quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Um mundo de Cabernet

A Cabernet Sauvignon é a uva mais plantada no mundo. São 290.091 hectares da cepa, segundo recente pesquisa feita na Universidade de Adelaide, Austrália. Algo como 700 mil campos de futebol. No final do mesmo ranking, está a Tinta Aurélio, uma cepa que os portugueses mantém em cena, como muito menos de um hectare plantado. Os patrícios tratam também com carinho de variedades como a Esgana Cão Preto e Fepiro, em produção estritamente doméstica. O mesmo ocorre, por exemplo, com a Hajnalka, na Hungria. Nesses pequenos vinhedos estão plantados, mais que tudo, tradição. O abrangente levantamento considerou nada menos do que 1.271 variedades, de 521 regiões e 44 países produtores. Os dados cobrem aproximadamente 99% dos vinhedos destinados à produção global de vinhos, diz Kym Anderson, um dos coordenadores da pesquisa e pioneiro nos estudos que relacionam vinho e economia. A extensão do trabalho se deve também ao aprimoramento do censo vitícola da União Européia. O Brasil aparece na lista com as seguintes variedades locais: Moscato Embrapa (862 hectares/ 289 no ranking), Lorena (519 ha/ 359), Violeta (98 ha/ 616), Rubea (81 ha/ 645) e Patricia (1 ha/ 1.180). O projeto do Wine Economics Research Centre da Universidade de Adelaide foi financiado pela Grape and Wine Research and Development Corporation (GWRDC), entidade que investe em pesquisas em todas as áreas da cadeia produtiva do vinho, "da videira ao copo", com o objetivo declarado de aumentar a lucratividade, competitividade e sustentabilidade da indústria do vinho australiana. E a competitividade, segundo Kym Anderson, tem de ser buscada com a exploração ideal das variedades em cada ponto geográfico do planeta. Stuart Thomson, diretor-executivo da GWRDC, comemorou o novo banco de dados como útil ferramenta de decisão dos viticultores australianos. E, em certa medida, de todo o mundo Há 20 anos a cepa Airen, uma variedade da Espanha para vinhos brancos, era a mais plantada mundialmente. "No ano 2000, as uvas brancas ainda eram as mais cultivadas, mas dez anos depois as tintas aumentaram a participação global, com incremento da área de 49% para 55%", disse o professor Anderson ao site da Universidade de Adelaide. Essa alteração coincide com as mudanças verificadas no próprio consumo global, onde a China é fiel da balança. Milhões de chineses entraram no mercado de vinhos e, diga-se, preferem os tintos. Os estudos sobre mudanças climáticas estão levando os agricultores a projetar o futuro de seus vinhedos. Daí o valor desses levantamentos. Duas outras obras seminais que apontam na mesma direção são o Atlas Mundial do Vinho, escrito em 1971 pelos ingleses Hugh Johnson e Jancis Robinson e já na sétima edição, completamente atualizada, e o colossal Wine Grapes(Ecco/2012), de autoria de Jancis Robinson, Julia Harding e o biogeneticista Jose Vouillamoz - um guia detalhado de 1.368 variedades de uvas, seus sinônimos e parentescos, consideradas as técnicas mais avançadas de DNA. PS: Vale a pena consultar o estudo australiano, com gráficos e tabelas, em www.adelaide.edu.au/news/news67562.html DC de 28/02/2014

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Resistência à italiana

Nino Bronda, pequeno vinicultor italiano com algumas fileiras em Nizza Monferrato, na região de Asti, Piemonte, há décadas cobra de políticos e autoridades italianas uma posição sobre os compostos "venenosíssimos" que continuam a ser despejados nas lavouras do país. Muitos desses políticos, segundo Nino, se mantêm nos cargos graças justamente ao "progresso della chimica". Diz ainda que “agora basta um pouco de pó e parece que tudo fica bem. Essas mesmas preocupações de Nino sobre agricultura natural alcançam hoje outros viticultores da Itália e são a base de Natural Resistence, novo filme do sommelier e cineasta Jonathan Nossiter. O documentário de 86 minutos acaba de ser exibido no Festival de Cinema de Berlim. As cenas registraram o dia a dia, as opiniões, e os métodos de manejo da terra e da preparação do vinho nas propriedades de Giovanna Tiezzi (Pacina, no Chinti), Elena Pantaleoni (La Stoppa, no oeste da Emilia- Romag na) e Stefano Bellotti, (Cascina das Oliveiras, Alessandria, Piemonte). E com um filme de Nossiter na praça, o mundo do vinho acende um alerta. Há de se lembrar que, há cerca de dez anos, em Mondovino, Nossiter atacou sem piedade a globalização do vinho, mostrando como a produção na França está cada vez mais padronizada, o que leva a uma queda de identidade e qualidade. Os tiros do cineasta acertaram em cheio pelo menos duas personalidades da área: Michel Rolland, o famoso consultor de vinhos que viaja o mundo inteiro oferecendo estilos de produção a vinicultores sedentos do mercado global, e Robert Park, o crítico de vinhos americano, que com seu ranking pessoal teria criado uma hegemonia do gosto, principalmente no grande mercado dos Estados Unidos. Natural Resistence não é uma continuação de Mondovino, como Nossiter faz questão de ressaltar, mas não há como negar que os dois filmes se completam. A visão sobre os vinhos na Itália é bem mais otimista, já que Nossiter conheceu grupos de viticultores alternativos e independentes trabalhando na direção de uma viticultura natural e orgânica (sem pesticidas) e de uma vinicultura de tradição (sem aditivos). E mais, produtores ligados a seu terroir. O documentário trata também das rígidas regras da União Européia e do sistema classificatório Denominazione di Origine Controllata (DOC), que acabam privilegiando os gigantes da indústria, que produzem em grandes quantidades. Nossiter intercalou no documentário suas incursões - câmera na mão - pelos vinhedos, com cenas de filmes clássicos como Roma, Cidade Aberta, de Rossellini, Disque M para Matar, de Hitchcock, e A Corrida do Ouro, de Charlie Chaplin. Para isso, contou com a curadoria de um amigo da Cinemateca de Bologna. A ideia era comparar a restauração desse patrimônio cinematográfico, que ocorre em Bologna, com o resgate da cultura tradicional do vinho. A visão de Nossitier sobre vinhos obedece a uma lógica familiar e social da produção, o homem ligado à terra e aos frutos do trabalho. Mas há muita poesia na sua prospecção, poesia que um apaixonado por vinhos nunca consegue esconder. P.S.: Mais ideias de Nossiter sobre vinhos estão em Gosto e Poder - vinho, cinema e a busca dos prazeres (Companhia das Letras/2009) Diário do Comércio de 21/02/2014

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Viagens ibéricas pelo Catavino

O premiado Catavino é um site com dicas sempre indispensáveis para quem pretende fazer um giro enogastronômico pela Península Ibérica. O forte de Catavino é seu didatismo somado a notícias em primeira mão. A polêmica deste ano sobre a proteção européia do termo sangría, por exemplo, ganhou repercussão num dos recentes posts. Proteger o nome de um drinque é algo insano!, sentenciou Ryan Opaz, na contracorrente das politicamente corretas certidões DOC. O Catavino também acaba de fazer uma ode à temporada das castanhas em Portugal. Os americanos Ryan e Gabriella Opaz fundaram o site justamente porque sentiram na pele a falta de informações básicas e organizadas sobre a gastronomia e a vinicultura na Espanha e em Portugal. Pelo menos na sua língua, o inglês. Desembarcaram em 2004 na Espanha em ritmo de aventura, mil dólares no bolso, ela dando aulas de inglês enquanto ele corria atrás de posição no mercado de vinhos. Suas andanças e frustrações passaram a alimentar um blog, o embrião do Catavino. “Em um país [como a Espanha] que tem os mais incríveis e variados vinhos do mundo, porque eu não conseguia achar nada compreensível que pudesse me educar?”, perguntava. Hoje, o casal está baseado na cidade do Porto, Norte de Portugal, com um escritório de comunicação e eventos. Vários jornalistas e críticos especializados colaboram com Catavino. Em quase dez anos de vida, o site em inglês virou cult como seus criadores. O crítico americano Robert Parker elogiou o profissionalismo e a seriedade da dupla. Hoje estão no topo de uma lista dos 100 blogs de vinho mais visitados no mundo. Vale a pena navegar por todos eles: 1.Wine Spectator; 2.Fermentation (Tom Wark); 3.Snooth Top Stories; 4. Decanter.com; 5. Palate Press; 6. Wine Dude; 7. Steve Heimoff; 8. Jamie Goode’s; 9. Terroirist: a Daily Wine Blog; 10.Tim Atkin; 11.Vinography; 12. Been Doon So Long (Randall Grahm); 13. Catavino. Em 2010, o site foi premiado nos EUA pelo Wine Blog Awards na categoria de melhor texto. O Catavino gerou ainda inúmeros filhotes na área do marketing e do turismo do vinho. Agora promove os próprios tours com o objetivo de revelar detalhes da cultura gastronômica e de vinhos dos dois países. Ryan e Gabriella acreditam que o vinho é o que une países tão diferentes como Espanha e Portugal. O chef americano e colaborador Sam Zucker acaba de convidar os leitores do Catavino para uma aventura de comida, vinho e romance em Barcelona. Os viajantes vão cozinhar com ele em instalações com vista para as Ramblas. E com ele conhecerão também cada detalhe do universo dos frutos do mar do Mercado Boquería. Os roteiros do Catavino já contemplam Madri, Barcelona, Rioja, Andaluzia e San Sebástian, na Espanha. E Algarve, Lisboa e Porto, em Portugal. No blog, além de resenhas de vários rótulos, espaço para restaurantes como a Taberna do Largo, no Porto, em crônica cheia de emoção assinada por Grabriella Opaz, a co-fundadora do site. DC de 14/2/2014

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

A rolha nossa de cada dia

Aquele performático funeral em Nova York, organizado pelo vinicultor californiano Randall Grahm, entrou para a história dos vinhos e da arte. No caixão, Monsieur Thierry Bouchon (brincadeira com a palavra francesa para saca-rolhas, tire-bouchon). Ao lado do finado, a crítica inglesa Jancis Robinson exclamando: Oh, Corky, Oh, Corky, para um "corpo" todo feito de rolha (cork, em inglês), escultura do descolado artista Wes Modes. A revista Wine Spectator aderiu à brincadeira e publicou um obituário: Thierry Bouchon (1585-2002), conhecido pelos amigos como Corky, teria morrido depois de uma longa doença, sendo a toxina 2,4,6-Tricloroanisol (TCA) a responsável por sua partida. TCA é o composto resultante do fungo que ataca a cortiça e acaba estragando e comprometendo os vinhos, mal que atingiu seu pico nas últimas décadas do século 20. Quem não passou por um vinho bouchonné, com seu aroma de papel molhado ou papelão mofado, levante a mão. Algumas pesquisas mostram que até 6% das garrafas produzidas em todo mundo foram contaminadas e descartadas nos piores momentos da "praga". As viúvas de Corky, principalmente as do Novo Mundo, partiram com razão e sem compaixão para novos relacionamentos, com rolhas sintéticas (e até coloridas) e screwcaps (vedantes de rosca, em alumínio). Carlos de Jesus Amorim, diretor de marketing e comunicação da Corticeira Amorim – líder mundial das rolhas naturais em parceria com 600 produtores portugueses, a maioria do Alentejo, detentor de 25% do mercado –, deve estar rindo à toa com a anunciada "ressurreição" de Corky. Amorim reconhece que erraram ao dispender muita energia na "guerra de relações públicas" no final dos anos 1990 e pouca no ataque ao TCA, mas diz que já correram atrás do prejuízo investindo pesado em pesquisa e inovação. O controle de qualidade é feito envolvendo os parceiros, desde a colheita. As instalações foram completamente reformadas, os pellets de madeira, aposentados. A parte da cortiça próxima às raízes da planta, mais vulneráveis aos fungos, agora são descartadas. A presença mínima de TCA é detectada por refinados exames com técnicas de cromatografia, levando as peças contaminadas a eficientes escaldamentos profiláticos. "Agora a batalha da indústria de rolhas é para reconquistar o coração dos consumidores", disse Amorim ao jornalista Tom Cannnavan. Todas essas providências têm levado à retomada do mercado. Os vinicultores também gostaram da uniformização e da classificação dos tipos de rolha, com redução das variações de qualidade de vinhos de uma mesma safra guardado sob as mesmas condições. A vinícola australiana Rusden, no Barossa Valley, acaba de deixar as screwcaps de lado, de volta às rolhas de cortiça. Amorim comemora porque os maiores mercados concorrentes estão justamente na Austrália, Nova Zelândia e África do Sul. Na Nova Zelândia, somente 30% das garrafas levam rolhas de cortiça. A Corticeira Amorim tem apoiado movimentos de retorno à rolha natural em vários mercados-chave, como no Reino Unido. O site da empresa informa que "a icônica cave sul-africana Klein Constantia anunciou um retorno à rolha natural no seu Sauvignon Blanc premium, o Perdeblokke Sauvignan Blanc e a vinícola Rutherford, sediada no Vale do Napa, abdicou da utilização de vedantes de plástico devido a problemas técnicos e de sustentabilidade". Os contendores (fabricantes de rolhas naturais e os de vedantes sintéticos) não estão mais em debate sangrento, batalhas que renderam até um clássico com tiradas shakespereanas To Cork or Not to Cork, de George Taber. Todos apostam na força da inovação. A líder das rolhas sintéticas, a Nomacorc, acaba de firmar uma parceria com a brasileira Brasken para o fornecimento do plástico à base de etanol da cana-de-açúcar. O Polietileno I'm Green garante pontos de sustentabilidade à empresa, já que contribui para reduzir a emissão dos gases do efeito estufa. Mas os fabricantes dos polímeros já entram na defensiva: dizem que suas rolhas apresentam o mesmo desempenho das de cortiça, que permitem a entrada controlada de oxigênio. E não têm, absolutamente, TCA. CHINA Desde 2005, o consumo de vinhos não para de crescer na China. Os chineses já ultrapassaram franceses e italianos no consumo de vinhos tintos, mostram números da Vinexpo, uma grande feira de negócios de vinho que terá seu evento asiático em Hong Kong, em maio. Mais de 155 milhões de caixas de 12 garrafas foram vendidas na China em 2013, contra 150 milhões na França. e-BOOK The World Atlas of Wine, de Hugh Johnson e Jancis Robinson, já na 7ª edição, é obra de referência de quem aprecia vinhos e gosta de estudá-los. Foi atualizado para incluir temas como mudanças climáticas. No Brasil, é publicado pela Nova Fronteira. Pois a obra ganhou versão eletrônica, que não é simples adaptação da obra parruda. No i-Pad, o desfile de fotografias é completado com um show de mapas interativos.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Banzai, mangás !

Um mangá japonês sobre vinhos está na lista de best sellers do New York Times, virou série na Nippon Television e tem mexido com o mercado de alguns vinhos que aparecem nas histórias, em safras sempre fiéis à realidade. Alguns fãs da série, mais afoitos (e com dinheiro), são capazes de viajar a Paris ou bater na porta de um châteaux atrás do vinho mencionado no mangá. Nos bares de Tóquio, os Bordeaux das tiras passaram a ser disputados. E os dealers falam em negócios triplicados em mercados asiáticos. The Drops of God (Gotas de Deus) é como Kami no Shizuku, lançado há mais de 9 anos no Japão, foi traduzido na edição americana (Vertical Inc.). A obra dos jovens irmãos Yuko e Shin Kibayashi, sob o pseudônimo Tadashi Agi, vem sendo publicada desde 2008 na França pela Glénat, tradicional editora de quadrinhos. Lá é Les Gouttes de Dieu. Os desenhos são de Shu Okimoto. O mangá que se tornou um fenômeno mundial conta a história do jovem Kanzaki Shizuku. Para herdar os bens do pai, um crítico de vinhos respeitado, ele deve identificar com rigorosíssima precisão 13 rótulos da preciosa adega do patriarca. As primeiras 12 garrafas são tratadas como "os doze apóstolos". A derradeira, "drops of God". Diferentemente do pai, Shizuku nada conhece de vinhos e tem de aprender na raça a usar seus afinados sensos. Disputará a herança com Toomine Issei, um irmão adotivo. O desafio serve para que vinhos especiais e bem específicos desfilem com todas as letras e qualidades pelas tiras. Estão lá, por exemplo, o Château Lafleur 1994 e o Château Palmer 1999. O vinicultor francês Jean-Pierre Amoreau, dono do Château le Puy, em Bordeaux, contou ao The Guardian que o mangá tirou sua safra 2003 da obscuridade. Foram cerca de 150 pedidos, um dia após o episódio na TV. Contente, mas desconfiado, Jean-Pierre resolveu, entretanto, tirar a badalada safra de circulação, para evitar especulação. Afinal, avesso ao caráter fabricado da demanda, desejava garantir garrafas de seu vinho para genuínos apreciadores. Independentemente disso, a garrafa de Amoreau passou de 15,50 para 18 euros da noite para o dia. Afinal, o Château le Puy 2003 era justamente o 13° vinho, o "drops of God" que dá título à série. DC de 31/1/2014