sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Cenas do tonel maltês

Para acompanhar o coelho estufado (ao modo do coq au vin) ou os seus bragoli (os braciole da vizinhança e do dia a dia) os visitantes de Malta, esse arquipélago que pontilha o caminho entre a Sicília e a África, têm encontrado vinhos rústicos produzidos no terreno diminuto das próprias ilhas. Apesar do peso da tradição, só a partir dos anos 1970 é que a produção vinícola local tornou-se mais séria e variedades internacionais passaram a ser plantadas, escreve Margareta Zaveri, editora de um guia do bem viver de Malta. Às cepas autóctones, Gellewza para os tintos e Ghirgentina para os brancos, somam-se agora vinhedos com Cabernet Sauvigno n, Syrah, Sangiovese, Grenache, Zibibbo (que a Sicília cultiva como ninguém), Cabernet Franc, Chardonnay, Sauvignon Blanc, Moscato, Vermentino e Viognier. Das cinco maiores vinícolas de Malta, a mais antiga é a Emmanuel Delicata, estabelecida em 1907. Nessa linha do tempo, segue a Marsovin, de 1919. Margareta relaciona ainda as vinícolas Camilleri Wines, Montekristo e Meridiana. Localizada em Ta’Qali, na região central de Malta, Meridiana foi criada em 1985, graças a investimentos do grande produtor italiano Antinori. Tem 19 hectares de vinhedos – o mesmo terreno onde, na Segunda Guerra, ficavam as instalações militares da ilha britânica e seus parcos aviões que resistiram bravamente aos ataques dos nazistas. A produção em Malta, desde 2007 segue modelos italianos de classificação. DOC em maltês é DOK (Denominazzjoni ta' Origini Kontrollata), rigores da União
Européia para o país que desde 2004 passou a integrá-la. Estão sujeitas às regras DOK tanto Malta como a ilhota de Gozo. Provas desses vinhos fazem “ridículas excursões” à Siena, onde enfrentam as papilas de degustadores italianos para aprovação, conta o jornalista Stuart Walton. As novas regras prevêem ainda, para as demais ilhas maltesas, o IGT, que é a Indikazzjoni Geografika Tipika, como na Itália. Entreposto importante para fenícios, gregos e romanos na Antiguidade, a Malta povoada nas origens por gente siciliana sempre foi motivo de cobiça como atesta a passagem de seus inúmeros ocupantes e colonizadores. Na época em que Malta era da Espanha, templários convenceram o imperador Carlos V a presentear-lhes a ilha. E daí as histórias do famoso (e cinematográfico) falcão maltês, o pássaro de ouro e pedras preciosas que os cruzados tinham que enviar como tributo anual ao imperador.

http://www.maltafoodandwine.com

http://www.guidetomalta.net/Malta-articles/maltese-wine-and-malta-wine-tourism

Diário do Comércio de 26/02/2010

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Beber como um franciscano

Uma velha canção francesa brinca com a sede dos monges – caricatural e divertida imagem do consumo e da produção de vinhos na Europa da Idade Média. Um dos versos populares, em livre tradução, diz : Beber como um capuchinho é beber pobremente,/Beber como um beneditino é beber profundamente,/Beber como um dominicano é beber taça após taça/Mas beber como um franciscano é beber até secar a adega! A State Library of South Australia, que mantém um site com a memória da literatura mundial do vinho, tem entre as obras de destaque fragmento de um texto de cerca mil anos que trata da punição de monges beberrões. O Decretum, escrito por Burchard de Worms num mosteiro da Alemanha, na primeira metade do século XI, faz um alerta aos noviços. Em latim, e em admirável tipologia carolíngea, o manuscrito determina: 15 dias de pão e água para quem beber tanto que tenha de vomitar; 30 dias da mesma dieta para o monge que, bêbado, encorajar outros na mesma direção; 40 dias de pão e água para o religioso que, embriagado, vomitar o vinho e a sagrada hóstia. Outra boa história envolvendo monges, desta feita cistercienses, foi contada pelo inglês Edward Ott em seu livro From Barrell to Bottle, de 1953. Faz anedota com a constatação de que os modernos borgonhas não são como os antigos vinhos produzidos nessa região da França. Numa visita que fez a Clos de Vougeot, fundada pelos cistercienses em 1150, descobriu atrás das prensas enigmáticas anotações:"1P, 2P, 3P". O "P" seria uma abreviatura da palavra francesa pigeage, a rotina criada pelos monges que, nos tanques de fermentação, empurravam cascas e sólidos das uvas para baixo, com os pés. Pulavam nas barricas nus, três vezes durante o processo. Seriam os únicos banhos do ano, brinca Ott.

http://www.winelit.slsa.sa.gov.au/topdozen.htm

http://www.newyorkcarver.com/wine.htm

Pequena pérola a caminho do frio

Viticultores de regiões frias do globo acabam de ganhar um presente muito especial. Pesquisadores de Minnesota, nos Estados Unidos, que sofrem na própria pele os dramas dos invernos brancos, anunciaram que uma nova cepa para vinhos tintos, própria para suportar esses frios rigorosos, já está disponível a partir deste ano de 2010. No jargão técnico dos viticulturistas e seus laboratórios, a TP 2-1-24 é um híbrido das uvas MN 1094 e ES 4-7-26. Ainda bem que foi batizada com mais poesia: Petite Pearl, visto o desenho caprichado de cada um de seus bagos e um conjunto para lá de harmonioso.Tom Plocher, reconhecido especialista em reprodução de videiras, vinha desenvolvendo a "pequena pérola" desde 1996, testando a resistência da planta durante todos esses anos. Agora tem a convicção de que a nova fruta é capaz não só de sobreviver a invernos duros, mas consegue amudurecer mesmo nos imprevisíveis verões do hemisfério Norte. Detalhes técnicos sobre as cepas resistentes ao frio podem ser encontrados no livro Northern Winework, que Tom Plocher escreveu com outro especialista, Bob Park, livro já na sua segunda edição. Algumas vinícolas e berçários americanos filiados ao projeto, como a Bevens Creek Vineyard and Nursery, já têm mudas disponíveis para produtores interessados. A Petite Pearl de
Tom Plocher tem um currículo atraente: sobreviveu a um inverno com temperaturas abaixo de zero. E produziu frutos durante o quinto verão mais frio de Minnesota. Sobre os vinhos a partir da nova cepa, Plocher diz que são de cor intensa, com fruta na dose certa e taninos macios. Segundo ele, bons para blends com Cabernet Sauvignon e Merlot.


http://www.halogenlife.com/articles/3561-petite-pearl-new-wine-grape-varietal-for-cold-weather

http://petitepearlgrape.com/

Vintages de papel

Baltimore, Maryland, nos Estados Unidos, gerou dois nomes importantes do mundo do vinho. O mais famoso e polêmico deles é o crítico Robert Parker Jr., que dispensa apresentações. Mais respeitado do que influente é o escritor James Gabler, um bem-sucedido advogado que nos seus momentos de folga passou não só a colecionar boas garrafas em sua adega, mas a pesquisar a história da bebida – com dois livros sobre o assunto, tornou-se um verdadeiro especialista na relação de Thomas Jefferson com a viticultura. Mas é de Glaber também uma das obras fundamentais para quem precisa de informações e quer montar uma biblioteca criteriosa sobre vinhos. Em (Bacchus Press/1985), ele produziu cerca de 3.200 entradas Wine into Words bibliográficas, em levantamento abrangente no tempo e nas abordagens. Num dos primeiros "verbetes", indicações de documentos e panfletos sobre o rumoroso caso Alderman Abell, o negociante inglês que nos anos 1641/42 tentou monopolizar ilegalmente o comércio na Inglaterra sob as barbas de Charles I. Glaber, lista não só livros, mas guias, compêndios, manuais técnicos e até mesmo "propaganda" de vinícolas com informações de valor histórico. Em "meditações" de 1897, o americano George H. Ellwanger queria provar que os ingleses sofriam menos da gota e viviam mais por causa dos vinhos maduros que consumiam.

O Dago Red que os Gallo querem esquecer

Um dos primeiros livros a tocar na ferida foi Blood and Wine: The Unauthorized Story of the Gallo Wine Empire, lançado em 1993 pela escritora Ellen Hawkes. Mostrava as conexões dos Gallo com Al Capone durante a Lei Seca (1920-33), dava detalhes de como os irmãos Joseph e Mike prosperaram na indústria ilegal de vinho na Califórnia, até a morte nunca totalmente esclarecida e muito suspeita de Joseph e sua mulher, Susie. Um ano depois da biografia não autorizada, Ernest e Julio (foto), filhos de Joseph, limpavam a ficha com Ernest & Julio: Our Story, depoimentos a Bruce B. Henderson. Agora entra em cena Jerome Tucille, que já biografou personalidades como Alan Greenspan, Rupert Murdoch e Donald Trump, com seu Gallo Be Thy Name (Phoenix Books, 2009), para traçar um perfil mais abrangente dos irmãos que ergueram um império que até hoje domina o mercado mundial de bebidas. Dados de 2009 da consultoria inglesa Intangible Business, mostram os Gallo em primeiro lugar no ranking, com 17,8% do mercado. Na sequência são listadas a Hardy’s (17,3%), empresa australiana comprada pela americana Constellation, a chilena Concha y Toro (15,9%) e a australiana Yellow Tail (9,8%). Tucille conta que, durante a Lei Seca, os Gallo dobraram a área de seus vinhedos na Califórnia, chegando a 259 mil ha. Faziam vinho da uva Alicante Bouschet, que era adulterado com água e açúcar, mistura batizada de "Dago Red". Trabalhavam também com o “vineglo”, suco de uva gelificado, capaz de fermentar em duas semanas quando misturado à água. Até entrar no negócio sozinho, o jovem Ernest Gallo acompanhou o pai muitas vezes na rota ferroviária do Norte da Califórnia até a Chicago de Al Capone. Sob o amparo da “demanda sacramental”, o vinho foi tratado de forma diferente pelas autoridades. Mas era preciso ter “conexões”, que a maioria dos vinicultores não tinha, mas que os Gallo souberam cultivar. Passada a Lei Seca, Ernest tratou de consolidar a marca Gallo como um trator, comprando novas propriedades e incorporando marcas. Atento ao marketing, teve muito êxito comercial com drinks pops como o Thunderbird e Ripple. E, importante, sempre esteve de bem com políticos influentes. Já na última década, com os descendentes no comando, a empresa tomou aparentemente um caminho politicamente correto pelo menos em termos ambientais. Até o próximo escândalo...

www.gallo.com

www.intangiblebusiness.com/store/data/files/471-The_Power_100_2009.pdf

Diário do Comércio

O vinho e os Ex Libris do Dr. Skovenborg

Erik Skovenborg é um médico dinamarquês, membro da Scandinavian Medical Alcohol Board (Smab). Além de incansável promotor das qualidades do vinho e da cerveja para a saúde, coleciona Ex Libris relacionados ao mundo do vinho e da medicina. Seu livro Vinexlibris – Booksplates with the wine motifs, publicado em edição de autor em 1991 é uma raridade disputada. Certa vez encomendei uma brochura do Dr. Skovenberg, mas por uma confusão babélica consegui mesmo foi um exemplar dedicado aos Ex Libris de medicina e não de vinhos, como pretendia. Fui traído pelo dinamarquês. Ainda bem que a respeitada revista inglesa The World of Fine Wine estampa alguns exemplares da coleção na sua edição de número 23, que ilustram texto escrito pelo próprio Dr. Skovenberg. O colecionador relata que um dos primeiros Ex Libris existentes com motivos da vinha é uma xilogravura de Albrecht Dürer, de 1502 (veja ilustração acima), que o gravador fez para seu amigo Willibald Pirckheimer. Skovenberg faz uma conexão importante entre os alemães Gutemberg, que inventou os tipos móveis no final do século XV, e o célebre artista Albrecht Dürer. No Ex Libris de Dürer está o brasão de armas de Pirckheimer, enfeitado com cornucópias cheias de uvas (a Alemanha sempre foi um país de bons vinhos em cenário clássico) e um moto: SIBI ET AMICIS, que pode ser traduzido por "para mim e meus amigos", diferente da própria função primordial dos ex-libris, que é o de anunciar o proprietário do livro. Skovenberg liga esse moto ao prazer possível na divisão tanto de uma obra literária quanto numa garrafa de vinho. E completa no seu texto, que os ex-libris, como a boa garrafa, têm de ser um passaporte para a amizade.

http://www.skovenborg.dk/

http://www.skovenborg.dk/WineAndHealth_SMAB.html

Diário do Comércio de 19/02/2010