quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Bêlânu e o "vinho da montanha"

"Chegou em Sippar um barco carregado de vinho. Compre-me por dez siclos e, trazendo-o para mim, venha me encontrar em Babilônia”. O bilhete, marcado em um tablete de argila de quase 3.750 anos, é de um negociante babilônio chamado Bêlânu a seu criado Ahuni, que o ajudava a comprar vinhos. Estes chegavam nas caravanas que vinham da região sírio-armênia e também eram encontrados quando desciam o Eufrates – ânforas embarcadas principalmente no porto de Karkemish, cerca de 100 quilômetros a nordeste de Aleppo (a cidade hoje devastada pela guerra civil na Síria de Assad). A bebida era depois revendida na Babilônia. A cotação do vinho, importado que era das montanhas, explica o historiador e assiriólogo francês Jean Bottéro (1914-2007), ainda era um produto de luxo, “reservado aos ricos e grandes deste mundo, e do outro”. Dez siclos correspondiam a 80 gramas de prata, com as quais se podia comprar 2.500 litros de grãos, mas somente 300 litros de vinho. Mas o gosto pelo vinho, seu Bottério, foi contagioso e passou a ser disseminado mesmo numa civilização tão ou mais cervejeira que a egípcia, onde a cevada e o trigo eram seus grãos-motores. De certa maneira, a decifração de milhares e milhares de plaquetas de argila com suas “arranhadas” inscrições cuneiformes, desenterradas da região no final do século XIX, vieram desmentir a lenda que trata do descaso do deus do vinho Dioniso pela região. Este teria desistido de qualquer investida de plantio numa terra de incorrigíveis bebedores de cerveja. Mas o que dizer então do banquete de Assurnasirpal (883-859 a.C.), rei dos assírios? Promoveu uma festa de quase 70 mil talheres e de vários dias para dignatários vizinhos e todos os habitantes da sua nova capital, onde foram servidos 100 mil litros de cerveja, mas também outros 100 mil litros de vinho. Bem antes disso, um documento em argila mostra Uruinimgina, rei da cidade meridional de Lagash, se gabando de ter construído uma adega para guardar seus vinhos, “cervejas das montanhas”. Na parte norte da Mesopotâmia, onde posteriormente até uma viticultura própria se desenvolveu, principalmente no reino de Mari, há registros de classificação detalhada dos tipos de vinho, comparáveis às feitas hoje por enólogos. Os interessados em detalhes sobre a cultura da Mesopotâmia, seus rituais, seus deuses, mas sobretudo seu dia a dia e a relação da sua gente com os alimentos e as bebidas (sabe-se, desde já, que nem só a cerveja e vinho de tâmaras ajudavam na alegria dessa gente), não pode deixar de consultar os textos instigantes de Bottéro, especialmente The Oldest Cuisine in the World – Cooking in Mesopotamia, editado pela University of Chicago Press, mas também os artigos colecionados em No Começo Eram os Deuses, da Civilização Brasilieira, muitos deles publicados anteriormente na respeitada revista L’Historie. Há também Everyday Life in Ancient Mesopotamia, da John Hopkins University Press. Bottéro é o responsável pela transcrição e análise de três tabletes muito especiais, com 40 receitas formuladas em 1700 a.C., pinçados da grande coleção da Universidade de Yale. YBC (Yale Babylonian Collection) é a chancela de especialistas para esses preciosos documentos, que deixam para trás o simples enumerar de ingredientes, menus de festas e contabilidades, para entrar no terreno do “modo de fazer”, receitas 2.000 anos mais antigas que as do famoso gourmand romano Apicius. O "pronto para servir" tão familiar no final das receitas contemporâneas já estava nessas plaquetinhas babilônicas.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Fugacidade de pirilampo

"O mundo realmente precisa de outro livro sobre vinhos?”, pergunta Eric Asimov na primeira linha do seu novo livro... sobre vinhos How to Love Wine – a Memoir and Manifesto (Harper Collins Publishers/2012). A provocação do crítico-chefe de vinhos do New York Times (nada mais do que "o cara dos vinhos", como ele próprio debocha da pomposidade do seu título, responsável que é por uma seção de jornal de um homem só), tem muito a ver com a overdose de publicações do tipo "conheça-tudo-sobre-vinhos-para-não-fazer-feio-na-festinha" ou aqueles ditos livros mais sérios que prometem "desmistificar" a bebida em não mais de 10 capítulos, e que quase sempre caem em desditosas simplificações. Mais que tudo, seu "manifesto" é, como costumam ser seus artigos, um elegante tapa com luva de pelica na crítica esnobe e elitista. Pois, pasmem! Insuspeitadamente, o celebrado crítico Asimov diz, com todas as letras, que não é preciso conhecer nem toda história, nem todo pretensioso jargão, nem toda a parafernália de saca-rolhas e cristais, muito menos os festivais de rankings incensados pelo mercado para ter prazer com o vinho. É claro que reconhece que a companhia do conhecimento pode ajudar na amplificação dos sentidos. Mas diz que isso não precisa vir em primeiro lugar e tampouco pode ser imposição inibidora. Seu livro está mesmo do outro lado do balcão, atestando o mote "a mesa antes do manual", reforçando que o real prazer está em abrir garrafas, de preferência diante de uma comida maravilhosa, compartilhando-as com amigos e familiares. Asimov certamente entende o desafio da crítica e a valoriza quando cumpre seu papel de indicar possibilidades nesse mercado que nunca antes teve tantos e bons vinhos a oferecer. Mas indicar não é, para ele, questão de decretos (só este ou só aquele rótulo, só este châteaux, só aquele produtor histórico, não aquele apaixonado, de garagem) e nem pode se basear exclusivamente em experiências requintadas e especiais. Como distantes estão as garrafas dos melhores e históricos Bordeaux e Borgonhas (cada vez mais raros e caros diante da fúria dos novos-ricos chineses e russos), é preciso mostrar que há vida inteligente, por exemplo, fora dos châteaux e do Velho Mundo. E Asimov admite, sem subterfúgios: o vinho degustado e descrito pelos críticos, o que estes encontraram naquela taça do mais fino cristal, num dia "xis", num salão ou restaurante mais ou menos empoado e estrelado, pode estar anos-luz do vinho bebido pelo mortal apreciador de vinhos em sua mesa informal, com amigos, pães e queijos, numa taça não necessariamente Riedel. Sem contar que a "variação do gosto" pode se dar numa onda ainda mais curta, no período da refeição ou do encontro, quando o vinho é capaz de vibrar e criar surpresas, epifanicamente, com a rapidez e a fugacidade de um pirilampo. DC de 18/1/2013

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Um Mistral chamado Karis

Chefe e roqueiro na juventude, depois médico, o americano Harry Karis tornou-se um especialista nos vinhos de Châteauneuf-du-Pape, histórica região vinícola no Sul do Vale do Rhône, na Provence. Seu livro The Châteauneuf-du-Pape Wine Book, em edição de autor, pela riqueza de detalhes geológicos e climáticos e mapeamento rigoroso das propriedades que somam hoje 3.231 hectares, passou a ser uma obra de referência, avalizada pelo crítico Robert Parker. Ele assina o prefácio e confessa que eram as histórias que gostaria de ter escrito. Para Michel Blanc, da Federação dos Sindicatos de Produtores de Châteauneuf-du-Pape, o trabalho de Karis é visto como uma homenagem às gerações de vignerons da região, que conseguem um excelente produto mesmo enfrentando condições adversas, como os ventos do inverno e o superaquecido verão provençal. Karis ouviu especialistas para descrever de maneira completa o papel do Mistral – "amigo ou inimigo?" – esse vento forte, frio e seco que varre o corredor vinícola do Vale do Rhône e lhe dá personalidade única. Só esse capítulo já mereceria todos os elogios que a publicação tem recebido. O livro de Karis pode ser entendido em duas grandes seções. Uma, com informações gerais da appelation e das cinco municipalidades (commnunes) que a compõem (Châteauneuf-du-Pape, Courthézon, Bédarrides, Orange e Sorgues), percorrendo uma linha do tempo que passa pelos templários, pelos papas de Avignon, pela devastação da peste... Trata também da definição das fronteiras da apelação, estabelecidas em 1937 pelo Barão de Roy, da devastadora Phylloxera que quase põe fim à viticultura européia na segunda metade do século XIX, até os ventos de renovação nos anos 1980 e 1990. Karis faz ainda uma declaração de amor à uva grenache – "a mais hedonística variedada da Terra" – listando as outras 12 cepas permitidas no sutil blend de Châteauneuf-du-Pape (syrah, mourvèdre, picpoul,terret noir,counoise, muscardin, vaccarèse, picardin, cinsault, clairette, roussane e bourboulene). Em Châteauneuf estão tanto as mais antigas vinhas conhecidas de grenache como as ruínas do que foi o castelo dos papas, hoje restauradas e usadas para festivais. A segunda parte da obra traz um grande diretório de vinicultores locais, com o perfil de cada propriedade percorrida por ele e o filho Phil (fotógrafo e designer responsável pelo projeto gráfico do livro) nessa selva de nomes e locais que é Châteauneuf-du-Pape. DC de 11/01/2013