quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

A uva Norton de Thomas Jefferson

Thomas Jefferson, um dos pais da pátria norte-americana, principal autor da Declaração da Independência e terceiro presidente dos Estados Unidos (1801-1809) cunhou uma máxima que os puritanos de plantão não engoliram: “o vinho é o único antídoto contra a perdição do whisky”, dizia Thomas Jefferson. Não só não engoliram, como mais tarde ganharam a guerra, misturando todos os alcoóis na mesma lista de proibidos, com a decretação da Lei Seca (1920 a 1933).

O vinho caiu nas graças de Jefferson depois de sua passagem pela França, como embaixador (1784-1789). A partir de Paris, ele realizou inúmeras viagens pelas regiões vinícolas européias e tomou gosto pelo assunto (e pelos vinhos). Há registros de que chegou a enviar grandes rótulos para a adega da Casa Branca. Quando deixou Paris, levou com ele 125 garrafas do Château Haut-Brion, o premier cru classé produzido em Pessac, não distante de Bordeaux. Jefferson dizia: “Nós poderíamos, nos Estados Unidos, produzir variedades de vinho tão boas como aquelas feitas na Europa, não exatamente dos mesmos tipos, mas sem dúvida da mesma qualidade.”

Como defensor da horticultura e de todas as potencialidades da terra americana, Jefferson chegou a plantar vinhas na sua propriedade de Monticello, na suaVirgínia natal, mas grande parte das vitis viníferas de tradição europeia não resistiram às doenças da América. O grande sonho do vinho americano, emulando ou superando os da Europa, não foi atingido em sua época (isso demoraria cerca de um século e meio, se contarmos o início da revolução vinícola nos Estados Unidos, a partir dos anos 1960, com Robert Mondavi, na Califórnia).

Entre as uvas cultivadas por Thomas Jefferson estava a variedade Norton, batizada a partir do nome de seu descobridor, Daniel Norbone Norton (1794-1842), médico e horticultor de Richmond, Virgínia, que passou a promover essa cepa a partir de 1820.

Doctor. Norton dizia que a variedade Norton era uma planta híbrida de Bland (Vitis lambrusca X Vitis vinífera) e Pinot Meunier. Estudos recentes de DNA, entretanto, registrados no livro Wine Grapes (Jancis Robinson, Julia Harding e José Vouillamoz) dizem que a Norton é uma uva híbrida que inclui entre seus ancestrais Vitis aestivalis e Vitis vinifera, rejeita o parentesco com a Pinot Meunier, e fala de uma relação com a Enfariné Noir.

No final dos anos 1800, bons clarets da uva Norton chegaram a ser vinificados na Monticello Wine Company de Charlottesville. Hoje, a Horton Vineyards, por exemplo, tem orgulho de reintroduzir entre seus vinhedos a variedade Norton da Virgínia ao lado de cepas francesas do Rhône e de Bordeaux. Variedades que se dão bem no clima de Old Dominion.

Os vinhos da Norton produzidos pela Horton, segundo o site da própria vinícola, são escuros, frutados, com aroma intenso de ameixas e cerejas azedas. Passam 14 meses em barricas de carvalho, o que garante ao vinho um final aromático de especiarias. Um vinho indicado para carne de caça, linguiças grelhadas e pratos étnicos apimentados. Nos vinhos Norton da Horton, 93% das uvas são Norton, sendo os 7% restantes da casta portuguesa Touriga Nacional.

A Norton é muito cultivada na região Nordeste e no Midwest dos Estados Unidos. Outras vinícolas de respeito na terra da Norton são Augusta Winery, Crown Valley, Stone Hill (Missouri) e Pontchartain (Louisiana).  Segundo Tyler Colman (Wine Politcs/University of California Press/2008), a vinícola Stone Hill, fundada em 1847, faz o que os colonizadores do rei James nunca puderam fazer, ou seja, bons vinhos com a variedade local. Outro fã da Norton é o filósofo inglês Roger Scruton, que a incluiu num dos capítulos de seu festejado livro I Drink Therefore I am (Continuum/2011)

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Punch hot 25, sem esnobismos

William Thackeray (1811-1868), amigo de Charles Dickens e frequentador da Trafalgar Tavern, em Greenwich, era romancista e escreveu ferinas críticas aos esnobes de seu tempo, a quem chamava de England Dinner-giving Snobs.  Colaborava com a revista Punch, artigos posteriormente reunidos em Book of Snobs, em 1848. 
    Hoje há uma competente e moderna revista Punch, virtual, que consegue capturar o ethos que leva os vinhos, os destilados e os coquetéis adiante na sua jornada de inovação e alegria, reportando com criatividade que suplanta o tão alquebrado esnobismo do tema. A revista não se contenta com o comum, nem com as unanimidades geradas pelo mercado. Veja a seguir a lista dos 25 vinhos do ano, segundo a Punch. Visite o site, com a reportagem completa assinada por Jon Bonné e crítica e serviço de cada rótulo.

Punch hot 25
Day Wines Mamacita! Mae’s Vineyard Malvasia Pétillant Naturel
Terroir al Limit Pedra de Guix Priorat Blanco
Domaine des Ardoisières Argile Blanc IGP Vin des Allobriges
Benoît Ente Bourgogne Aligoté
Domaine Rietsch Demoiselle Alsace Gewurztraminer
Arbe Garbe Sonoma County White
Ciro Picariello Irpinia Fiano
Luneau-Papin Clos des Allées Muscadet Sèvre et Maine Sur Lie
Weiser-Künstler Estate Mosel Riesling
Benoit Courault Gilbourg Vin de France
Dominique Belluard Grandes Jorasses Savoie White
Domaine Berthaut Fixin Les Crais
Schlossgut Diel Rosé de Diel Nahe Pinot Noir Rosé
Forlon Hope Dragone Ramato Rorick Vineyard Pinot Gris
Los Bermejos Lanzarote Listán Rosado
Broc Cellars Green Valley Solano County Valdiguié
Château de Brézé Clos Mazurique Saumur Red
Tom Shobbrook Poolside Barossa Syrah
Giacomo Fenocchio Barolo
Adegas Guímaro Finca Capeliños Ribeira Sacra
Holger Koch Kaiserstuhl Baden Spätburgunder
Richard Rottiers Dernier Souffle Moulin à Vent
Enfield Pretty Horses California Tempranillo
Pedro Parra y Familia Imaginador Itata Cinsault

E depois eles dizem que não gostam de listas!


domingo, 11 de dezembro de 2016

Garrafa Melquizedeque e Abraão

As grandes garrafas de vinho, com seus nomes de referências bíblicas, chamam minha atenção. As informações sobre sua gênese sempre estiveram difusas, mas ganharam novos contornos no livro Divine Vintage (Palgrave Macmillan/2012), de Randall Heskett e Joel Butler. A maior de todas as garrafas, a garrafa de 30 litros, onde cabem o volume de 40 garrafas de 750 ml, é chamada de Melquizedeque. E não é à toa.

Intencional ou não, esse batismo tem grande simbolismo, marcando um momento importante da história do vinho. Em seu caminho de Ur para Israel, o patriarca Abraão encontrou-se com Melquizedeque, rei de Salem (de Jerusalém), na cidade de Shaveh. Foi quando Melquizedeque lhe serviu pão e vinho dos vinhedos locais. Duas culturas, a canaanita e a hebreia, desafiando padrões de animosidade, se encontravam pela primeira vez diante do vinho, em paz. Abraão vinha da terra da cerveja, da Mesopotâmia transbordante dos rios Tigre e Eufrates, e o vinho de Canaã, com todo seu peso cultural, pode ter sido um ponto de inflexão.

Nomes e tamanhos das garrafas

Melquizedeque --- 30 litros, 40 garrafas (de 700 ml)

Primat -------------- 27 litros, 36 garrafas

Sovereign ---------- 25 litros, 33,3 garrafas

Salomão ------------ 20 litros, 28 garrafas

Melchior ----------- 18 litros, 24 garrafas

Nabucodonosor ---15 litros, 20 garrafas (Champagne)

Baltasar ------------ 12 litros, 16 garrafas (Champagne)

Salmanazar -------- 9 litros, 12 garrafas

Matusalém --------- 6 litros, 8 garrafas (Borgonha)

Impériale ------------ 6 litros, 8 garrafas (Champagne)

Rehoboam --------- 4,5 litros, 6 garrafas

Jeroboam ---------- 3 litros, 4 garrafas (Bordeaux)

Double Magnum - 3 litros, 4 garrafas (Borgonha e Champagne)

Marie-Jeanne ----- 2,25 litros, 3 garrafas (Champagne)

Magnum ----------- 1,5 litros, 2 garrafas

Standard ----------- 750 ml, 1 garrafa

Demi ou Split ----- 375 ml, meia-garrafa

Piccolo ------------- 187 ml, um quarto de garrafa

O aprofundamento histórico sobre os nomes dessas garrafas tem tudo a ver com a própria formação de um dos autores. Randall Heskett é professor universitário e um biblical scholar com formação em Velho Testamento pela Universidade de Yale e Universidade de Toronto. Ex-importador de vinhos, escreveu diversos livros e artigos, incluindo Reading the Book of Isaiah: Destruction and Lament in the Holy Cities (Palgrave Macmillan/2011).

Segundo Tom Stevenson, respeitado autor de The World Encyclopedia of Champagne and Other Sparkling Wines (Wine Appreciation Guild/ 2003), a mais antiga garrafa com nome bíblico é a Jeroboam, usada em Bordeaux pelo menos desde o século XVIII. As demais, com capacidades que ultrapassam 1,5 l ( Magnum), foram nomeadas a partir dos anos 1920.

Jeroboam foi o primeiro rei de Israel (922-901 a.C.), depois do sucesso da revolta das dez tribos do norte contra Rehoboam (o da garrafa de 4,5 litros), que resultou num reino dividido, Rehoboam à frente de Judá. Os autores conjecturam que a escolha de Jeroboam tenha ocorrido porque um dos seus vícios era, talvez, beber demais. Há também a possibilidade de tudo não passar de puro marketing,
tática que os produtores de Champagne conhecem muito bem.

Os pilotos da Fórmula I costumam subir ao podium ostentando garrafas Jeroboam, com 3 litros de Champagne (double Magnum). Sempre foi Champagne. Mas depois de 15 anos como símbolo da premiação da F-1, a vinícola G H Mumm perdeu o lugar no contrato para a australiana Chandon, submarca da Moët & Chandon. E como Champagne é só o vinho de Champagne...











sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

O verão e os vinhos de Hesíodo


Alguns versos de  Os Trabalhos e os Dias , do grego Hesíodo (séc. VIII a.C.), trata da vida agrícola e dos campos em Ascra, na Beócia, onde cultivou seus campos e fez poesia, sempre com vinho e pão à mão. Os versos a seguir (de 582 a 596) foram traduzidos diretamente do grego e do latim pelo poeta e ensaísta Péricles Eugênio da Silva Ramos (1919-1992), e constam do livro Poesia Grega e Latina (Editora Cultrix, 1964).

Verão

Quando floresce o cardo e, na árvore, a cigarra
verte de sob as asas doce canto estrídulo,
no tempo em que o verão é fatigante,
mais gordas vêem-se as cabras e melhor o vinho,
mais sensuais as mulheres, débeis os varões:
- Sírius lhes queima a fronte e os joelhos, e o calor
lhes seca a pele. Oh, possa eu ter, nessa ocasião,
a sombra de uma rocha, vinho bíblino,
pão e leite de cabras que já desmamaram,
e carne de novilha que parou no bosque
e ainda não deu cria, ou, caso falte,
de cordeirinhos do primeiro parto.
E possa eu, para beber o vinho negro,
à sombra me estender, de coração feliz
com o meu banquete, e, dando o rosto ao vento oeste,
junto a fonte perpétua, viva e imperturbada,
mesclar três partes de água e uma de vinho.

Acredita-se que vinho bíblino do poema de Hesíodo é uma versão grega do vinho negro de Biblos (importante cidade fenícia), incensado por seu perfume e por sua cor escura. Era feito principalmente na Trácia, resultado da fermentação de uma variedade conhecida como "bibline".

Vinhos de Biblos

Povo de origem semita, os fenícios habitavam não somente Biblos, mas também Sidon e Tiro, no que é o Líbano de hoje. Os vinhos de Biblos foram muito famosos com os romanos, mas foi apreciado muito antes pela família real egípcia. Enquanto carregamentos de vinhos da Anatólia abasteciam o sul de Canaã, no quarto milêmo a.C., vinhos com destino ao Egito eram embarcados no porto de Biblos, ao norte de onde está a atual Beirute. "Viticultores libaneses reivindicam hoje que a sua uva merwah é a uva do vinho bíblino e que ela está relacionada com a cepa Semillon", escrevem Randall Heskett e Joel Buttler em Divine Vintage (Palgrave Macmillan/2012). A merwaah não é usada mais para vinhos de mesa e sim entra na destilação do raki.

A referência à mistura de água ao vinho, na última estrofe aqui reproduzida, revela um costume dos gregos, muito presente nos simpósios, a reunião de homens entorno do vinho, pós-refeição. Filósofos chegavam a discutir em altos termos a melhor proporção da mistura durante esses encontros movidos a vinho. Embriagar-se aos poucos era uma das regras.Para a diluição do vinho depositado em crateras (três crateras para um grupo de 11 bebedores) era usada uma outra vazia chamada hidria. Na média as misturas variavam de uma parte de vinho para uma de água a cinco de vinho para duas de água.

Leia também: No início eram os divinos

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Prix au Sommelier

A Academia Brasileira de Gastronomia (ABG) diplomou nesta quinta-feira (24/11/2016) Tiago Locatelli, head sommelier e diretor do setor de bebidas do restaurante Varanda Grill, de São Paulo, profissional de destaque de 2016, na categoria Prix au Sommelier. A cerimônia foi realizada no Restaurante Cantaloup, com jantar a cargo do chef Waldir Nascimento e seleção de vinhos de Ennio Federico, enólogo, gourmet e membro da ABG (veja menu abaixo). O jantar também celebrou os 15 anos de fundação da Academia Brasileira de Gastronomia. O chef Rafael Costa e Silva, do Restaurante Lasai, Rio de Janeiro, recebeu o Prix au Chef de l'Avenir. Já o Prix Littérature Gastronomique foi para Nilda Luz, escritora de várias obras de gastronomia, premiada por "Brasil, Campeão de Copa e Cozinha". O Prix Multimedia foi conferido a Gabriel Pupo Nogueira, do portal Taste (www.taste.com.br).

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Vinhos para ler, livros para degustar

Vinho “harmoniza” com livro?
Na Itália, a vinícola Matteo Correggia está promovendo a leitura com as suas garrafas - acaba de lançar uma linha de vinhos cujos rótulos são na verdade pequenas brochuras com textos de ficção, amarradas aos vasilhames. O projeto da Matteo Correggia, desenvolvido pela agência de design Reverse Innovation, chama-se Librottiglia (de livro e garrafa) e apresenta histórias curtas de jornalistas, humoristas e escritores de suspense. O mote da Librottiglia é: “um vinho para ler ou um livro para degustar?” O texto Homicído, por exemplo, de autoria do jornalista Danilo Zanetti, é um pequeno giallo (como na Itália são batizados os policiais e os livros de mistério). O suspense de Zanetti vai amarrado às garrafas de um vinho da uva Arneis da região de Roero, província de Cuneo (Piemonte). Durante algum tempo, a Arneis, toda aromática, foi plantada para atrair passarinhos e assim distraí-los dos pés da vizinha mais famosa, a uva Nebbiolo dos nobres Barolo e Barbaresco. A vinícola Matteo Correggia colabora agora com a leitura e o resgate da uva branca Arneis (que quase desapareceu nos anos 1970) e seus vinhos secos e frutados.
 Em São Paulo, um dos mais charmosos sebos da cidade, O Desculpe a Poeira, também está apostando na dobradinha livro-vinho. O Desculpe a Poeira tem à frente o jornalista Ricardo Lombardi, sempre aberto a ideias novas para promover o livro, seus autores e a poesia da leitura (as quotesdesculpeapoeira, a seleção de cartoons da The New Yorker e os papéis “achados” pelo arqueobuquineiro nos meios dos livros, tudo circulando no facebook, são impagáveis). No dia 3 de dezembro agora, o sebo vai receber Daniela Bravin e Cassia Campos, que desde setembro conduzem em São Paulo o projeto Sommelier Itinerante. Elas vão a campo, no caso agora um sebo, para mostrar vinhos surpreendentes garimpados no mercado. Taças a bons preços e livros idem são mais do que um convite à dupla embriaguez. Dia 3 de dezembro, a partir das 12 h. O sebo fica na Rua Sebastião Velho, 28ª, em Pinheiros, SP.
Duas ideias que merecem um brinde!
Veja mais em:
/www.librottiglia.com/
 www.matteocorreggia.com
sebodesculpeapoeira.tumblr.com/

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Vinhedos, livros, encontros

Foi preciso mesmo um amigo cartunista, Jean Galvão (que tem ilustrado com muita perspicácia, humor e carinho os posts de Roda do Vinho), para que eu conhecesse o livro em quadrinhos ‘Os Ignorantes – relato de duas iniciações’, de Étienne Davodeau, lançado no Brasil em 2014, pela editora Martins Fontes. Ao me presentear com o livro, Jean fez um pouco o papel de Étienne, estabelecendo, como o quadrinista francês, conexões entre o mundo dos vinhos e o dos livros. Como Étienne constatou: ‘existem tantas maneiras de fazer um livro quantas de produzir um vinho. Livro e vinho têm o poder, necessário e precioso, de aproximar os seres humanos’.


A HQ Os Ignorantess, de Étienne, mostra o dia a dia do viticultor Richard Leroy, que maneja vinhedos em Rablay-sur-Layon, uma das aldeias ao longo do rio Layon, afluente do Loire. A vinícola de Richard está no coração de Coteaux du Layon, uma Appellation d’Origine Contrôlée (AOC) para o vinho branco doce do Vale do Loire. E aí começa o retrato de um viticultor muito especial: pois Richard Leroy produz grandes vinhos brancos, com a uva Chenin (“a melhor de todas”), mas não são vinhos doces; são vinhos secos. Ele não usa produtos químicos em sua propriedade, adepto que é da biodinâmica. Para a produção dos vinhos doces da região – regra seguida por 95% dos produtores – é permitida a adição de 100 a 180 mg de enxofre por garrafa. O enxofre é comumente usado para a preservação do vinho. Richard usa apenas 20 mg por litro e pensa sempre na inalcançável meta zero.


Para desenhar a sua HQ, Étienne passou muito tempo com Richard Leroy na propriedade de 3 hectares em Rablay. São dois os vinhedos personagens da HQ: Noëls de Montbenault fica no topo da colina, com vista para o rio Layon. Éttienne desenhou Leroy de braços abertos em Montbenault, feliz da vida, conversando com o quadrinista. Nos balões de Leroy lemos: “Ah, cacete, fora de gozação! Você não está sentindo o vento? Estamos em pleno sudoeste! Aqui tem sol e vento o ano todo! Montbenault é um terroir com ventilação impecável. Meu vinhedo está sempre bem, mesmo com sol intenso. No verão ele bate forte nesses pedregulhos, sabia?”


Além de Montbenault, há o Clos de Rouliers, de um hectare, na parte inferior do morro. O solo das duas parcelas, entretanto, como Étienne desenhou, com terra na mão, é composto de riólitos, rocha vulcânica de milhões de anos, um dos orgulhos de Richard Leroy.


 Não foi nada fácil a vida do cartunista nos vinhedos, a começar do importantíssimo ritual da poda das videiras, sempre no inverno, um frio de lascar, em meio até à neve, ritual que vai de janeiro a março. São, afinal, quinze mil pés, encolhidos de frio. O viticultor está, nesse ponto da HQ, com uma providencial barba. (O quadrinista vai reclamar quando chegar a primavera: Richard aparece de cara limpa; ficará mais difícil desenhá-lo. “Sinto que vai sair uma merda. Não quer deixa-la crescer de novo?” A imersão de Étienne nos vinhedos tem sua contrapartida. Richard é levado para conhecer o trabalho da criação e “cultivo” de livros, numa uma editora de quadrinhos. Antes disso, só conhecia mesmo a gráfica que imprimia os rótulos de suas garrafas.


E se Richard levou Étienne para conhecer o trabalho dos toneleiros, os artistas das barricas, dos tonéis, o quadrinista o levou a encontros com artistas geniais, também “envergando carvalho” em suas pranchetas. Na casa de Jean-Pierre Gibrat, Richard ouve o elogio a Moebius (“Mozart e Jimi Hendrix ao mesmo tempo!”) e presta atenção aos dois balões à boca do artista: “ Por que um livro toca – ou não – seus leitores? O que constitui o valor de um autor? É muito misterioso, não é? Gosto dos livros e dos autores que têm identidade forte... e acho que o que constitui nossa identidade são, entre outros, nossos defeitos. Devemos compreendê-los e aceita-los. É como uma cara: um rosto pretensamente sem defeitos não tem graça chateia todo mundo.”

Alguma semelhança quando um enólogo quer fugir do modelo tradicional de sua região?
No início de abril, com sol, mas noites ainda muito frias, viticultor e quadrinista trabalham duro na limpeza dos espaços entre as fileiras de vinhas. O frio pode ser problema para o desenvolvimento dos brotos, como ocorreu na safra de 2008. Étienne conta que não sofre esse stress: trabalha num estúdio onde a temperatura nunca cai para menos de 16 graus. Na HQ e na vida, Étiene provoca Richard a falar sobre seus vinhedos orgânicos. Sim, porque Richard Leroy e sua mulher Sophie não usam nem pesticidas, nem herbicidas, mas recusam-se a usar a identificação de “bio” na sua garrafa. “Quero que as pessoas procurem meus vinhos porque gostam deles”, afirma o Richard da tira, confirmando o da vida real.


 Um dos momentos mais engraçados dessa HQ é justamente quando o desenhista vai a campo para assistir a uma verdadeira aula de biodinâmica, num belo entardecer de junho de 2010. Richard e um vinicultor amigo da vizinhança vão aspergir no terreno a tradicional fórmula “500 P”. “500 P”? O que seria isso? Na verdade, um composto líquido amarronzado que é nada mais do que bosta de vaca que passou o inverno dentro de chifres. Essa prática faz parte da biodinâmica, inspirada nos conceitos antroposóficos do filósofo austríaco Rudolf Steiner (1861-1925), que propõem “uma visão supramaterialista do mundo e das relações entre os seres vivos”. A biodinâmica incorpora os conceitos da agricultura orgânica, acrescentando à rotina dos agricultores considerações sobre os ritmos planetários e lunares e a magia da bosta de vaca. Étienne, como era de esperar, não esconde os traços de seu ceticismo. Richard é desenhado acreditando na fórmula. Mais tarde, convida o quadrinista para outra rodada da “coreografia biodinâmica”, de nebulização, desta vez no sentido de “dinamizar as folhas na direção do céu, na direção da luz”. A receita agora é outra: sílica (em doses mínimas de 3 gramas por hectare). Leroy conta o segredo para a pena de Étienne: “Imagine a sílica como cristais, armadilhas de luz que colocamos sobre as folhas.” Na manhã seguinte, Étienne faz um autorretrato da sua lida: está exausto, aparando e arrancando, com a ajuda de uma espécie de arado, nas trilhas de xistos, o mato que cresceu entre as fileiras.
Étienne se desculpa (só no livro): vai obrigar Richard a largar as vinhas (sem que ele tenha tido tempo de tratá-las antes das tempestades), para algumas horas na rotina de uma editora, em Paris. Na mesa do almoço entre os artistas, a voz de Étienne faz um resumo: “Talvez vinhos e livros também sirvam para isso: se espicaçar tranquilamente.” De volta aos vinhedos, Étienne se entusiasma com um pulverizador, quer desenhá-lo. Para ele, mais parece “um ready made de Marcel Duchamp”. Richard é pragmático: vai usá-lo para tratar o vinhedo com uma calda bordalesa e enxofre, autorizada pela agricultura orgânica.
Com a HQ “ Os Ignorantes” aprendemos tudo isso. Ficamos sabendo também que maio e junho são os meses da desbrota, que consiste em tirar a profusão de brotos, deixando apenas seis em cada pé.

Os desenhos dizem tudo, mesmo para quem conhece a teoria. No fim de junho, é hora de conduzir as videiras para seus caminhos, organizando aquilo que poderia virar uma floresta. E vemos logo as gavinhas se enroscando nos arames. Tudo em ordem. Em agosto, vem a debastação dos parreiras. E, à espera da colheita, Étienne prova os mais diversos vinhos da espetacular adega de Richard: Riesling Rosenlay Auslese Schloss Lieser 1989 e um Château Tropolong-Mondot, Saint-Émilion Grand Cru 1989, por exemplo, para não embebedarmos aqui neste post. É claro que Étienne vai fazer troça de um vinho de Richard. Afinal, esse Noëls Montbenault 2004, “não me diz grande coisa...”. Os dois degustam vinhos enquanto vão dividindo comentários sobre quadrinhos anglo-saxões: “Watchmen”, de Alan Moore e Dave Gibbons, ou “Maus”, de Art Spiegelman, um tanto “bizarro” para Richard (seria uma vingancinha?) No bate-papo, uma conversa sobre resenhas. Richard pergunta: “As modas e o poder da imprensa... vocês também enfrentam isso na HQ?” E Étienne abre o jogo: “Não tanto quanto vocês, decerto... nosso livros são todos “resenhados”. Em HQ, “a verdadeira crítica permanece muito confidencial”


Já tínhamos sabido, nesse ponto, que o viticultor dos secos da uva Chenin, recebera a visita em Montbenault de um representante de Robert Parker Jr., o crítico americano que durante décadas praticamente ditou o rumo do mercado de vinhos finos, especialmente os da França. Richard tem muita reserva em relação ao sistema de pontos de Parker, mas não recusa a visita de degustadores reconhecidos, respeita-os. Até a edição da HQ, os vinhos de Richard Leroy faziam parte do fechado clube dos “mais de noventa de Parker”, ou seja, tiveram nota superior a noventa sobre cem. Étienne deu o devido tom de mistério à degustação do homem de Parker.


 A HQ Os Ignorantes celebra a chegada do mês de setembro, o “mês mais bonito do ano”, quando os vindimeiros freelancers, sazonais, trazem sons para os vinhedos, ao ritmo de “passe o balde” e do balde caindo no cascalho. Há também canções. Richard supervisioniza tudo, vai experimentando como estão as uvas, seu teor de maturação e açúcar. E faz um alerta: não quer ver ninguém colhendo uvas botritizadas, quer dizer, aquelas “podres”, atacadas pelo microfungo Botrytis, que faz o açúcar disparar. Para os vinhos brancos doces da região, a Botrytis é o paraíso. Não para os brancos secos de Richard. Enquanto as uvas vão para os tonéis, Étienne e o vitivinicultor vão para a Bretagna. Depois de um salão de vinhos, se embriagam no Quai-des-Bulles, em Saint Malo, o segundo maior festival de “la bande dessinée et de l'image” da França.


Étiene continua o desenho do mês de setembro: são cenas das barricas, onde as coisas “borbulham, espumam, trabalham, transbordam”. “É o período do ano em que o vinho é um animal. Cheio de energia e ímpeto, enche o lugar com seus humores”. Tudo o que fazem na propriedade Rablay-sur-Layon é “ouvir, cheiras, provar”. Depois será a hora do rótulo, tampa e caixa de papelão... Richard então diz, depois de calcular o tanto de garrafas que conseguiu produzir: “Eu me dou mal todos os anos: antes da colheita digo sim a todo mundo. Depois de um mês, não tenho mais nada para vender.” Étienne tira uma onda: “Em casos desse tipo, nós temos uma palavra mágica: reimpressão!

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

El Niño parece que não bebe

A produção mundial de vinho vai cair 5% em 2016, segundo dados divulgados no início desta semana em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha, durante o 39º Congresso da Organização Internacional do Vinho e da Vinha (OIV). Os números fazem parte do relatório anual da entidade sobre a situação da vitivinicultura no planeta. A produção total de 259 milhões de hectolitros é uma das menores em 20 anos. Em 2013, quando o recorde foi estabelecido, chegou a 276,6 milhões de hectolitros (lembrando que 1 hectolitro equivale a 100 litros). Itália e França, que lideram o ranking da produção mundial, produziram menos em 2015. Na Itália são 48,8 milhões de hectolitros, uma queda de 2% em relação à safra anterior. A queda da produção na França foi muito maior: 12%, com 41,9 milhões. Em terceiro lugar no ranking, a Espanha registrará uma produção de 37,8 milhões (+1%) Na sequência aparecem os Estados Unidos (22,5 milhões, + 2%) e, depois, Austrália (12,5 milhões, +5%). Na Europa, a maior queda será em Portugal, 20%, passando de 7 para 5,6 milhões de hectolitros. Os dois maiores produtores da América do Sul também não foram nada bem em 2016. O maior tombo foi registrado na Argentina, que produziu 8,8 milhões de hectolitros, resultado 35% menor do que na safra anterior. No Chile foram produzidos 10,1 milhões, queda de 19%. No Brasil, que ocupa o 22º no ranking, foram produzidos 1,4 milhão de hectolitros, safra 50% menor do que a de 2015. O clima, principalmente o fenômeno do El Niño, foi o vilão dos vitivinicultores na América Latina. A OIV informou ainda que a área plantada com vinhedos em 2015 cresceu para 7,5 milhões de hectares, dado o avanço tecnológico do setor. A Espanha lidera esse ranking de área plantada, com um pouco mais de um milhão de hectares. Os maiores vinhedos espanhóis são das uvas brancas Airén, Palomino, Macabeo e Pardina. Já as tintas mais plantadas são a Tempranillo, Garnacha, Monstrael e Bobal. Em segundo lugar no ranking dos vinhedos vem a China, posição conquistada em 2014, com 830 mil hectares. (A China é o país campeão na produção de uvas passas.) A França vem em terceiro (786.000 hectares), seguida pela Itália (682.000 ha), Turquia (497.000 ha) e Estados Unidos (419.000 ha).

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Desculpe, bebi demais

A carta-padrão a seguir foi redigida no ano de 856 pelos funcionários do Departamento de Etiqueta de Dunhuang, uma região da China. Uma carta que os bêbados arrependidos assinavam já no dia seguinte, antes mesmo da ressaca acabar, ou o quanto antes possível, com um pedido envergonhado de desculpas ao proprietário da casa ou ao anfitrião por terem “passado dos limites”. A pequena carta chinesa é uma das 125 correspondências (com contextualizações e documentais fac-símiles) na coletânea Cartas Extraordinárias, organizada por Shaun Usher e editada pela Companhia das Letras, em 2014. “Ontem, tendo bebido demais, fiquei tão embriagado que passei dos limites; porém nenhuma das palavras rudes e obscenas que pronunciei foi dita por mim em são consciência. Na manhã seguinte, ao ouvir comentários sobre o assunto, dei-me conta do que havia acontecido e quase morri de vergonha, só queria achar um buraco para me esconder. Tudo ocorreu porque minha pequena tolerância não me permite encher o copo até a borda. Humildemente espero que em vossa sábia benevolência não me condeneis por minha transgressão. Logo vou desculpar-me pessoalmente, mas, entrementes, envio-vos esta mensagem para sua bondosa avaliação. Deixando muito por dizer, subscrevo-me, respeitosamente." Cartas Extraordinárias espelham a riqueza das correspondências nas mais diversas esferas, revelando outra camada significante dos relacionamentos e costumes. Cartas entre escritores, políticos, artistas, cientistas e entre pessoas comuns e celebridades, dos mais variados pontos do planeta, das mais diversas épocas. O livro abre com uma aparentemente prosaica carta com o timbre do Palácio de Buckingham de 24 de janeiro de 1960, endereçada ao então presidente dos Estados Unidos Dwight Eisenhower. “Ao ver no jornal de hoje uma foto do senhor diante de uma churrasqueira onde se assavam codornas, lembrei que não mandei a receita dos scones que havia prometido no Castelo de Balmoral, escreve de próprio punho a rainha Elizabeth II.

sexta-feira, 8 de julho de 2016

O Fendant elétrico de Joyce

Num post divertido e inteligente no facebook, o poeta Sérgio Medeiros faz várias conexões a partir de uma notícia que ele diz ter lido na Folha de S. Paulo. “Brasil é o primeiro na América Latina a receber vinho branco suíço”. Autor dos livros Figurantes, Alongamento, Totens, O Sexo Vegetal, A Formiga-leão e Outros Animais na Guerra do Paraguai, entre outros, professor na Universidade Federal de Santa Catarina, Sérgio Medeiros é ensaísta e estudioso da obra de James Joyce. Pois Sérgio lembra das referências que o autor irlandês faz ao vinho suíço Fendant de Sion, a “pale golden liquid”, “urine of an archduchess”, que Joyce bebia a rodo. “White wine is like a electricity”, “urina” que vibra em Finnegans Wake. O Fendant é o vinho branco suíço com boa acidez e não muito frutado indicado para o tradicional fondue. Como lembra Hugh Johnson, em Wine, os principais vinhedos do país seguem o curso do Rhône, da sua nascente em Bernese Oberland, passando pelo Valais e seus penhascos até a costa norte do Lago de Geneva. “Os vinhos do Valais são geralmente conhecidos pelo nome da uva ou também por um nome fantasia. Somente ocasionalmente o nome do lugar é usado. Os vinhos da uva Fendant em Sion são explícitos, apesar de existirem Fendant de Sion não produzidos em Sion. Os de Sion, os mais exportados ao lado dos Johannisberg, são certamente especiais, fermentados com uvas nascidas logo além da fortaleza rochosa de Sion, a partir de onde a planície aluvial se alarga, com mais encostas e mais sol para as cobiçadas frutas.

domingo, 12 de junho de 2016

Não me venham com chá

A recomendação que alegrou o mundo do vinho partiu de uma voz firme, aquela que semanalmente se propaga com surpresas de conteúdo a partir de uma pequena janela do Vaticano e que alcança fiéis em toda Piazza São Pedro. Ao saudar casais que estão juntos há 50 anos, na quarta-feira (8 de junho), o papa Francisco usou o vinho como metáfora, mas também no mais secular dos sentidos. “Não se pode encerrar uma festa de casamento bebendo chá”, pregou com bom humor o líder da Igreja Católica para cerca de 20 mil pessoas. “Seria uma vergonha não ter vinho!”. E elogiando os casais, tratou de dizer que eles eram o “vinho bom da família”. O papa Francisco fez referência a trechos da Bíblia que tratam das bodas de Canaã, ocasião em que se deu o milagre da transformação da água em vinho. E vinho dos bons, servido com audácia anfitriônica no final da festa. Segundo o papa, esse milagre tão reverenciado pelos cristãos “indica a transformação da antiga Lei de Moisés no Evangelho portador da alegria”.

terça-feira, 22 de março de 2016

O salto das rãs modernistas

Os modernistas das letras e das artes fizeram do solar da pintora Tarsila do Amaral, na Alameda Barão de Piracicaba, em São Paulo, um dos redutos para os debates que prosseguiram nos anos seguintes à Semana de Arte Moderna, realizada no Teatro Municipal em 1922. O casal Tarsila e Oswald de Andrade gostava de receber os amigos em casa, mas não dispensava as comemorações e os encontros nas mesas dos restaurantes, verdadeiras extensões do solar. E vários foram os endereços. No seu “diário” sobre os modernistas brasileiros (Movimentos Modernistas no Brasil – 1922-1928/ José Olympio/2012), o poeta Raul Bopp, autor do clássico Cobra Norato, lembra: “quando [Oswald] ganhava alguma causa, das questões complexas de herança, gastava tudo em lautas celebrações na Rotisser ie: faisões e bons vinhos”. Bopp dedica alguns parágrafos ao “restaurante das rãs”: “Uma noite, Tarsila e Oswald resolveram levar o grupo que frequentava o solar a um restaurante situado nas bandas de Santa Ana. Especialidade: rãs. O garçom veio tomar nota dos pedidos. Uns queriam rãs. Outros não queriam. Preferiam escalopini... Quando, entre aplausos, chegou um vasto prato com a esperada iguaria, Oswald levantou-se e começou a fazer o elogio da rã, explicando, com uma alta percentagem de burla, a teoria da evolução das espécies. Citou autores imaginários, os ovistas holandeses, a teoria dos ‘homúnculos’, os espermatistas etc. para ‘provar’ que a linha de evolução biológica do homem, na sua longa fase pré-antropoide, passava pela rã – essa mesma que estávamos saboreando entre goles de Chablis gelado.” Como sabiam das coisas da França esses modernistas! Prato tradicional cozinha francesa (não à toa os ingleses chamavam os soldados de Napoleão de frogs), as rãs, ou melhor, “les cuisses de grenouilles” devem ser consumidas sempre com vinhos brancos secos. Para ficar na adega francesa: Chablis, Côte de Beaune, Beaune, Monthelie, Saint-Aubin, Meursault, Santenay, Puligny-Montrachet, Rully, Givry, Mercurey, Mâcon Villages, Pouilly-Fuissé, Pouilly-Vinzelles, Saint-Veran Beaujolais, Quincy, Reuilly, Menetou-Salon, Sancerre, Coteaux du Giennois, Savennières, Anjou Blanc, Riesling da Alsácia, Alsácia Sylvaner, Pinot Blanc Alsace, Graves, Jurancon sec. A lista foi preparada pelo chef Simon, que assina no Le Monde, para o site ecce vino. Simon diz que, como o molho de alho é acompanhante frequente das perninhas de rã, os tintos devem ser evitados. Outro gole de Chablis. E Tarsila volta às rãs. “– Em resumo, isso significa que, teoricamente, deglutindo rãs, somos uns... quase antropófago. A tese, com um forte tempero de blague, tomou amplitude. Deu lugar a um jogo divertido de ideias. Citou-se logo o velho Hans Staden e outros clássicos da Antropofagia: – Lá vem nossa comida pulando. A Antropofagia era diferente dos outros menus. Oswald, no seu malabarismo de ideias e palavras, proclamou: – Tupy or not tupy, that’s the question. Alguns dias mais tarde, o mesmo grupo de poetas e pintores do restaurante das rãs reuniu-se no palacete da alameda Barão de Piracicaba, agora para batizar um quadro de Tarsila: ‘O Antropófago’, e para pensar num movimento “genuinamente brasileiro”, apesar das rãs no prato, diante da parca safra literária, posterior à Semana de 22. O salto das rãs para o Manifesto Antropofágico.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

O vinho pop de Downton Abbey

O CEO da Wines That Rock vai direto ao ponto: “podemos não entender de vinho, mas entendemos de marketing”. Wines That Rock é uma empresa americana que produz vinhos temáticos embalados pela cultura pop. Faz o vinho licenciado dos Rolling Stones, por exemplo. Sabe que a grande língua vermelha do rótulo atrai consumidores de vinho fãs da banda. A Wines That Rock fez os vinhos para todos prazeres de 50 Tons de Cinza. E foi nessa mesma trilha pop que seus executivos planejaram os vinhos Downton Abbey, viajando na série televisiva inglesa homônima, que atraiu e atrai milhões de espectadores em todo mundo. A primeira coleção nasceu em vinhedos franceses. Agora, os vinhos saem da Califórnia. Há um Cab Downton Abbey circulando por aí... Downton Abbey, a série, traça um retrato da aristocracia inglesa do início do século XX a partir da família Crawley. A história começa com o naufrágio do Titanic, que não deixa de ser uma grande metáfora: os Crawleys enfrentam as mudanças políticas e comportamentais de sua época com uma elegância persistente que desafia a decadência que se avizinha, após os dramas da Primeira Guerra. Com seus trajes impecáveis, muitas vezes estão à mesa, acompanhados de brilhantes talheres e taças de bons vinhos, ou nos grandes salões e jardins da propriedade, com seus copos de uísque. Representam certo espírito de bem viver que teve como patrono o próprio rei Eduardo VII. (“Não se pode apenas beber o vinho, cheirá-lo, observá-lo, degustá-lo, sorvê-lo, h&aacut e; de se falar sobre ele” é uma frase atribuída ao rei.) Em 2015, o Cabernet Sauvignon Downton Abbey da Wines That Rocks foi um dos 50 vinhos mais vendidos pela Amazon ( são comercializados somente nos Estados Unidos e no Canadá). A primeira coleção Dowton Abbey foi lançada em 2013. A companhia criou dois blends, um branco e um tinto, ambos produzidos na França. Uma parceria com a Dulong Grands Vins de Bordeaux, um negócio de vinhos de 130 anos e 5 gerações, com vinhedos na região de Entre-Deux-Mers. Para essa coleção foram usadas as mesmas castas, em solos e terrenos semelhantes aos que produziam vinhos em 1900. A historiadora Jennifer Regan-Lefebvre, do Trinity College, de Connnecticut, entrevistada pelo site VinePair, diz que registros do século XIX mostram “que não era inusual para as famílias aristocráticas terem alguns milhares de garrafas estocadas em suas adegas”, mesmo se o consumo per capita na Inglaterra de então não ultrapassasse duas garrafas/ano. Em Dowton Abbey, entretanto, não temos a visão da adega. Sabemos da movimentação dos vinhos por meio das cenas em que o grande mordomo Carson (Jim Carter) faz as escriturações e os decanta ritualmente. Os vislumbramos, sim, mas já nas taças cheias do Conde de Grantham (Hugh Bonneville), mais pose do que real prosperidade. Richard L. Elia, da Q.R.W.com, uma revista de vinhos online, avalia que há pouco vinho em Downton Abbey e que a história merecia mais, ou pelo menos uma presen&c cedil;a mais explícita. E faz blague: o valete Thomas Barrow (Rob James-Collie) parece ter o paladar mais refinado entre todos os moradores ou visitantes do casarão, já que sabemos que ele roubou duas garrafas de Château Lafite. Diferentemente do que ocorria em muitos círculos da alta sociedade inglesa, em Downton Abbey a noite passava longe do cocktail. Nos domínios de Robert Crawley, o aquecimento era feito com Porto e Sherry, vinhos fortificados. Os Crawley tinham uma concepção muito particular de harmonização, analisa Jennifer Regan-Lefebvre para o VinePair. Hors d’Oeuvres (Sherry), Sopa (Borgonha Branco), Peixe (Claret), Carnes leves (Champagne), Cordeiro e aves (Bordeaux vintage), Sorvetes (Porto) e Champagne, sempre muito vinho Champagne. Há críticos que tratam os vinhos Downton Abbey feitos na França como “inofensivos”. Agora têm à frente para análise os Downton Abbey feitos na Califórnia, a partir da quinta temporada da série. A coleção homenageia Lady Cora Grantham (Elizabeth McGovern), a mulher do famoso conde, nascida nos Estados Unidos. Os criadores do vinho garantem que o mordomo Carson escolheria vinhos californianos para agradar paladares de sensibilidades mais modernas, de convidados da condessa. Eu não acredito. Os vinhos Condessa de Grantham (Cabernet Sauvignon e Chardonnay) são produzidos na tradicional vinícola familiar Lange Twins, n a região de Lodi, no Vale Central californiano. William Zysblat, da Wines that Rocks, lembra (faz marketing) que as uvas foram plantadas na Califórnia por volta dos anos 1860, justamente a época em que Lady Cora teria nascido.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Reguengos de Tabucchi, com sarrabulho

Antonio Tabucchi (1943-2012) foi o mais português dos escritores italianos, um dos grandes contemporâneos, com uma prosa dinâmica, de textos curtos, muitas vezes tragicômicos, que em seus momentos de cumplicidade com Portugal, evoca a toponímia da sua Lisboa, por onde transitam Fernando Pessoa e todos os seus heterônimos, mapa referencial onde também há lugar e tempo para uma mesa, um vinho, um prato regional. E não é à toa que esse cotidiano aflora na obra de Tabucchi: o escritor viveu em Portugal, casou-se com uma portuguesa e estudou com afinco as literaturas moderna e surrealista do país (foi tradutor de Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade para o italiano). Pois em Requiem, uma alucinação (Cosac Naify/2015), eis que aparece, “em nostalgias irremediáveis” (Pedro Mexia), com distinção, com todas as suas letras, o vinho Reguengos de Monsaraz. Ao se encontrar com o falecido Tadeus Waclaw, uma figura de seu passado, com o qual quer tirar algumas satisfações, quebra o gelo primeiramente com taças de champanhe Laurent-Perrier, garrafa comprada na Brasileira do Chiado, o mais antigo café de Lisboa, indicação do “criado do balcão” diante de duas opções. O outro vinho era um Veuve Clicquot, “um bocadinho ácido”. Mais tarde, no restaurante do Casimiro, a conversa franca é acompanhada com Reguengos. “O senhor Casimiro chegou com pão, manteiga e azeitonas. Com o sarrabulho o tinto seria de rigor, disse ele, mas não sei se seu amigo vai gostar, tenho um Reguengos de garrafeira que aconselho vivamente. Para mim vai o Reguengos, decidiu Tadeus. Eu fiz um sinal afirmativo com a cabeça e suspirei: de acordo, vai ser o fim. O sarrabulho vinha numa travessa de barro, daquelas castanhas com flores amarelas em relevo, de tipo popular. À primeira vista tinha um aspecto repelente. No meio da travessa estavam as batatas, alouradas na gordura, e em redor os rojões [os pedaços de carne de porco sem osso,mas com alguma gordura] e as tripas. (...) Eu espetei o garfo num rojão quase de olhos fechados e levei-o à boca. Era uma delícia, uma comida de sabor requintadíssimo”. E Tadeus serviu-lhe mais um copo de Reguengos, pedindo à cozinheira que ensinasse ao narrador, “a este rapaz como é que se prepara um sarrabulho à moda do Douro, de maneira que ele possa voltar à sua terra e fazê-lo na sua própria casa, que lá onde ele mora só se comem esparguetes”. A cozinheira, mulher de Casimiro, ganha um copinho do Reguengos de Monsaraz e passa a receita: “se vossemecê que fazer um bom s sarrabulho tem de preparar a carne na véspera, corta o lombo em bocados regulares e tempera-o com alhos picados, vinho, sal, pimenta e cominhos, no dia seguinte vai encontrar uma carninha vem cheirosa, vossemecê pega um tacho de barro e corta lá dentro a gordura dos folhos, que é como se chama a gordura que liga as tripas, e deixa-a derreter em lume brando, põe a alourar os rojões na banha em lume forte e depois deixa cozer devagarinho. Quando a carne estiver quase cozida, rega-se com a marinada da véspera e deixa-se evaporar. Entretanto, vossemecê corta a tripa e o fígado e frita-os na banha até ficar tudo bem alourado. À parte refoga a cebola picada com azeite e junta-lhe a tigela de sangue cozido. Depois junta tudo no tacho e o sarrabulho está prontinho”. Depois da aventura do sarrabulho, doces amarelos em forma de barquinhos, papos de anjo de Mirandela. E Casimiro trouxe-lhes café e uma garrafa de bagaço. Reguengos de Monsaraz é uma cidade portuguesa, no Distrito de Évora, na região do Alentejo. Sua produção vinícola é conhecida internacionalmente, com rótulos das vinícolas Vinhos ‘José de Sousa’ (adquirida em 1986 pela vinícola José Maria da Fonseca), da cooperativa Carmim (hoje uma das maiores adegas do Alentejo), Herdade do Esporão (uma das mais antigas propriedades demarcadas do sul de Portugal, em 1267), Monte dos Perdigões (propriedade instituída desde antes do século XV), Ervideira, Adega do Calisto, Monte das Serras, São Lourenço do Barrocal e Luís Duarte Vinhos. Vinhos encorpados que aguentam o sarrabulho de Tabucchi e de Tadeus.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

A caligrafia do vinho de arroz

Encharcado com três copos de vinho de arroz, esse fermentado criado na China há milhares de anos, o calígrafo e pintor chinês Zhang Xu (710-750) partia gritando performaticamente em direção ao papel, pincel em punho, e “escrevia” suas letras com descomunal intensidade. Sua “selvagem” escritura cursiva (kuangcao) impressionava a todos. O “louco Zhang”, em plena dinastia Tang, algumas vezes mais embriagado ainda, realizava sua caligrafia depois de entintar seus próprios longos cabelos. (Body art?) Não à toa Zhang foi tema de um poema do filosófico Du Fu (712-770), um dos maiores entre tantos grandes que celebravam a embriaguez: Tao Yanming (365 ou 372-427), Li Bo (701-726) e Su Dongpo (1036-1101). Du Fu escreveu que as “nuvens no papel” produzidas por Zhang só se formavam a partir do vinho. O nome de Zhang “é comumente citado junto com o de um artista jovem, Huai Su (737-798), um monge budista cujo dinâmico estilo de escrita era inspirado por um pesado consumo de cerveja e vinho, que entrou para a literatura como ‘bêbado Su’”, escreve o sinólogo alemão Thomas O. Höllmann em The Land of Five Flavors (Columbia University Press/2014), um estudo cultural atualizado da cuisine chinesa. Outras referências a caligrafias e poemas inspirados pelos vinhos estão em Celebración de La Embriaguez, um pequeno livro de Jacques Pimpaneau, traduzido para o espanhol por Alícia Sánchez (da Coleção El Cuerno de La Abundancia, editado em 2004 por José J. de Olañera). “O desejo que o espírito possa vagar, ascender a outro lugar, libertar-se do jugo da lógica racional e das preocupações cotidianas e penetrar no imaginário está presente em todas as civilizações”, escreve Pimpaneau logo no início do livro. Um letrado chinês citado por ele diz que o ser humano aspira desenvolver uma habilidade que permita a seu espírito ver as montanhas, o mar e viajar por diferentes lugares, sem se mover. Durante algum tempo, as drogas (o venenoso cinabre, por exemplo) foram esse meio, mas na China o vinho logo prevaleceu como “o melhor liberador para conduzir o espírito ao âmbito do imaginário”. Segundo Pimpaneau, “os chineses também viram outra vantagem: o vinho gerava uma atmosfera distendida, as relações humanas se tornavam mais relaxadas em uma sociedade na qual se impunha a rigidez dos ritos”. Wang Xizhi (321-379), “o sábio da caligrafia”, inspirador do “louco Zhang”, conta no prefácio de Poemas Compostos no Pavilhão de Orquídeas, sobre uma histórica reunião de escritores, na qual “taças de vinho e canções nos permitiam expressar nossos mais fundos sentimentos...” Era início do último mês da Primavera do ano 353. E os poetas e artistas presentes ao Festival de Purificação da Primavera colocavam copos de vinho para flutuar em pequenos meandros construídos a partir de um rio de águas claras, corredor de luz no pé das encostas do Monte Kuaiji, perto da cidade de Shaoxing (justamente a região d o mais conhecido vinho de arroz hoje produzido na China). Vinho que navegava poeticamente até ser resgatado e degustado pelos poetas. As caligrafias semi-cursivas do "enófilo" Wang Xizhi agradavam tanto o imperador Taizong, que este, ao morrer, foi para o mausoléu acompanhado dos originais dos Poemas Compostos no Pavilhão de Orquídeas. Como Zhang, Wang também apreciava a inspiração que vinha do vinho de arroz, mas tinha uma escola muito especial. Conta-se que a chave da sua escrita estava na observação do movimento do pescoço de seus lindos e cultuados cisnes.