quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Vinhedos, livros, encontros

Foi preciso mesmo um amigo cartunista, Jean Galvão (que tem ilustrado com muita perspicácia, humor e carinho os posts de Roda do Vinho), para que eu conhecesse o livro em quadrinhos ‘Os Ignorantes – relato de duas iniciações’, de Étienne Davodeau, lançado no Brasil em 2014, pela editora Martins Fontes. Ao me presentear com o livro, Jean fez um pouco o papel de Étienne, estabelecendo, como o quadrinista francês, conexões entre o mundo dos vinhos e o dos livros. Como Étienne constatou: ‘existem tantas maneiras de fazer um livro quantas de produzir um vinho. Livro e vinho têm o poder, necessário e precioso, de aproximar os seres humanos’.


A HQ Os Ignorantess, de Étienne, mostra o dia a dia do viticultor Richard Leroy, que maneja vinhedos em Rablay-sur-Layon, uma das aldeias ao longo do rio Layon, afluente do Loire. A vinícola de Richard está no coração de Coteaux du Layon, uma Appellation d’Origine Contrôlée (AOC) para o vinho branco doce do Vale do Loire. E aí começa o retrato de um viticultor muito especial: pois Richard Leroy produz grandes vinhos brancos, com a uva Chenin (“a melhor de todas”), mas não são vinhos doces; são vinhos secos. Ele não usa produtos químicos em sua propriedade, adepto que é da biodinâmica. Para a produção dos vinhos doces da região – regra seguida por 95% dos produtores – é permitida a adição de 100 a 180 mg de enxofre por garrafa. O enxofre é comumente usado para a preservação do vinho. Richard usa apenas 20 mg por litro e pensa sempre na inalcançável meta zero.


Para desenhar a sua HQ, Étienne passou muito tempo com Richard Leroy na propriedade de 3 hectares em Rablay. São dois os vinhedos personagens da HQ: Noëls de Montbenault fica no topo da colina, com vista para o rio Layon. Éttienne desenhou Leroy de braços abertos em Montbenault, feliz da vida, conversando com o quadrinista. Nos balões de Leroy lemos: “Ah, cacete, fora de gozação! Você não está sentindo o vento? Estamos em pleno sudoeste! Aqui tem sol e vento o ano todo! Montbenault é um terroir com ventilação impecável. Meu vinhedo está sempre bem, mesmo com sol intenso. No verão ele bate forte nesses pedregulhos, sabia?”


Além de Montbenault, há o Clos de Rouliers, de um hectare, na parte inferior do morro. O solo das duas parcelas, entretanto, como Étienne desenhou, com terra na mão, é composto de riólitos, rocha vulcânica de milhões de anos, um dos orgulhos de Richard Leroy.


 Não foi nada fácil a vida do cartunista nos vinhedos, a começar do importantíssimo ritual da poda das videiras, sempre no inverno, um frio de lascar, em meio até à neve, ritual que vai de janeiro a março. São, afinal, quinze mil pés, encolhidos de frio. O viticultor está, nesse ponto da HQ, com uma providencial barba. (O quadrinista vai reclamar quando chegar a primavera: Richard aparece de cara limpa; ficará mais difícil desenhá-lo. “Sinto que vai sair uma merda. Não quer deixa-la crescer de novo?” A imersão de Étienne nos vinhedos tem sua contrapartida. Richard é levado para conhecer o trabalho da criação e “cultivo” de livros, numa uma editora de quadrinhos. Antes disso, só conhecia mesmo a gráfica que imprimia os rótulos de suas garrafas.


E se Richard levou Étienne para conhecer o trabalho dos toneleiros, os artistas das barricas, dos tonéis, o quadrinista o levou a encontros com artistas geniais, também “envergando carvalho” em suas pranchetas. Na casa de Jean-Pierre Gibrat, Richard ouve o elogio a Moebius (“Mozart e Jimi Hendrix ao mesmo tempo!”) e presta atenção aos dois balões à boca do artista: “ Por que um livro toca – ou não – seus leitores? O que constitui o valor de um autor? É muito misterioso, não é? Gosto dos livros e dos autores que têm identidade forte... e acho que o que constitui nossa identidade são, entre outros, nossos defeitos. Devemos compreendê-los e aceita-los. É como uma cara: um rosto pretensamente sem defeitos não tem graça chateia todo mundo.”

Alguma semelhança quando um enólogo quer fugir do modelo tradicional de sua região?
No início de abril, com sol, mas noites ainda muito frias, viticultor e quadrinista trabalham duro na limpeza dos espaços entre as fileiras de vinhas. O frio pode ser problema para o desenvolvimento dos brotos, como ocorreu na safra de 2008. Étienne conta que não sofre esse stress: trabalha num estúdio onde a temperatura nunca cai para menos de 16 graus. Na HQ e na vida, Étiene provoca Richard a falar sobre seus vinhedos orgânicos. Sim, porque Richard Leroy e sua mulher Sophie não usam nem pesticidas, nem herbicidas, mas recusam-se a usar a identificação de “bio” na sua garrafa. “Quero que as pessoas procurem meus vinhos porque gostam deles”, afirma o Richard da tira, confirmando o da vida real.


 Um dos momentos mais engraçados dessa HQ é justamente quando o desenhista vai a campo para assistir a uma verdadeira aula de biodinâmica, num belo entardecer de junho de 2010. Richard e um vinicultor amigo da vizinhança vão aspergir no terreno a tradicional fórmula “500 P”. “500 P”? O que seria isso? Na verdade, um composto líquido amarronzado que é nada mais do que bosta de vaca que passou o inverno dentro de chifres. Essa prática faz parte da biodinâmica, inspirada nos conceitos antroposóficos do filósofo austríaco Rudolf Steiner (1861-1925), que propõem “uma visão supramaterialista do mundo e das relações entre os seres vivos”. A biodinâmica incorpora os conceitos da agricultura orgânica, acrescentando à rotina dos agricultores considerações sobre os ritmos planetários e lunares e a magia da bosta de vaca. Étienne, como era de esperar, não esconde os traços de seu ceticismo. Richard é desenhado acreditando na fórmula. Mais tarde, convida o quadrinista para outra rodada da “coreografia biodinâmica”, de nebulização, desta vez no sentido de “dinamizar as folhas na direção do céu, na direção da luz”. A receita agora é outra: sílica (em doses mínimas de 3 gramas por hectare). Leroy conta o segredo para a pena de Étienne: “Imagine a sílica como cristais, armadilhas de luz que colocamos sobre as folhas.” Na manhã seguinte, Étienne faz um autorretrato da sua lida: está exausto, aparando e arrancando, com a ajuda de uma espécie de arado, nas trilhas de xistos, o mato que cresceu entre as fileiras.
Étienne se desculpa (só no livro): vai obrigar Richard a largar as vinhas (sem que ele tenha tido tempo de tratá-las antes das tempestades), para algumas horas na rotina de uma editora, em Paris. Na mesa do almoço entre os artistas, a voz de Étienne faz um resumo: “Talvez vinhos e livros também sirvam para isso: se espicaçar tranquilamente.” De volta aos vinhedos, Étienne se entusiasma com um pulverizador, quer desenhá-lo. Para ele, mais parece “um ready made de Marcel Duchamp”. Richard é pragmático: vai usá-lo para tratar o vinhedo com uma calda bordalesa e enxofre, autorizada pela agricultura orgânica.
Com a HQ “ Os Ignorantes” aprendemos tudo isso. Ficamos sabendo também que maio e junho são os meses da desbrota, que consiste em tirar a profusão de brotos, deixando apenas seis em cada pé.

Os desenhos dizem tudo, mesmo para quem conhece a teoria. No fim de junho, é hora de conduzir as videiras para seus caminhos, organizando aquilo que poderia virar uma floresta. E vemos logo as gavinhas se enroscando nos arames. Tudo em ordem. Em agosto, vem a debastação dos parreiras. E, à espera da colheita, Étienne prova os mais diversos vinhos da espetacular adega de Richard: Riesling Rosenlay Auslese Schloss Lieser 1989 e um Château Tropolong-Mondot, Saint-Émilion Grand Cru 1989, por exemplo, para não embebedarmos aqui neste post. É claro que Étienne vai fazer troça de um vinho de Richard. Afinal, esse Noëls Montbenault 2004, “não me diz grande coisa...”. Os dois degustam vinhos enquanto vão dividindo comentários sobre quadrinhos anglo-saxões: “Watchmen”, de Alan Moore e Dave Gibbons, ou “Maus”, de Art Spiegelman, um tanto “bizarro” para Richard (seria uma vingancinha?) No bate-papo, uma conversa sobre resenhas. Richard pergunta: “As modas e o poder da imprensa... vocês também enfrentam isso na HQ?” E Étienne abre o jogo: “Não tanto quanto vocês, decerto... nosso livros são todos “resenhados”. Em HQ, “a verdadeira crítica permanece muito confidencial”


Já tínhamos sabido, nesse ponto, que o viticultor dos secos da uva Chenin, recebera a visita em Montbenault de um representante de Robert Parker Jr., o crítico americano que durante décadas praticamente ditou o rumo do mercado de vinhos finos, especialmente os da França. Richard tem muita reserva em relação ao sistema de pontos de Parker, mas não recusa a visita de degustadores reconhecidos, respeita-os. Até a edição da HQ, os vinhos de Richard Leroy faziam parte do fechado clube dos “mais de noventa de Parker”, ou seja, tiveram nota superior a noventa sobre cem. Étienne deu o devido tom de mistério à degustação do homem de Parker.


 A HQ Os Ignorantes celebra a chegada do mês de setembro, o “mês mais bonito do ano”, quando os vindimeiros freelancers, sazonais, trazem sons para os vinhedos, ao ritmo de “passe o balde” e do balde caindo no cascalho. Há também canções. Richard supervisioniza tudo, vai experimentando como estão as uvas, seu teor de maturação e açúcar. E faz um alerta: não quer ver ninguém colhendo uvas botritizadas, quer dizer, aquelas “podres”, atacadas pelo microfungo Botrytis, que faz o açúcar disparar. Para os vinhos brancos doces da região, a Botrytis é o paraíso. Não para os brancos secos de Richard. Enquanto as uvas vão para os tonéis, Étienne e o vitivinicultor vão para a Bretagna. Depois de um salão de vinhos, se embriagam no Quai-des-Bulles, em Saint Malo, o segundo maior festival de “la bande dessinée et de l'image” da França.


Étiene continua o desenho do mês de setembro: são cenas das barricas, onde as coisas “borbulham, espumam, trabalham, transbordam”. “É o período do ano em que o vinho é um animal. Cheio de energia e ímpeto, enche o lugar com seus humores”. Tudo o que fazem na propriedade Rablay-sur-Layon é “ouvir, cheiras, provar”. Depois será a hora do rótulo, tampa e caixa de papelão... Richard então diz, depois de calcular o tanto de garrafas que conseguiu produzir: “Eu me dou mal todos os anos: antes da colheita digo sim a todo mundo. Depois de um mês, não tenho mais nada para vender.” Étienne tira uma onda: “Em casos desse tipo, nós temos uma palavra mágica: reimpressão!

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