sexta-feira, 26 de junho de 2009

De videiras e brejos

Cada vez que alguém levanta uma taça de vinho produzido em Banrock Station, no sul da Austrália, está apoiando projetos ambientais pelo mundo. Até agora, mais de US$ 4 milhões tiveram esse fim, mesmo depois que a vinícola foi incorporada pela gigante Constellation. Na verdade, o grupo encampou como nunca esse apelo que também é de marketing. "Good Earth, Fine Wine" é o slogan da propriedade. O exemplo começou em casa. As terras adquiridas em 1994, às margens do rio Murray, estavam extremamente degradadas, depois de mais de 80 anos servindo basicamente como pastagem, onde pouco ou nenhum cuidado era dedicado a seu ecossistema de banhados e brejos. Foi preciso recuperar a área, com a ajuda não somente das "ciências" dos viticultores. É sintomático que, ao lado daqueles que cuidam do vinho, a propriedade tenha nos seus postos-chaves profissionais ligados à ecologia. Tony Sharley é o gerente do Wine and Wetland Center. Isso mesmo, o vinho nessa propriedade nunca é dissociado da sua terra úmida. Tony é especializado em recuperação e conservação de ecossistemas e tem comemorado a volta de animais silvestres, dos pássaros nativos. Hoje são 600 acres de vinhedos curiosamente espalhados entre manguezais e uma vegetação típica renascidos num total de 3600 acres. Da Banrock Station, por conta das altas temperaturas locais, saem vinhos muito frutados das uvas Shiraz, Cabernet Sauvignon, Merlot, Chardonnay e Semillon. E o turista que ergue a taça nas salas de degustação é o mesmo que brinda a política conservacionista de Banrock.


www.banrockstation.com.au

DC de 25/6/2009

domingo, 21 de junho de 2009

Nush! Saudades da Pérsia

Muito distante das intolerâncias do atual Irã, a vida e as alegrias da antiga Pérsia mantêm-se muito vivas na poesia de Hafiz, Khayam, Rumi... Foram eles que descreveram as cerimônias de degustação de vinhos, em salões atapetados, ao som de pequena orquestra de músicos "coroados" com tranças de mirto. Grandes decanters, ricamente adornados, eram colocados entre os bebedores. E a figura solene de um saqi (o sommelier persa) tratava de encher as taças ou as cumbucas de ilustres convidados. Depois, o brinde: Nush! (da palavra anush, que significa vida eterna). Eram três as rodadas oficiais da bebida. A primeira, para bons pensamentos. A segunda, para as boas palavras. A última, para boas ações. Najmieh Batmanglij relata em From Persia to Napa (Mage Publishers/2006) como o ritual de degustação de vinhos era importante. Na época de Nezam al-Moek, governante no século XI, os saqi indispensáveis nas cortes e nas casas aristocráticas, tinham de vencer um treinamento de seis anos, geralmente iniciado na infância. Jovens amigáveis e de boa aparência (e daí o erotismo com que a poesia persa os embala) tinham de aprender poesia, ter habilidade para cavalgar e conhecer armas. Mas o principal: ter talento para conhecer o bom vinho e para guardá-lo adequadamente. Outra função: cuidar para que os instrumentos musicais (harpas, violinos, flautas e tambores) estivessem sempre em boas condições para o espetáculo. A cumbuca de ágata desta página traz uma inscrição em homenagem ao lendário rei iraniano Jamshid, "pioneiro da vinicultura". Pertencia a outro soberano, o sultão Husayn (séc. XVI), curiosamente retratado com a peça em um festival de vinho, música e dança com seu harém.

Diário do Comércio 19/6/2009

domingo, 14 de junho de 2009

Tinto argelino para o méchoui

Quando se fala em Argélia, ensolarado país na costa norte africana praticamente engolido pelo Sahara, quase sempre é para localizar Albert Camus, um de seus filhos de maior densidade. Algumas vezes a tâmara daquele solo árido ganha espaço no reino da doçaria. A deglat nour, doce e transparente, se contrasta entre as de cor marrom. Já dos vinhos quase não se vê notícia. Pois os vinicultores locais integrados no estatal ONCV (Office National de Comercialisation dês Produits Vitivinicoles) estão cansados de ver suas garrafas seguindo a "rota do couscous" marroquino, ao passo de imigrantes africanos na Europa. Temem que seu vinho fique para sempre associado à mercadoria barata e de baixa qualidade. Contra isso passaram a replantar vinhedos, principalmente nas localidades de Mascara e Tlemcen, e a investir em qualificação profissional, com jovens treinados na França. Há certa nostalgia no ar, como relatam John e Erica Platter no emocionante livro Africa Uncorked (The Wine Appreciation Guide/2002) – pungente retrato da viticultura na África. Produtores mais antigos se lembram da imensidão de vinhedos antes de 1962, ano da independência da Argélia. Eram 36 mil hectares que colocavam o país em quarto lugar no ranking de produtores. Em dez anos, pós 62, o número de vinícolas havia encolhido de 3 mil para 50. Antes disso, os argelinos tinham é orgulho do seu vin médicin, usado para compor com grandes vinhos do Rhône e da Borgonha, "tirar sua palidez", diziam. Tempos em que o porto de Oran (ao lado) ficava atulhado de barricas à espera para cruzar o Mediterrâneo. Os vinhedos também foram vítimas da guerra. Tratar mal a viticultura dos dominadores franceses no período pós-colonial foi uma prática de Estado, simbólica, que tentou em vão apagar uma tradição milenar. É nessa força que voltam a se apoiar hoje os viticultores argelinos, espelhando os berberes que muito aprenderam com os fenícios. Numa ruína romana em Tipaza, a uma hora da capital Argel, arqueólogos reconstruíram um tanque de fermentação de cerca de 2.000 anos. Hoje os tintos locais driblam as barreiras religiosas e não podem faltar à mesa com o méchoui, o carneiro assado no espeto.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Um sueco entre champagnes

Um sueco tecendo loas ao grupo Abba é um acontecimento muito provável, assim como vê-lo em elogios à aquavit ou aos lagostins vermelhos devorados com amigos entre coloridas lanternas, entre agosto e setembro (Kräftfest). E a pazinha-fatia-queijo, então? Uma invenção para o bem da humanidade. Mas um sueco escrevendo livros apaixonados e apaixonantes sobre Champagnes? São mesmo bons vinhos para o smorgardboard, a mesa farta de delícias e muito arenque... Mas não é por aí o mergulho que Richard Juhlin, autor de 4.000 Champagnes (Flammarion, 2004), fez a esse universo da vinicultura francesa. No prefácio do livro, príncipe Alain de Polignac, que durante anos esteve à frente da tradicional vinícola Pommery, em Reims, diz que Juhlin "não fala simplesmente sobre vinho, mas fala a linguagem do vinho (...) com sotaque da Champagne". Estudioso, viajante incansável, invejável "litragem", Juhlin conhece os vinhedos franceses na palma da mão e coloca seu dom de degustador a serviço da bebida. "É como um ator incorporando seu personagem", escreveu Polignac. (O príncipe-enólogo garantiu o estilo da Pommery treinando os controladores da Vranken, a partir de 2002.) Os bons vinhos, especialmente os brancos alemães do Vale do Mosel, foram apresentados a Juhlin ainda na adolescência, ao lado da música clássica e da paixão familiar por Geografia. Mas a visita que fez a Reims, numa de suas férias escolares, foi decisiva para abraçar a causa, inebriado nas adegas de Piper-Heidsieck. O livro com apreciação de 4.000 rótulos, cuidadas fotografias de Pål Allan, um americano de origem escandinava, e comentários atualizados sobre cada uma das casas, veio coroar a carreira de Richard Juhlin, Chevalier de Coteaux de Champagne desde 1997. Outro de seus livros, Champagne, La Grande Dégustation (2001) foi premiado ao descrever a degustação que proclamou a Brillecart-Salmon 1959 o grande Champagne do século XX. Como bom sueco, Juhlin nos brinda com uma simpática relação dos Champagnes servidos entre 1901 e 2003 no banquete anual do Prêmio Nobel – 300 garrafas abertas para seletos 1.100 convidados. Juhlin escreve que a lista reflete os "gostos dos dias" de diferentes eras. A Veuve Clicquot, preferência no país durante muitos anos, antes de ser incorporada pela Möet & Chandon, nunca foi servida, ao passo que Louis Roederer tornou-se fornecedor da realeza sueca nos anos 50 e colocou seu Champagne na mesa do Nobel diversas vezes. Nos anos 70, Krug reinou anos seguidos. A Möet esteve 14 vezes à mesa; a Mumm, 10. Mas as borbulhas campeãs são da Pommery, 20 anos brindando excelências.

www.champagneclub.com

www.pommery.com/

Diário do Comércio 4/6/2009

terça-feira, 2 de junho de 2009

A democracia dos blogs

O crescimento do número de blogse sites sobre vinhos é uma novidade que a indústria do setor e consumidores em geral foram obrigados a considerar, principalmente com a entrada em cena de jovens escritores atentos não só à qualidade da informação, mas à velocidade com que elas podem chegar a seu destino. Em recente artigo na inglesa The World of Fine Wine, que tem Hugh Johnson no topo do expediente, Michael Steinberg pergunta: "Sobreviverão os críticos de vinhos profissionais num mundo dominado pela internet, no qual cada um é um crítico"? A agilidade e a informalidade dos blogs são armas imbatíveis se comparadas aos processos editoriais de grandes revistas e pomposos livros. Mesmo as colunas dos jornais são "lentas" comparadas aos blogs. Um vinho recém-lançado às margens do Douro pode ter sua avaliação conhecida por um consumidor inglês instalado na City londrina, poucos minutos após a degustação. Se para isso um blogueiro de vinhos equipado com seu laptop ou celular estiver a postos e, antes disso, tiver sido incluído nas fechadas listas de convidados das degustações. O jovem Jackson Brustolin, editor e crítico do blog QVinho, que acaba de completar dois anos, tem sido ágil na alimentação de seu espaço na net, com apreciações de "vinhos para pessoas normais", como frisa. Com isso quer dizer que foge das garrafas que só alguns encontram e daquelas que, encontradas, não se pode comprar. Mochilas nas costas, os Brustolins da vida são novos personagens nas salas de degustação. E isso incomoda alguns críticos, digamos assim, oficiais. O fato é que há uma grande demanda por informações frescas, sem vícios, pés no chão. E ele corre atrás delas. O QVinho foi pioneiro no Brasil na cobertura de eventos em tempo real e tem ampliado seus canais de informação. No ar, a série On the Road, com impressões sobre vinhos chilenos e argentinos, merece uma visita. O meio blog, em plena ascensão, ganha credibilidade também com o ingresso de escritores experimentados, acredita o consultor californiano Tom Wark, do Fermentation, idealizador de um prêmio para os melhores blogueiros do seu país. O inglês Jamie Goode, PhD em Biologia, por exemplo, abastece o wineanorak com posts sobre a ciência do vinho em linguagem de fácil entendimento. Isaac Asimov, do New York Times , serve o seu The Pour, concorrendo com pelo menos quatro centenas de blogueiros de vinhos hoje em incansável produção nos EUA. É claro que Robert Parker, Steve Tanzer e Jancis Robinson já estão com dois pés na internet. E só há elogios para a Wine Spectator on-line. O próprio Parker acredita que, num futuro próximo, a crítica de vinhos será mesmo via internet. Tanzer disse ao repórter da revista The World of Fine Wine que o grande problema hoje é o "ruído" estabelecido na internet, que embaralha joio e trigo. QVinho é trigo.

www.qvinho.com.br

www.wineanorak.com/score.htm

Diário do Comércio de 29/5/2009