que esquenta o sangue, que antes estando frio e estagnado, deixava o fígado branco e pálido, sinal de pusilanimidade e covardia. Mas o Jerez o aquece e o faz correr das entranhas para as extremidades. Ilumina a cara, que como um farol, chama às armas o restante deste pequeno reino que é o homem (...)". O Jerez incensado pelo glutão Falstaff não é outro senão o seco Amontillado, um tipo superior de Sherry, de cor âmbar e com um aroma atenuado de avelãs, produzido com a uva palomino. Não à toa, os próprios produtores, circunscritos ao triângulo formado pelas cidades de Xerez de la Frontera, Santa Maria e San Lúcar de Barrameda, na Andaluzia, trataram de incorporar citações artísticas à própria história da bebida. Quem assistiu à Festa de Babette (1987), filme de Gabriel Axel adaptado de um conto de Isak Dinesen, há de se lembrar do general Loewenhielm estalando a língua ao decifrar a preciosidade que enchia sua taça, em harmonização com o fumegante consommé de tartaruga: "Amontillado!". Foi o ponto de partida de um jantar com poderes de resgatar almas e estômagos ao prazer. O Jerez também percorreu o mundo montado n' O Barril de Amontillado, conto do escritor Edgar Allan Poe (1808-1849). Uma história de vingança embalada pelo moto latino Nemo me impune lacessit (Ninguém me insulta impunemente). Cansado dos desaforos e injúrias do "amigo" Fortunato, Montresor planeja uma operação cheia de sutilezas. O cenário é uma adega subterrânea, para onde leva Fortunato, tido como connoisseur de vinhos. O objetivo alegado era o de que Fortunato deveria tirar suas dúvidas sobre a autenticidade de um barril de Amontillado que comprara. Simples Jerez ou mesmo um Amontillado? Embriagado, Fortunato aceita o desafio com a auto-confiança dos bêbados. Montresor o arrasta até onde estaria o barril. No caminho, abre garrafas para aplacar a tosse da vítima, acentuada pela umidade da adega: vinhos do Médoc e de Graves, que Fortunato bebe de talagada. No fim da viagem, já acorrentado, o aterrorizante emparedamento. Poe não era um expert em vinhos, apesar da frequência com que os cita em suas histórias. L. Moffitt Cecil, da Universidade Cristã do Texas, que relacionou os vinhos presentes na obra do escritor, acredita que Poe se divertia ao ridicularizar aqueles que se apresentavam como grandes entendidos de vinho. Há quem ache até que Fortunato mereceu seu fim, mas não pelos nebulosos motivos de Montresor. Simplesmente porque não tratou com o devido respeito, bebendo de qualquer maneira, os nobres vinhos Médoc e de Graves oferecidos pelo caminho. Diário do Comércio de 19/4/2013

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