sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Bishop, Ponche, Pudding, Dickens

No final da vida, o grande escritor inglês Charles Dickens (1812-1870), muito requisitado para leituras públicas de sua obra, tinha um remédio infalível para o cansaço e outros males da velhice: batia alguns ovos com Sherry, o vinho que fazia com o Porto a dobradinha da Era Vitoriana. Ou mesmo os misturava ao Champagne. Apesar de ser um degustador comedido, às voltas com ideais de temperança, seus relatos das celebrações do Natal nunca dispensaram um bom copo, delineando sempre os estágios de bebeira de seus personagens, como escreveu o bisneto Cedric Dickens em Drinking with Dickens (New Amsterdam Books/1980). De bêbados incorrigíveis como Maypole Hugh, "capaz de beber um Tâmisa" inteiro, passando por bons bebedores como Bob Sawyer e seu milk punch, até o emblemático Mr. Pickwick, que bebia por prazer, com brindes intermináveis à comilança e à amizade. Um dos relatos dickensianos mais pungentes é o conto A Christmas Carol, de 1843, não à toa escrito na década da invenção do primeiro cartão de Natal. Nessa obra prima de Dickens, o avaro Scrooge é convertido ao espírito natalino depois rever, com a ajuda de fantasmas, os seus vários 25 de dezembro. Simbolicamente, o vinho aguado da infância se contrapõe a um belo poncho, o estalo emotivo no qual Scrooge "se manifesta humano". Ele não só aumenta o salário de seu funcionário como oferece a ele um Bishop, o vinho tinto vertido em laranjas amargas, com especiarias e açúcar. A Dickens era caro a oportunidade proporcionada pelo Natal de reunir as famílias diante de um peru e um voluptuosopudding, das mais pobres às de uma classe média em ascensão. Em outros livros, vemos que o Natal foi inventado ali, em suas páginas, ou pelo menos na sua literatura ganhou mais cor, "foi redefinido", como analisou Simon Callow em Dickens' Christmas– A Victorian Celebration (Harry N. Abrams/NY/2003). Estão lá as velas, as guirlandas, a ceia copiosa, a alegria, o calor, os vinhos, os punchs, os brindes.


DC de 24/12/2010

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Som na caixa, Dioniso

As plantas gostam de música, têm fé os viticultores da DeMorgenzon, uma das mais antigas vinícolas de Stellenbosch, colônia fundada pelo governador holandês Simon van der Stel, em 1679, na África do Sul, durante a conquista do Cabo da Boa Esperança. A área dos atuais vinhedos fazia parte de uma fazenda, a Uiterwyk, cedida a Dirk Cauchet em 1699. Um ano depois, as primeiras videiras foram plantadas. A terapia de música às vinhas foi implantada recentemente, a partir de 2003, quando a propriedade foi comprada pelo casal Wendy e Hylton Appelbaum. DeMorgenzon, ou "Sol da Manhã", foi assim batizada porque suas fileiras de plantas, graças a altitude e geografia, são as primeiras a serem iluminadas ao amanhecer. Pois os Appelbaum espalharam caixas de som por todo o vinhedo e ininterruptamente o expõe principalmente à música barroca. E por que barroca? É um estilo de precisão harmônica e de muita matemática, justificam. A lista de compositores abriga dezenas de nomes menos ou mais conhecidos, de Johann Sebastian Bach a Domenico Cimarosa, de Luigi Boccherini a Georg Friedirich Handel, de Franz Joseph Hayden a Charles Avison. E, não poderia faltar, Wolfgang Amadeus Mozart (veja relação completa no site da vinícola). Os Appelbaum acreditam que os frutos de suas videiras crescem mais saudáveis e com mais vigor graças à música, e têm comprovado no dia a dia da cultura que há conexões entre som, vibrações e a realidade física de seus vinhedos. A prova final são seus respeitáveis vinhos das uvas Chenin Blanc, Sauvignon Blanc e Shiraz, produzidos, antes de tudo, com impecável respeito ao meio ambiente. Wendy e Hylton têm consciência de que os estudos científicos sobre o intrigante assunto ainda são esparsos. Mas já se apegam a algumas pesquisas realizadas pelo mundo, como a descrita na bíblia do casal The Sound of Music and Plant, livro no qual cientistas de Denver, Colorado, demonstram que, com música, as plantas crescem mais rápido. Falam também da semaphore, uma planta que até responde aos estímulos, dançando com harmonia. Sem contar os efeitos da música – e aí já estamos no terreno das aberrações – nos tomates, gigantes de 2 kg nascidos na França, e das beterrabas inglesas que alcançaram 13 kg, depois de "ouvirem" um belo som. Os estudos japoneses, comandados pelo cientista Masaru Emoto, comprovaram que a música tem efeitos positivos nas moléculas de água. Como o vinho tem 80% de água, outro vinicultor da África do Sul, o norueguês Robert Jorgensen, da vinícola La Vigne resolveu é colocar som na própria adega, para que os vinhos nos barris de carvalho recebam a emanação positiva da música clássica. Para que a música chegue a todos os barris e não se perca no caminho, as músicas são executadas em alto volume, som a mais de 90 decibéis.


www.lavigne.co.za

DC de 17/12/2010

domingo, 12 de dezembro de 2010

Eataly, por uma vida melhor

Barricas com frescos vinhos piemonteses, água dos Alpes Marítimos (não sem a beleza de garrafas com design), pastas de grano duro de Gragnano (e de outras regiões de mesa caprichosa), azeite da Ligúria, carne bovina, salames (e uma infinidade de embutidos), queijos de tradição piemontesa, aromáticos manjericões gigantes... É com essa receita de produtos regionais de qualidade, sob a vigilância do Slow Food, que as lojas da grife Eataly têm conquistado seus clientes gourmet e gourmand de todo mundo. A primeira loja Eataly nasceu em Turim, no Piemonte, em janeiro de 2007. Foi montada nas instalações da antiga fábrica do vermute Carpano, no histórico complexo industrial da Via Nizza – não à toa Carpano é hoje o nome do café na Eataly de Turim. Além de pontos de venda em outras cidades italianas – está em Milão, Alba, Gênova – a Eataly chegou a Tóquio e, em meados deste ano, ganhou uma superloja em plena Madison Square, Nova York, maior em área do que a própria loja original, em Turim, com investimentos da ordem de US$ 20 milhões. E se os vinhos têm presença marcante na Eataly, isso se deve à origem de seu criador. Oscar Farinetti consolidou uma carreira bem sucedida de aquisição de vinícolas italianas, culminando com a tradicional Fontanafredda. Hoje também mantém negócios como restaurateur em Nova York. Os vinhos italianos estão todos nas prateleiras da Eataly, não sem referências didáticas. Há ainda ponto para aulas e degustação e mesmo um chef para produzir pratos harmonizados com o vinho tirado nas prateleiras. O consumidor pode ainda escolher a garrafa vazia que mais se adequar à sua sede e se servir de vinho regional, abrindo as torneirinhas da série de tonéis. O passeio a uma das lojas da Eataly é plano para horas. Ao lado de cada uma das seções de alimentos, um restaurante temático aguarda o visitante. A pizzaria ao lado das infinitas galerias de massas artesanais. Um grill para a seção de carnes. Uma biblioteca com títulos de arte e enogastronomia alimenta a alma. O mote da loja? "Comer bem ajuda a viver melhor".

www.eataly.com

DC de 10/12/2010

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Histórias (quase) enogastrocêntricas

Em Aqueles Cães Malditos de Arquelau (Editora 34/1993), o professor Isaías Pessotti faz da ficção um espaço para a defesa do estar à mesa. Seus personagens, pesquisadores na Itália dos anos 60, sempre prontos a decifrar enigmas históricos medievais, não dispensam esse cenário para encontros de paixão e ciência. As genialidades da cozinha temperam o pensamento acadêmico. Não à toa, muitas das preferências enogastronômicas de Pessotti, um especialista uspiano em história da loucura, aparecem com destaque em suas obras. Já escrevi aqui sobre os Barbarescos dionisíacos, os Barberas honestíssimos e os Gattinaras de verdade, presentes no premiado Aqueles Cães..., todos aditivos exemplares de uma boa conversa, no caso em temporadas na Lombardia e no Piemonte. Mas a volta a outros de seus romances históricos, nos leva a mais deliciosas referências. Em O Manuscrito de Mediavilla (1995), nem uma rotineirabruschetta escapa da companhia de uma garrafa de Grechetto ou de Torgiano. Em Lua da Verdade (1997), dietas de conventos e restaurantes se misturam. Desta feita um padre, uma jornalista, um engenheiro e um romancista debatem mistérios de um processo da Inquisição portuguesa e a condenação do heliocentrismo. Estão no menu: Galileu, Tycho Brahe, Kepler... Os pesquisadores estão no navio Provence e já observam a lista de grandes vinhos franceses e italianos. O jesuíta reclama da ausência de vinhos verdes para acompanhar os peixes e dá uma dica preciosa ao romancista, que está a caminho de Évora: beba um Alandra. Em outro momento, diante de um menu com Ossibuchi Bellunesi ("mais vêneto, impossível"), a lombardíssima Faraona Gaieri e um canneloni especial, recheado com abóbora, a escolha de um Chiaretto, da Puglia. "Costumam ser leves, brilhantes, pouco frutados. São até alegres: não têm a sisudez de um Nebbiolo, por exemplo..." Todos do grupo gostaram da escolha e aproveitam para falar dos críticos de vinho, suas encenações e escritos impressionistas. Segundo o engenheiro, estes fazem seus comentários muitas vezes como a paleta dos críticos de pintura: "matizes melancólicos, chiaro-scuro angustiante, luzes e reflexos eufóricos, profundidades agitadas que se contorcem como num espasmo..." E para uma gargalhada geral, o complemento do jesuíta: "...num espamo telúrico, onde, à força primária e instintiva da forma, sobrepõe-se, ainda que tímido, o equilíbrio de uma geometria crepuscular, quase macabra..."


Diário do Comércio de 3/12/2010

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Um blog jeffersoniano

O escritor e historiador James M. Glaber, especialista em Thomas Jefferson (1743-1826) e nos vinhos que encantaram o 3° presidente dos Estados Unidos, acaba de lançar um blog: Wine and Conversation with Thomas Jefferson. Parte para a empreitada com o reconhecimento adquirido como autor de dois livros: Passion:The Wines & Travels of Thomas Jefferson (Bacchus Press/1995) e An Evening with Benjamin Franklin and Thomas Jefferson: Dinner, Wine and Conversation (Bacchus Press/2006). Em 1787, Jefferson, representante americano em Paris, viajou pela França e conheceu os melhores vinhedos. "O que hoje sabemos sobre os grandes vinhos da França do final do século XVIII, sabemos por meio de Jefferson", diz Glaber. O presidente hedonista, fã de Bordeaux e da Borgonha, deixou muitas anotações sobre sua adega e vários registros comerciais de suas aquisições, o que têm alimentado a série de obras sobre o tema. Gabler promete repetir no blog as inferências históricas que tanto lhe deram prestígio. Acredita, por exemplo, que Jefferson acharia o tinto que hoje sai de Bordeaux um pouco mais leve do que o degustado em seu tempo, mas reconheceria nele o tradicional e prodigioso estilo. Provocado pelo blogueiro Tom Wark (Fermentation.com), Gabler diz ainda que Jefferson, que tanto lutou pela aclimatação de vinhedos na sua Monticello, certamente ficaria feliz com o progresso da viticultura nos EUA. E os Cabs californianos estariam sem dúvida na sua adega. No seu primeiro post, ao indicar um Cabernet Sauvignon 2008, da vinícola Seven Oaks, Gabler insere a garrafa num jantar comandado por Jefferson em 1786 na mansão de Champs-Élysées. Também à mesa, o explorador John Ledyart, mais você, leitor.


www.thomasjefferson.net/

DC de 26/11/2010

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Uma omelete e uma taça de vinho

Existem vinhos para pratos (falsamente simples) com ovos? A escritora inglesa Elizabeth David (1913-1992) deixou um pequeno tratado sobre o assunto, artigo originalmente escrito para The Spectator e reunido num de seus livros de sucesso An Omelette and a Glass of Wine (The Globe Pequot Press/1997). Na verdade, conhecedora da posição de vários sommeliers, a de que ovos não combinam muito bem com vinhos (alguns fazem cara feia para o cheiro forte que os ovos deixam na taça), Elizabeth David faz, desde o título, uma das suas deliciosas provocações, defendendo sempre a liberdade das combinações à mesa. Ela conta que ao degustar uma singela omelette no celebrado restaurante Hôtel de la Tête d'Or, no Monte Saint Michel, na Normandia – confecção que demanda tanto uma grande entrega quanto muito respeito aos ingredientes –, não dispensou uma ou duas taças de vinho, que realçaram mais ainda o sabor de seus ovos. Se essa combinação fosse banida das mesas, o que dizer de pratos feitos como uma luva para um bom vinho, mas adereçados com molhos mayonnaise, Hollandaise e Béarnaise? Quando jovem, Elizabeth David viveu na França e estudou na Sorbonne. Mais tarde passou a viajar e escrever sobre gastronomia, o que fez com talento durante décadas. Levou alegria à sua Inglaterra de mesa racionada do pós-guerra, introduzindo delícias da culinária da França e da Itália e os sabores do Mediterrâneo. Ah, a abobrinha! É dela o clássico Mediterranean Food (John Lehmann), publicado em 1950. A cozinha regional francesa sempre foi celebrada em seus escritos, incluindo a ode à omelette, esse prato que encontra ecos e maneiras de preparação diversas em todo o mundo. Elizabeth faz questão de descrever em detalhes o prato de um pequeno restaurante de Avignon, a cidade dos papas, com destaque para a Omelette Molière, que leva na receita a magia dos queijos parmesão e gruyère. Para esse prato de ovos e queijos, Elizabeth defende a participação de vinhos brancos: um aromático traminer da Alsácia, ou um Borgonha branco como o adorável Meursault. Há sommeliers que apostam hoje, resistindo sempre, num Chardonnay mais untuoso e barricado, chileno talvez, para a brava omelette que sai fumegante da cozinha.

DC de 19/11/2010

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

"Arcana alquimia" dos rótulos

Os designers especializados têm elevado os rótulos dos vinhos à condição de obras de arte. É claro que um rótulo deve, sobretudo, conter as informações básicas sobre o conteúdo da garrafa. Mas, com o crescimento e variedade da oferta, tem também o papel de se destacar nas prateleiras. Alguns comparam os rótulos às capas de livros, portas de entrada para uma experiência estética e de prazer. O inglês Peter F. May, "embaixador" da uva Pinotage e colecionador incansável de rótulos (é autor de Marilyn Merlot and the Naked Grape/Quirk Books/2006), acredita que os vinicultores devem apostar mais na graça e na alegria intrínsecas de seu produto e espelhá-las já nos rótulos – qualidades que enriquecem o rito da degustação e em nada atrapalham a avaliação enológica da bebida. A jovem escritora Tanya Scholes lançou no mês passado um livro ilustrado com rótulos inovadores de cerca de 250 vinícolas, que ampliam nossa visão sobre o tema. The Art and Design of Contemporary Wine Labels (Santa Monica Press/2010) conta a história dos rótulos desde seu início utilitário até o papel estético de hoje, numa sociedade mergulhada em visualidades. "Confrontados por milhares de opções, o passeio por um empório pode se tornar uma verdadeira Odisseia", escreveu o designer Jeffrey Caldway, fundador do Icon Design Group e coautor do referencial Icon: Art of Wine Label(Wine Appreciation Guild/2006), para elogiar a importância do trabalho da coleção comentada de Tanya: ela acende uma luz sobre a arcana alquimia dos rótulos.


DC de 13/11/2010

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Na Massália de Pítias

Um mapa estudado com lupa por Barry Cunliffe, professor de Arqueologia Europeia da Universidade de Oxford, mostra como o comércio de vinhos foi importante no crescimento de Massália (a atual cidade de Marselha, na França) – colônia portuária fundada em 600 a.C. por gregos da Phoacea. Os pontos pretos indicam os locais onde arqueólogos de várias expedições escavaram ânforas de vinho com o mesmo desenho das usadas comumente pelos mercadores e comerciantes de Massália, entre 540 e 350 a.C. Análises da constituição petrográfica da argila dessas vasilhas também ajudaram a indicar a localização das olarias originais. A maior parte dessas ânforas foi resgatada na faixa de terra entre Ampurias e Nikaia (Nice), colônias vizinhas criadas depois de Massália. Mas alguns desses potes de argila "viajaram surpreendentemente para longe, para a costa da Itália, com concentração nas imediações da Baía de Nápoles, para o sul da Sicília e ao longo da Costa ibérica", escreveu Cunliffe no seu livro The Extraordinary Voyage of Pytheas the Greek (Walker & Company/2001). Pítias, o famoso massaliense que hoje tem merecida estátua bem em frente ao prédio da Bolsa de Marselha, foi um aventureiro grego que navegou não só pelo Mediterrâneo, mas pelas costas do Atlântico, alcançando as ilhas britânicas e terras geladas da Escandinávia. De suas detalhadas "crônicas científicas", reunidas na obra Peri tou Okean (No Oceano), por volta de 320 a.C., restaram somente citações em livros de 18 escritores nos séculos posteriores, como o geógrafo grego Strabo. A vocação de Massália para o comércio vem de vários séculos anteriores a Pítias. Ânforas etruscas e utensílios para bebidas datadas de c. 650 a.C. foram encontradas em grande quatidade no delta do Rhône, bem na boca do rio, uma rota importante para o vinho, o sal, produzido em larga escala, e jóias criadas com corais, caminho em direção às terras bárbaras do Norte. Pítias ainda era menino quando Aristóteles elogiava as regras jurídicas e políticas da colônia e o Conselho formado por 600 homens, que elegiam outros 15 para levar adiante os negócios do austero governo. Funerais ostentatórios e roupas de casamento luxuosas eram proibidos, assim como o vinho para mulheres e exageros no consumo geral da bebida. Em compensação, relata Cunliffe com ironia, aqueles que desejassem cometer suicídio podiam submeter seu pleito ao Conselho (Timouchoi). Se julgado procedente, recebiam da cidade de Massalia, sem custo algum, a dose letal exata de cicuta.


Diário do Comércio de 5 de novembro de 2010

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Eleições de Saintsbury

O inglês George Saintsbury (1845-1933), depois de se educar em Oxford, dividiu sua vida entre o jornalismo e o ensino. Professor de literatura da Universidade de Edimburgo, produziu centenas de artigos e obras acadêmicas (entre elas Primer of French Literature e History of Elizabethan Literature). Mas entrou para a posteridade graças a um pequeno livro, Notes on a Cellar-Book, publicado em 1920, escrito aos 75 anos, já durante a aposentadoria – obra que reúne notas, menus, lembranças e opiniões tendo os vinhos de sua adega e inesquecíveis jantares como pontos de partida. A obra foi reeditada pela Universidade da Califórnia em 2008, agora com introdução de Thomas Pinney, importante estudioso do vinho nos Estados Unidos e autor de History of Wine in America. Notes on a Cellar-Book é a primeira obra do gênero escrita na Inglaterra, fundamental para quem gosta tanto de vinhos como de livros. Longe de um compêndio técnico, Notes... é um poético e curioso tributo à bebida que acampanhou Saintsbury durante toda a vida, desde os tempos de Oxford. Ele dizia que não havia dinheiro entre o que gastou desde que começou a ganhar a vida que lhe trouxe mais retorno do que o empregado nos líquidos relacionados no livro. O autor transita do Romanée-Conti a cervejas com muita tranquilidade. Mas há capítulos especiais para os grandes vinhos de sua época: Claret (Bordeaux), Champagne, Borgonha, Porto, Sherry e Madeira, todos comentados com seus nexos históricos. O relato sobre o Xérès que o acompanhou e a muitos londrinos do fim do século XIX é quase uma ode ao vinho "nem tão austero nem tão adocicado", "para todas as ocasiões". Não é à toa pois a homenagem feita pelo escritor André Simon, que fundou em Londres o Saintsbury Club. Seus associados se reúnem duas vezes ao ano, desde 1931 até hoje, para celebrar o seu grande patrono.

DC de 29/10/2010

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Verão de ceifadores em Colmar

O ataque ao vinhedo experimental em Colmar, na Alsácia, Nordeste da França, foi no início da noite de 15 de agosto. Tudo muito rápido, como descreveu o repórter Ben O'Donnel, do site da revista Wine Spectator. Não demorou nem 20 minutos para que cerca de 70 ativistas do grupo Les Faucheurs Volontaires (Ceifadores Voluntários) arrancassem e destruíssem 70 videiras, plantadas em área do Instituto Nacional Francês de Pesquisa Agrícola (INRA), na medieval cidadezinha de Colmar. O vinhedo era a base de uma pesquisa de sete anos, destinada a encontrar soluções para combater uma doença que ataca as videiras e tira o sono dos viticultores em várias regiões produtoras do mundo. Vermes microscópicos, os nematóides que vivem às custas das vinhas são vetores do vírus court-noué (fanleaf), que reduz o rendimento das parreiras, mata plantas, arruína o solo e pode dar origem a uma verdadeira praga. Com a destruição dos vinhedos de Colmar, perdeu-se parte importante de um projeto que já havia consumido 1,2 milhão de euros. No centro da polêmica a natureza dessas videiras, com suas raízes geneticamente modificadas, dotadas de genes resistentes ao vírus. Os ativistas do Les Faucheurs Volontaires lutam contra todos os alimentos geneticamente modificados (e contra o globalizado Carrefour também!). Segundo os ativistas, ainda faltam testes que mostrem sua inofensividade. Têm medo também que o vírus se torne resistente e/ou que as plantas modificadas acabem se alastrando para a vizinhança. Os cientistas garantem que a pesquisa é absolutamente experimental e faz parte de um projeto com várias outras alternativas de combate ao fanleaf. A Alsácia vem enfrentando problemas com seus belos vinhedos desde a Idade Média, quando estes foram enfileirados às margens do Reno. Muitas guerras e invasões foram motivadas também pelo terreno estratégico, arduamente disputado entre franceses e alemães. Numa outra direção, o imperador Napoleão Bonaparte simplesmente os repartiu entre amigos sem nenhum dom para esse empreendimento agrícola que requer muita dedicação. Recuperados no Segundo Império, os vinhedos foram dizimados com os prussianos de Bismarck, em 1870. Quem conta esse "vaivém França-Alemanha" é o jornalista e crítico Renato Machado em seu livro Em Volta do Vinho (Editora Globo/2004). Hitler chegou a anexar a região em 1940, Alsácia que voltou aos franceses no final da Segunda Guerra. A última investida contra os vinhedos foi essa promovida na cidadezinha de Colmar, onde o INRA tem seu vinhedo experimental – a Colmar da uva Riesling, que já foi chamada de gentil aromatique.É com ela que a Alsácia faz vinhos brancos que, como diz Renato Machado, são verdadeiras obras de arte.

http://www.inra.fr/

http://www.winespectator.com/webfeature/show/id/43586

Diário do Comércio de 22/110/2010

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Bordeaux, segundo ingleses

Os ingleses conhecem bem os vinhos franceses, principalmente os de Bordeaux. O crítico e historiador Hugh Johnson é um dos entusiastas mais respeitados, com obras de referência editadas em várias línguas, como seu inestimável atlas do vinho. É idealizador e consultor também de uma das revistas mais elegantes sobre a matéria, The World of Fine Wines, preciosidade com quatro edições anuais. Agora está às voltas com guias das mais importantes regiões vinícolas do mundo. Depois das obras sobre Champagne e Toscana, acaba de ser lançado The Finest Wines of Bordeaux (Aurum/2010), escrito por James Lawther, que vive na região desde 1995. As imagens são de Jon Wyand, fotógrafo que há mais de 30 anos viaja pelos vinhedos de todo globo. Bordeaux tem 118.900 hectares de vinhedos, 9.100 viticultores, que produzem um total de 640 milhões de garrafas por ano, segundo dados de 2008. Produção que vem caindo e se modificando nos últimos anos. Os rígidos parâmetros da classificação de 1855 estão sendo revistos a cada safra. Para Hugh Johnson, é preciso mostrar esse novo cenário: quem produz hoje os melhores vinhos, em quais distritos e châteaux, com qual tecnologia e, importante, com qual filosofia. James Lawther escreveu que suas escolhas são apenas "um microcosmo de Bordeaux", mas não tem dúvida de que refletem as práticas de vinicultores quem têm cuidado especialmente dos vinhedos, das frutas, mais do que aqueles que investem apenas em tecnologia ou em outra mania da viticultura do século XXI: as adegas em estado de obra de arte. Há nesse guia de Bordeaux, além dos perfis dos châteaux e de seus proprietários, uma introdução histórica que não esquece que Bordeaux já foi inglesa – de 1152, ano do casamento do futuro rei Henrique II com Eleonor da Aquitânia, até 1453, quando o rei francês Charles VII venceu John Talbot, comandante do exército inglês. Foram nesses séculos que o claret conquistou os ingleses. O vinho era presença marcante nas águas do Canal da Mancha e, diferentemente de hoje, tinha de ser consumido rapidamente.

DC de 15/10/2010

O tempo e o vinho em Matt Kramer

Os maiores vinhos não são grandes pelo poder que têm de nos subjugar, e sim por sua aparente infinitude. A frase é de Matt Kramer, que escreve sobre vinhos há mais de 30 anos e desde 1985 é colunista titular da revista Wine Spectator. A citação pode ser garimpada no livro Making Sense of Wine, de 1989, que ganhou no Brasil o título de Os Sentidos do Vinho (Editora Conrad/2007) – um clássico da literatura do gênero. Escritor de extensa obra, sempre com um coração na Itália, Kramer vive em Portland, Oregan (EUA). Acaba de lançar Matt Kramer on Wine (Sterling Epicure/2010), uma atraente coleção de colunas, ensaios e observações – textos que têm como fio condutor o tempo do vinho. "Tudo sobre vinho, especialmente o vinho fino, envolve o tempo", escreve Kramer. De certa forma avesso ao império efêmero das cotações (as safras se sucedem com novas e novas garrafas e a apreciação sempre tem o forte componente da memória individual), o autor selecionou justamente o material que venceu o tempo datado, em análises que privilegiam as circunstâncias perenes do vinho, como gostava de dizer Sérgio de Paula Santos. Kramer é sensível ao ritmo das estações e da produção – tempo que iguala o mais rico dos vinicultores ao mais pobre dos agricultores. Todos têm de esperar (e rezar). O autor gosta de outra ideia na mesma linha: se alguém quiser provar um grande vinho maduro, "terá de esperar trinta, quarenta, cinquenta anos necessários, não importando sua ambição ou conta bancária". "Somente o tempo pode fazer o vinho maduro". No campo da degustação, Kramer ajuda o leitor a lidar com um aparente paradoxo do vinho: a "infinita" complexidade de um item com destino (digamos, com tempo de vida) mais ou menos pré-determinado. Ele diz que a própria degustação do vinho precisa de tempo, de conversa e pode ser enriquecida com parâmetros herdados do conhecimento. Cursos de imersão? "Não funcionam". É fundamental "amadurecer". E para isso é preciso ler, viajar por regiões produtoras, experimentar vinhos não ranqueados, de uvas menos badaladas, ouvir a voz de viticultores, de enológos e até mesmo de críticos.

DC de 8/10/2010

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

O guia amoroso de Laura Catena

Laura Catena é filha de Nicolás Catena, vinicultor que revolucionou o vinho argentino a partir dos anos 80, colocando-o nas mesas do mundo inteiro, graças a investimentos na busca de qualidade – determinação inspirada no ítalo-californiano Robert Mondavi (1913-2008) e seu império no Vale do Napa. Laura Catena é hoje uma espécie de embaixadora da vinícola do pai, Bodegas Catena Zapata, e grande representante da nova geração de produtores da Argentina. Apaixonada por sua Mendoza – dessa província com cerca de 1.500 vinícolas saem cerca de 70% da produção de vinhos do país – e pelos Malbec ali aperfeiçoados por gerações de viticultores desde o século XVIII, a mãe e médica Laura Catena divide o seu tempo entre o marido, seus três filhos, a sala de emergência de um hospital em San Francisco e seus próprios vinhos, sob a marca Luca. Ainda teve tempo de escrever um dos mais cativantes guias de vinho e da cultura gastronômica de sua terra: Vino Argentino (Chronicle Books/2010), lançado este ano nos EUA. “O vinho definiu minha vida”, escreve Laura, da quarta geração de uma família de vinicultores de origem italiana, baseada em Luján de Cuyo. Um dos ritos de passagem da criançada era a permissão descontraída para um gole de vinho tinto misturada à soda, que saia barulhenta de sifões implantados em garrafões de vidro colorido. O bisavô de Laura fundou a Catena em 1902. Aproveitou-se da escalada comercial proporcionada pela inauguração, em 1882, da ferrovia Mendoza-Buenos Aires, que fez da região o epicentro da indústria de vinhos da Argentina. Cem anos depois, foi a vez do pai Nicolás estudar o terreno de Mendoza como nunca, até chegar à conclusão de que o melhor terroir estava nos terrenos mais altos e mais próximos da Cordilheira dos Andes. Laura conta com detalhes essa história sem esquecer de outros produtores importantes da região. Ela também faz uma ode ao Malbec e ao asado , com dicas de restaurantes e mesmo boas receitas. Por que não tentar uma saltenha?


http://www.catenawines.com/

DC de 1/10/2010

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

A polida mesa da rainha

Estamos a alguns dias do banquete que sua majestade a rainha Elizabeth II oferecerá ao presidente da França, Nicolas Sarkozy, e sua mulher Carla Bruni, no Castelo de Windsor, festa para 158 convidados. Os preparativos são muitos, das despensas à cozinha, das adegas aos salões. Uma funcionária já está destacada para dar forma aos impecáveis guardanapos de linho. Um dos serviçais tira os sapatos e, com um pequeno escovão, lustra o tampo da monumental mesa de madeira, de 53 metros de extensão, que fica bem no centro do Hall St. George. Toda revestida de mahogany cubana, a mesa é polida para ficar como espelho. As porcelanas, os talheres, o conjunto de taças, os arranjos de flores e os candelabros têm sua beleza multiplicada na mesa de Windsor. Nas adegas, a missão é separar os vinhos de acordo com o menu aprovado pela rainha. São contadas duas garrafas para cada 10 convidados, fora o Champagne dos brindes. No dia do banquete, bem ao gosto dos ingleses, a tarefa é decantar o vinho tinto e o vinho do Porto, "condecorando" posteriormente as jarras e os decanters de cristal com trabalhados colares de identificação. Banquetes em Windsor eram de praxe na era vitoriana. Hoje o Palácio de Buckingham é o palco mais frequente para receber os visitantes. Sua adega, do século XVI, abriga 25 mil garrafas, incluindo relíquias como quatro garrafas de Malmsey de 1850 e uma de Sherry de 1660. Na adega de Windsor repousam outras 5 mil garrafas. "Até o século XIII, apenas vinho inglês era servido na corte", escreve Kathryn Jones em For The Royal Table – Dining at the Palace (Royal Collection Publications/2008), quer trata dos segredos enogastronômicos dos reis ingleses. Hoje estão disponíveis tanto vinhos do Velho Mundo como do Novo Mundo. Para celebrar a vitória contra Napoleão Bonaparte, George IV promoveu uma recepção relâmpago em Londres, preparada e executada em 8 dias, tendo como convidados o imperador da Rússia e o rei da Prússia. O banquete em Windsor para Sarkozy foi planejado sem pressa – foi o 97° banquete comandado por Elizabeth II até aquela data, 26 de março de 2008. No menu de quatro pratos, filé de rodovalho, noisettes de cordeiro acompanhadas de alcachofras, favas, cenouras, couve-flor e batatas. De sobremesa, torta de ruibarbo com creme de baunilha e frutas. Nas taças posicionadas como batalhão de cristal na brilhante mesa de madeira foram servidos Chassagne-Montrachet 2000 e Château-Margaux 1961. Para o brinde, champagne Louis Roederer. Outros tempos, mas boa retribuição à diplomacia francesa, que em 1520 recebeu Henrique VIII em Calais com um fonte de onde jorrava vinho à vontade.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

La Voce ecoa em Come Fly With Me

Crescem na etrusca Fiesole, ao lado de Florença, as uvas com as quais a vinícola Sinatra Family States, com base no Vale do Napa, elabora seu supertoscano La Voce, uma homenagem mais que elegante ao cantor ítalo-americano Frank Sinatra (1915-1998). A primeira garrafa, da safra 2008, acaba de ser lançada graças a uma parceria entre os filhos de Sinatra (Tina, Nancy e Frank Jr.) e os enólogos John Schwartz (Amuse Bouche Winery) e Danielle Price (Coup de Foudre Winery). O La Voce foi apresentado por Nancy e Amanda Erlinger (uma das netas de Sinatra) no final de agosto, durante uma viagem do Napa Valley Wine Train, que cruza com requintes de um "Orient Express da Califórnia" 58 quilômetros dessa que é uma das mais belas e importantes regiões produtoras de vinho dos Estados Unidos. Os convidados a bordo conheceram o La Voce diante de um cardápio preparado pelor Kelly Macdonald, que desde 2001 é a chef executiva desse sofisticado resturante-locomotiva. La Voce foi um dos primeiros e mais marcantes apelidos do cantor e agora aparece no rótulo desse tinto produzido com uvas autóctones da mais que toscana Fiesole, a onipresente Sangiovese (92%) e a Colorino (8%). As frutas desse vinho nascem num pedaço de terra mínimo, de não mais de três hectares, e geram limitadíssimas 250 caixas. De Fiesole se tem uma das vistas mais deslumbrantes de Florença, panorama que encantava o pintor Fra Angelico (1387-1455), interno em um dos monastérios da terra. Gertrude Stein e Alice B. Toklas, depois da Primeira Guerra, gozaram inúmeros verões em Fiesole. Além da novidade La Voce, os Sinatra já mostraram a que vieram com seu distinto e encorpado Cabernet Sauvignon Come Fly With Me, safra 2007, vinho batizado com o nome da primeira canção de sucesso na BillBoard, em 1957, feito com uvas de vinhedos ao sul de Calistoga. As poucas garrafas dos cabernets dos Sinatra ganharão a cada safra o título de uma das canções do pai. O Cabernet 2008 é Nothing But the Best, mas esse vinho já está esgotado.

http://www.sinatrafamilyestates.com/

DC de 17/09/2010

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Homo Imbibens

Patrick E. McGovern é um arqueólogo biomolecular da Universidade da Pennsylvania que viaja o mundo atrás das mais remotas evidências da produção de vinho e cerveja, visitando sítios arqueológicos de cidadezinhas perdidas na imensidão chinesa ou escavados nas grandiosas montanhas iranianas. Quando não está em campo, está mergulhado no sofisticado laboratório da universidade, examinando potes e ânforas milenares, peças que guardam menores que microscópicos resquícios de outras civilizações e que têm ajudado a compor a trajetória alimentar do homem. Numa cerâmica de 7 mil anos, retirada das montanhas Zagros, no Irã, identificou, com técnicas de DNA, o vinho de uvas mais antigo já encontrado numa cozinha neolítica. Em Jiahu, província de Henan, norte da China, um vinho fermentado de várias frutas era preparado com sofisticação há cerca de 9 mil anos. Seus livros se tornaram referência dos historiadores – o mais recente, Uncorking the Past (University of California Press/2009), traça um panorama completo das descobertas na área. Mais do que uma linha do tempo, entretanto, McGovern alimenta e vai desvendando o que chamou de Homo Imbibens, mostrando que o álcool ocorre na natureza desde as profundezas do espaço e esteve presente no caldo primordial que pode ter gerado a primeira vida na Terra. A essa visão com gosto de metafísica, mas emprestada da Astronomia, soma a da Antropologia, mostrando que os primeiros hominídeos e chimpanzés tiveram um poderoso incentivo a se empanturrar de frutas fermentadas e outras fontes ricas em açúcar, como o mel, aproveitando ao máximo os frutos só encontrados numa estação. "Era uma excelente solução para sobreviver num ambiente geralmente hostil e pobre de recursos", escreve McGovern. É da lavra do arqueólogo a "hipótese paleolítica" ligada ao vinho, já que não tem dúvidas de que o homem "descobriu" o suco de frutas fermentadas, "apreendeu seus êxtases e perigos", centenas de milhares de anos antes dos primeiros assentamentos e domesticação de plantas e animais. Diz que em algum momento da pré-história, uma criatura não diferente de nós, com olhos sensíveis a frutas supercoloridas, um gosto para açúcar e álcool, e um cérebro familiarizado com os efeitos psicotrópicos da bebida, se moveu da inconsciente procura de frutas fermentadas, como faziam os macacos bêbados, para a produção e o consumo intencionais. Ao levar as uvas de plantas silvestres (Vitis vinifera ssp. sylvestris) das florestas do Cáucaso (muitos estudiosos acreditam que a planta é nativa dessa região do planeta) para sua caverna, o "milagre" se consumou. Frutas maduras transportadas em recipientes de madeira ou em odres primitivos, violentamente sacudidas, liberavam a substância natural presente nas cascas para o início da fermentação. McGovern acredita que dessa forma nasceu um vinho de baixo teor alcoólico, disputado pelos homens das cavernas. A partir da observação, trataram de repetir a experiência. "Era uma espécie de Beaujolais Noveau" da Idade da Pedra, arremata o arqueólogo. O cartunista Leo Cullum tratou de celebrar a experiência pré-histórica: desenhou dentro de uma caverna, três degustadores de então. E um deles proclama como um connoisseur , depois de experimentar a poção natural: "Estou sentindo notas de um fofo mamute!"

DC de 10/set/2010

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Púrpuras no Mediterrâneo

Os fenícios tingiam de vermelho o Mediterrâneo, empinando barcos com proas de cabeça de cavalo – assim estão representados na parede do palácio de Sargon, em Khosabad, do século VII a.C. Os gregos invejavam os mantos desses antigos homens do mar, roupas de cor púrpura, de pigmentos extraídos do Murex trunculus, molusco em profusão nas águas que banham sua terra de origem, na faixa hoje correspondente ao Líbano e à Síria – "a tripa que corre entre montanhas e o mar", como escreveu o historiador Fernand Braudel em Les Mémoires de la Mediterranée. Na carga dos navios, produtos para serem comercializados no oeste desse mar, outros púrpuras, ânforas de vinho que testemunham a dimensão do comércio que regiam. Arqueólogos submarinos comandados por Robert D. Ballard, o mesmo da descoberta do Titanic, têm corroborado as teses do grego Heródoto (c.485–420 a.C). O historiador e geógrafo escreveu que os navios fenícios tinham os melhores marinheiros, sendo os de Sidon, os melhores entre os fenícios". Os arqueólogos acreditam nessa habilidade: um dos navios de descoberta mais recente, de 2.800 anos, empreendia a seguinte rota: zarpava do porto de Tiro, parava em Ashkelon e seguia rumo ao Egito ou especificamente para Cartago, Norte da África. Numa das viagens, um poderoso vento leste tirou o navio da rota e a embarcação naufragou na costa de Israel. Robôs com câmeras fotográficas registraram no fundo do mar uma espantosa carga de 400 ânforas de vinho. Andrew Dalby, em Siren Feasts ( Routledge/1996), conta que, nessa época, os egípcios produziam tintos e brancos, mas em pequenas quantidades, e tinham de importar de gregos e fenícios. Na 'História de Sinube' , uma narrativa do segundo milênio a. C., um egípcio em visita a Biblos elogia toda a Fenícia, onde o mel é abundante e onde há mais vinho do que água".

DC de 3/09/2010

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Taça ardente dos românticos

Os escritores românticos faziam do vinho suas metáforas mais ardentes e atormentadas. Em Fausto, de J.W. Goethe (1749-1832), flui o vinho da tentação mefistofélica, o “balsâmico sumo das uvas” que turba a razão. Em O Sofrimento do Jovem Werther, o jovem da fatal desilusão amorosa traz a taça de vinho nas mãos em consumação exagerada, acompanhante do aturdimento. Goethe, escritor de Fausto, poeta e também cientista, foi o último renascentista da Alemanha. Com um detalhe: estava extremamente envolvido com os vinhos. Gostava dos feitos na região do Reno, que aprendeu a gostar desde a infância, com o próspero avô, comerciante de vinhos. O Reno e seus vinhedos sempre compuseram também a paisagem sentimental de Friedrich Hölderlin (1770-1843), como anotou Miguel Ángel Muro Munilla no estudo El cáliz de letras: Historia del vino em La literatura (Fundación Dinastia Vivanco/2006). Em 'O Retrato do Avô', o poeta Hölderlin (na gravura central) descreve os vinhedos plantados na colina da sua terra natal, Lauffen am Neckar, e fala do vinho – esse “fogo ancestral e puro” capaz de unir gerações. Para ele, era preciso que até as crianças pequenas experimentassem esse produto de esmero do homem e sua terra. Na Alemanha de fundação, a pátria para onde sempre retorna o viajante, como escreve Munilla, “não há colina sem uma vinha”. Até a Grécia clássica que ilumina a poesia de Hölderlin aparece sob a reverência que este faz a Dioniso/Baco, o deus do vinho que também é o deus mais próximo da poesia – um Baco que triunfa pela alegria. Em seu canto “a nossos grandes poetas”, Hölderlin conclama seus pares a saírem da letargia por meio do vinho sagrado e báquico. Em Bonaparte, “ídolo da individualidade e do gênio romântico”, Hölderlin escreve: “Os poetas são como ânforas sagradas/que guardam o vinho da vida,/ a alma dos heróis.” A leitura do livro do espanhol Munilla é um guia fundamental para quem pretende conhecer a presença e a influência do vinho na obra de escritores e poetas de todos os tempos, desde o primeiro vinho épico, o mesopotâmico Gilgamesh, aos escritores modernos, com destaque para bens explorados textos dos literatos da terra de Cervantes.

DC de 27 de agosto de 2010

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Esnobes de plumagem eriçada

Quem está entrando agora na fascinante roda do vinho não pode deixar de conhecer um guia diferente de todos os outros – The Official Guide to Wine Snobbery (Barricade/2003), de Leonard S. Bernstein. O livro pode ser lido de duas maneiras: como manual para compor coro com as aves raras das salas de degustação (capazes de “eriçar a plumagem verbal” diante de uma boa garrafa de Cabernet Sauvignon, diz a crítica Natalie MacLean) ou feito crítica às afetações e salamaleques que podem ser evitados sem prejuízo dos ritos do vinho e de todos os seus prazeres. “Limpar o palato” com um pequeno pedaço de pão é a senha de entrada na fraternidade, escreve Bernstein, que valoriza essa prática para o bom desfrute da bebida. Recomenda com humor: nunca anuncie “estou limpando meu palato”, pois vai soar como um gargarejo à base de Listerine. O ponto alto para o esnobe, escreve Bernstein, o palco onde pode brilhar sem inibição, é no ritual da decantação. Decantar o vinho, cerimônia que os ingleses sempre levaram à risca com seus vinhos do Porto e Clarets, tanto serve para remover borras de tintos de longa guarda, como simplesmente para deixar a bebida respirar. A sofisticação estética fica por conta do anfitrião, na escolha de um belo decanter – as casas de cristais criaram peças magníficas – combinado com uma rústica vela. Há algo mais teatral do que identificar a chegada dos resíduos iluminando a garrafa por trás? O autor considera também outra regra a ser enfrentada na vida e nos salões, a de que somente os vinhos envelhecidos são vinhos apreciáveis. Para isso, maneja uma metáfora cheia de arte: um colecionador pode ter um valorizado Jackson Pollock para mostrar ao vizinho, mas vai ter também um Rembrandt na sala. “Não estamos falando de dinheiro, mas de tradição, idade.” (Pergunto: não há tradição na degustação de vinhos recém saídos do tonel, o viticultor piemontês abrindo seu honesto Barbera ainda com um quê de fermentação, colocando na mesa rústica a massa trufada e a carne de caça como faziam seus antepassados?) Bernstein lembra que os esnobes estão atentos aos dilemas das harmonizações (podem até cair em esparrelas: afinal, que molho escolher para o pato no Lutèce? Laranja ou Framboesa?) O fato é que são facilmente reconhecíveis, incapazes de disparar “Chambertains aqui , Musignys acolá”, sem citar também Troisgros pra lá e prá cá e um Bocuse a cada meia hora de conversa.

Diário do Comércio de 20/08/2010

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Vinhos rutilantes de Homero

Se o leitor se aventurar na paisagem altiplana entre a “urbe-de-muitas-ruas” e o oceano “ensimesmado” – de um lado Tróia “de belos muros”, de outro, naus gregas multirremes ao mar Egeu “altissonante”–, vai se deparar não só com valentes soldados gregos de “belas cnêmides”, troianos de “elmos crinifúlgidos” e destroços da guerra sanguinária animada por Ares, mas também com semi-deuses e homens de verdade diante de sacrifícios, festas, hospitalidade, ensinados pelo grande Zeus, o "ajunta-raios". É na Ilíada e Odisséia de Homero, poemas recitados a partir de 800 a.C. e até hoje apreciados, que estudiosos encontraram detalhes das experiências enogastronômicas desses povos. Uma comovente passagem da Ilíada, cravada como "ínclita" lança em alguns de seus 15.693 versos, foi destacada por Veronika Grimm em Food - The History of Taste (University of California Press/2007), livro organizado pelo historiador Paul Freedman: versos contam como o irado Aquiles, “pés-velozes”, preparou ovelha e serviu pães e vinho ao troiano rei Príamo, quando este veio reclamar o corpo do filho Héctor. Decidido o resgate em franca conversa de valentes, Aquiles diz: “Pensemos na ceia agora, ancião. A Tróia, depois, levando o filho, o poderás prantear, fonte de multilágrimas.” Nenhum outro autor da Antiguidade tratou com tanta força da dupla carne e vinho. Seus bravos heróis não podiam lutar de estômago vazio. Depois dos sacrifícios aos deuses, a carne era dividida, colocada em espetos e assada para todos. Após as devidas libações, grandes taças de vinho misturado com água tomavam conta dos banquetes. Homero descreve os vinhos doces e as poções revigorantes: o kykeon levava escuro vinho da Pramnia, cevada, mel e queijo de cabra ralado. Laódice, rainha de Tróia, acreditava que o vinho animava o homem exausto. Mil medidas de vinho de Lemno enviou o filho de Jasão a Agamêmnon e Menelau. Aos demais aqueus, vinho era vendido ou trocado por bronzes, ferros polidos, bois vivos, peles e escravos. Quando Odisseu "multiastuto" visitou Aquiles, ganhou boa recepção: “'Depõe sobre a mesa, ó Menéside, a maior das crateras, mistura o mais puro vinho, uma copa dá para cada um dos hóspedes: estão sob o meu teto os que me são mais caros!' Pátroclo obedeceu. Dispôs à luz do fogo uma larga travessa, com lombo de ovelha e costado de cabra gorda e um suculento dorso suíno." Até que a gula por comida e vinho fosse “expulsa”. (Os epítetos aqui usados são da tradução da Ilíada de Haroldo de Campos, como Homero, "o-que-ajusta-o-canto".)

Diário do Comércio de 13/08/2010

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Hemingway era uma festa

Foi em pleno mar do Caribe, a bordo do barco El Pilar, sintonizando informações meteorológicas, que o escritor Ernest Hemingway (1899-1961) ficou sabendo que ganhara o Prêmio Pulitzer com o livro O Velho e o Mar, publicado um ano antes, em 1952. Fugindo do costume, teve de comemorar a notícia a seco. Mary Hemingway conta em How it Was, livro sobre a vida com o escritor em Cuba, que os dois tiveram que se contentar em abrir uma lata de sopa de rabada e se virar com um pedaço de queijo. Os champagnes preferidos, Perrier-Jouet e Lanson Brut, tiveram de ficar para o desembarque. A sede de Hemingway nunca foi segredo. Entre os anos 1921 e 1928, repórter e escritor numa Paris que era uma festa, dividia mesas fartas e bebidas com grandes artistas e escritores. Ezra Pound, Gertrude Stein, James Joyce, Miró e Picasso eram alguns deles – a famosa Geração Perdida. O tenente Henry, personagem de A Farewell to Arms (Adeus às Armas), de 1929, encarnava o espírito de Hemingway: “Não fui feito para pensar. Fui feito para comer.” No mesmo livro, spaghetti ao alho e óleo regado com garrafas de Barbera compunha a cena para a seguinte fala: “Comida pode não ganhar a guerra, mas não perde nenhuma.” As citações enogastronômicas nas obras de Hemingway foram reunidas em Dining with Hemingway (William P. Moore/Lulu.com/2008). Para uma bela galinha flambada no próprio molho, com Armagnac, manteiga e mostarda, Hemingway relacionou na revista Esquire, em 1935, seis possibilidades de harmonização: vinhos de Capri, St. Estephe, Corton, Pommard, Beaune ou Chambertin. Numa célebre fotografia,o Nobel de Literatura de 1954 aparece com um de seus gatos – chegou a ter dezenas deles em seu refúgio cubano. À sua frente, um indefectível de Chianti na tradicionalíssima garrafa com palha. Moore relata que Hemingway apreciava também os vinhos Valpolicella, um branco seco chamado Vesuvius e não dispensava uma grappa. O escritor, na verdade, sempre esteve mais associado aos cocktails. Era o grande embaixador da Bodeguita del Medio, em Havana, onde ciceroneou personalidades como Brigitte Bardot, Nat King Cole, Jimmy Durante, Errol Flynn. Todos inebriados com a mistura de seu célebre Mojito.

DC de 6/08/2010

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Archestratus, o harmonizador

Era 350 a.C. E o poeta grego Archestratus depois de viajar por toda Magna Grécia e vários pontos do Mediterrâneo e Egeu, enfrentando lonjuras da terra e os perigos do mar, escreveu um detalhado guia enogastronômico. “Naturalmente” em hexâmetros, rítmica associada aos versos épicos de Homero. Vários trechos do poema, entretanto, só foram salvos do esquecimento graças menos à prática das cópias do que às citações. Athenaeus de Naucratis, em sua obra Deipnosophistae (Filósofos à Mesa), do final do século III a.C., deu vida a 62 fragmentos de Archestratus, assim como fez com incontáveis autores da Grécia Clássica. Douglas Olson e Alexandre Sens, autores de Archestratos of Gela – Greek Culture and Cuisine in the Fourth Century BCE (Oxford University Press/2003), calculam que o escrito tinha cerca de 1.200 linhas, como era comum para um papiro – 330 versos foram preservados por Athenaeus. Trata-se de um saboroso roteiro pan-helênico com dicas dos melhores ingredientes e melhores comidas. O texto de Archestratus foi batizado de Hedupatheia, que estudiosos traduzem para Vida de Luxo. Peixes e frutos do mar eram as grandes delícias da mesa de então e ganharam muitas observações de Archestratus. Enguias? Louvadas ao extremo quando pescadas no estreito de Messina. Polvos? Os mais carnudos vêm de Thasos e Karia. Lagostins? Os de melhor qualidade são encontrados nos mercados de peixes nas ilhas Lipari e no Helesponto. Mel? Tem de ser o de Atenas – ou pelo menos de outro ponto da Ática. Pães? Toda refeição que se preze começa com eles, além de bolos de cevada. O preciosista Archestatrus entra em cena: melhores se preparados com a cevada de Eresos, em Lesbos, a cevada do deus Hermes. Os vinhos? Nenhum supera o que escorre da ilha de Lesbos, nem mesmo o que vem de Biblos, na Fenícia. Archestratus também dá conselhos sobre banquetes: a coroa de flores na cabeça dos convivas, indispensável, assim como os unguentos e as perfumadas brasas das lareiras. É autor de uma das primeiras harmonizações enogastronômicas que se tem notícia. Numa tradução livre: Quando você estiver degustando seu vinho, peça para alguém trazer-lhe uma salsicha, um pedaço de leitoa envolvida com cominho, vinagre forte e sylphium. Além disso, sirva-se de assados de toda classe de tenros pássaros da estação. Mas nunca faça como os siracusanos (ele mesmo era natural de Gela, perto de Siracusa, na Sicília) que sem nada no estômago, bebem como rãs. E nada de beber o vinho de Lesbos com favas, grão de bico, maçãs ou figos secos.


http://latis.exeter.ac.uk/classics/undergraduate/food3/archestratus.htm

DC de 30/7/2010

segunda-feira, 19 de julho de 2010

'O Brahms da minha adega'

Um enófilo, querendo impressionar seu convidado, o compositor Johannes Brahms (1883-1897), tratou de servir um grande vinho ao maestro, dizendo para quem no salão quisesse ouvir: "Este é o Brahms da minha adega!" Educado, o convidado cumpriu o ritual: observou a cor da bebida, rodopiou a taça para que os aromas 'abrissem', cheirou e passou a degustar sem pressa, como manda o figurino. Na primeira oportunidade, o ansioso anfitrião perguntou-lhe: "É de seu agrado?" E Brahms respondeu-lhe com uma espirituosa tirada: "Hmmmm, melhor trazer o seu Beethoven!" A observação do mestre homenageava Ludwig van Beethoven (1770-1827) e mostrava a generosidade de Brahms. É como se ele estivesse dizendo que o melhor vinho seria um vinho mais velho, como a melhor música era a de Beethoven, não a dele. Quem conta a história é o pianista Arthur Rubinstein (1887-1982), na sua autobiografia My Young Years, reproduzida em Wine Drinking foi Inspired Thinking (Running Press/2010), de Michel J. Gelb, escritor e consultor americano que tem relacionado o consumo do vinho à criatividade e ao bem-viver. Autor do best-seller How to Think Like Leonardo da Vinci, Gelb tem colecionado histórias mostrando como o convívio, tendo no centro o vinho, pode iluminar a busca do conhecimento e da inovação. Gelb lembra que Beethoven degustava seus vinhos desde a juventude e atribuía sua inspiração à bebida. O autor escreve também sobre como artistas do jazz, rock e blues produziram muitas composições focadas no vinho. "A música é o vinho que preenche a taça do silêncio", filosofou Robert Fripp, guitarrista do grupo inglês de rock progressivo King Crimson. O "maior tributo à uva encontramos, entretanto, no mundo da ópera", escreveu Gelb. "Se não houvesse o Café Momus, não haveria La Bohème". O compositor Gioachino Antonio Rossini (1792-1868), que escreveu nada menos do que 39 óperas, incluindo O Barbeiro de Sevilha mantinha na sua excepcional adega uma grande quantidade de garrafas de Bordeaux e uma coleção de vinhos do Porto, presente de um dos seus maiores fãs, o rei de Portugal. Rossini apreciava de modo especial os vinhos de sobremesa por sua "angelical harmonia". Já o tenor Luciano Pavarotti (1935-2007), exceto nos seus dias de apresentação, não dispensava os italianos Gavi di Gavi e o Lambrusco di Sorbara.

Diário do Comércio de 16/07/2010

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Qing, Qing!

Poetas e calígrafos chineses de várias dinastias têm sua história e a de suas obras associadas aos prazeres do vinho. "Como todas as culturas da terra, a refinada cultura chinesa buscou os meios para conseguir que a mente pudesse liberar-se da rigidez das convenções, da lógica racional e da limitação do cotidiano para vagabundear pelo mundo do imaginário", analisou Jacques Pimpaneau no livro Celebración de la embriaguez (José J. de Olañeta, editor/2004) – ensaio no qual costura suas reflexões com a poesia dos mestres chineses. Num primeiro momento, drogas foram usadas para essa desejada viagem de inspiração. Com o tempo, o consumo de vinho tomou o seu lugar. Não existe na China uma palavra específica para vinho – jiu vale tanto para fermentados quanto para licores. E na maioria dos casos está associada a vinho de cereais e de frutas, inclusive de uva. Taoísta, Li Bo (701-762), o "poeta embriagado", achava que só a bebida era capaz de levá-lo a lugares frequentados por imortais (para Li Bo lugares melhores do que os tomados por sábios), meio de escapar das limitações da condição humana. "Três taças e tu estás em contato com o grande Tao; uma vasilha inteira e estás em harmonia com o Universo", escreveu. Tao Yuanming (372-427) explicou em versos porque gostava do vinho: "Bebo uma taça e minhas preocupações desaparecem/Bebo outra e até me esqueço do céu". Tao Yuanming adicionava pétalas de crisântemos a seu vinho para perfumar a bebida. Su Dongpo (1036-1101), poeta mas também pintor, calígrafo e ensaísta, preparava ele próprio seu vinho de arroz. Su Dongpo e Zhang Xu, outro mestre calígrafo, antes de "desenhar" nos finos papéis, brindavam com taças de vinho em verdadeiras performances. Durante a dinastia Tang (618-907), vinho de uva aparece num poema de Wang Han: "Um bom vinho de uva em uma taça brilha à noite./Tenho desejo de beber, mas o alaúde me incita a montar no cavalo (...)" Durante as movimentações na Ásia Central, os chineses encontraram vinhedos e aprenderam a fazer bom vinho, técnica que os locais haviam herdado de civilizações do Oriente Próximo. Esse vinho de uva caiu em desuso durante vários séculos, até voltar com os missionários cristãos. Mais tarde, os soldados sob as ordens de Napoleão III chegaram à França, depois da campanha da China, impressionados com os rituais: antes do primeiro trago, brindavam com a expressão "Chín, chín! (Qing, Qing!) – onomatopéia do tilintar de taças, o hoje universal "tim-tim", nas também sinônimo
de felicidade. Em dose dupla, muita felicidade.

DC de 02/07/2010

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Um Madeira pela Independência

George Washington e Thomas Jefferson brindaram a Declaração de Independência dos Estados Unidos, em 4 de julho de 1776, com cálices de Vinho da Madeira – uma pista de como a bebida fortificada, produzida com uvas das "violentas" escarpas da ilha portuguesa, teve presença marcante na sociedade americana. Em Oceans of Wine (Yale University Press/2009), o autor David Hancock, historiador da Universidade de Michigan, analisa o impacto do vinho Madeira na história do comércio transatlântico, entre 1640 e 1815, e mostra como esse vinho ajudou a moldar o gosto americano. Hoje 65% das garrafas produzidas na Madeira – 3,2 milhões de litros em 2009 – foram exportadas para a União Européia. Estados Unidos e Japão também aparecem na lista de bons consumidores. O livro de Hancock recebeu o Gourmand World Cookbook Awards de 2009 como o melhor livro sobre vinho europeu. E venceu também o Prêmio Louis Gottschalk 22009-2010, patrocinado pela American Society for Eighteenth-Century Studies. Oceans of Wine foi celebrado por pequisadores da história da alimentação e do período colonial porque examina documentos nunca antes estudados, reconstruindo a vida de produtores, distribuidores e consumidores. E o mais interessante: desmonta as interpretações tradicionais “que identificam Estados e Impérios” como força motora do comércio do período. No retrato de Hancock o mercado aparece auto-organizado e descentralizado. O vinho da Madeira tem uma história de mais de 500 anos, com a introdução da uva Malvasia de Creta. O arquipélago passou a exportar seu vinho rapidamente, logo 25 anos depois de descoberto, no início do século XV. Já nos seus primórdios, a vinha era um dos integrantes da sua chamada “trilogia agrária”. O trigo e a cana eram os outros dois trunfos. Nos séculos XVIII e XIX o Funchal, na costa sul da principal ilha, era considerada a Cidade do Vinho, beneficiada em urbanização e embelezamento arquitetônico graças às riquezas do Madeira e às mãos dos exportadores ingleses. Muitos deles aprenderam a gostar do Madeira em solo americano. Com a Independência, de volta à Inglaterra, levaram na bagagem o gosto pelo Madeira. Hoje a produção com a pioneira Malvasia é pequena. A maior parte das vinícolas usa a Sercial, Verdelho, Boal e Tinta Negra.


http://www.vinhomadeira.pt/Home-1.aspx

http://www.madeira-live.com/pt/wine.html

Diário do Comércio de 25/06/2010

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Randall Grahm, transbordante

O prometido livro do vinicultor californiano Randall Grahm, Been Doon So Long (University of California Press/2009), é tão transbordante quanto seu autor. Reúne ensaios filosóficos sobre a produção do vinho – ele mesmo já se definiu como philosophe manqué – e textos de palestras que fez para plateias especializadas ao redor do mundo, além de sua cuidada e irreverente produção ficcional sobre o tema: “viterature”, poesia e até óperas. Grahm foi o mais autêntico dos rhonerangers, como são conhecidos os americanos que cultivam à francesa cepas clássicas do Vale do Rhône, mourvèdre e grenache. A vinícola Boony Doon foi fundada em 1983, criou vinhos cultuados mundo afora como o Cardinal Zin e Big House. Hoje Grahm “se livrou” desses vinhos que começaram a ser produzidos em escala e está mergulhado em vinhedos da uva riesling nas escarpas do rio Columbia, em Washington. É defensor intransigente do terroir e da qualidade das uvas na equação do bom vinho. É também um dos craques do vinho biodinâmico.
O crítico inglês Hugh Johnson escreve na apresentação do livro que o vinho também precisa de palavras em seu caminho entre ser notado e – aqui a melhor parte – bebido. Conhecemos bem as palavras viciadas da crítica de uma nota só e seu jargão excludente. Por isso o elogio rasgado do inglês às palavras originais de Grahm, um escritor que, mais do que tudo, está envolvido até a alma na produção de vinhos – a paixão do viticultor encharcando a pena do escritor. Grahm levou bom humor a uma indústria que se fechava em seriedades. Seus rótulos fora do comum, alegres, foram os primeiros passos. Grahm "reescreveu" textos clássicos a partir de uma verve satírica. Em "Cheninagin’s Wake – James Juice Takes de Wine Train", de 1994, uma de suas primeiras incursões literárias, Grahm traz o vinho e a uva chenin (a roussane a a marsanne como coadjuvantes) para o terreno de James Joyce, o celebrado Finnegans Wake e todo seu experimentalismo. “Chenin again, began again! Slake. Roussanity, marsannemanme! Till sousendsthee. Mls. The keys to. Swallowed! Oy vay a Rhône a lapse a loved a long the”. Em "Don Quijones, the Man for Garnacha", a brincadeira (séria, como assinala Johnson) é com Dom Quixote. No texto de Grahm, a crítica aos rankings de vinhos aparece no dia a dia de Don Quijones. No lugar de viajar em textos de cavalaria, está mergulhado em guias de vinho. Don Quijones é inclusive assinante da newsletter bimensal Avocado del Vino (uma referência ao polêmico crítico americano Robert Parker Jr. e sua revista Wine Advocate) e da “risível” El Gran Inquisidor del Vino (Wine Spectator?), capazes de provocar, como na realidade, uma mistura de “raiva e fascinação” no herói. Em "Da Vino Commedia: The Vinferno", a mais ambiciosa das "adaptações", com os pés nos lagares de Dante Alighieri, uma alegoria “al dente” escrita em plena negociação de venda de parte da vinícola e todas as angústias do negócio. Entre os vinhos e vinhedos do Grahm da ficção, sua Vinthology, encontramos também Franz Kaffeika e J.D.Salignac, este com o autobiográfico A Perfect Day for Barberafish.

https://www.bonnydoonvineyard.com/biography/

Diário do Comércio de 18/06/2010

segunda-feira, 14 de junho de 2010

África do Sul, sem conditum

O crítico inglês Hugh Johnson escreveu que o grande naturalista Plínio, o Velho (23-79 d.C.) recomendava aos viajantes da Roma Antiga carregarem na sua bagagem um frasco de conditum, mistura de mel e pimenta capaz de mascarar o sabor de vinhos intragáveis que certamente encontrariam pelo caminho. John e Erica Platter, autores de Africa Uncorked – Travels in Extreme Wine Territory (The Wine Appreciation Guild/2002) fizeram de uma garrafa de licor de cassis o seu conditum. Eles cruzaram a África para retratar a cultura da vinha nos seus mais inóspitos pontos: do Marrocos, Argélia e Egito, no Norte, a Zimbawe, Namíbia e África do Sul, no outro extremo, cruzando outra série de países durante a jornada. Pobreza e descuido, associados às guerras políticas e de religião, não faltam no livro de viagem. Somente na África do Sul, que os Platter conheciam muito bem – trabalharam ali durante mais de 20 anos –, talvez tenham dispensado o licor de cassis. Milhares de rótulos, de centenas de vinícolas, dão pujança à indústria sul-africana e novos empreendedores derrubam antigos perímetros, em avanço que atende à demanda da globalização. Há vinhedos até nos campos de diamante do país, a mais de 1.000 quilômetros do tradicional coração da viticultura local. No Cabo, alguns produtores elaboram vins de soleil, valorizando a natureza climática da região. Outros apostam na uva pinotage, sua marca registrada. E muitos dão o toque local a cepas internacionais, com destaque para a cabernet sauvignon e a shiraz. Duas das mais qualificadas importadoras brasileiras, Mistral e Vinci, oferecem vários rótulos imperdíveis da produção sul-africana. Os vinhedos chegaram ao sul da África com a Companhia Holandesa das Índias Orientais. O comandante Jan Van Riebeeck cravou a sua bandeira em Table Bay, em 1652. Não tardou para que chegassem mudas de hanepoot (denominação local da muscat d'Alexandrie) e steen (chenin blanc) para o indispensável vinho. Hoje a África do Sul tem mais chenin que o próprio Vale do Loire, a terra primeira da variedade. “Hoje [2 de fevereiro de 1659], graças a Deus, pela primeira vez fizemos vinho com uvas do Cabo...”, escreveu Riebeeck no seu diário. Era um vinho branco, doce, que décadas depois encantaria o mundo como vinho de Constantia (Napoleão Bonaparte não passava sem um cálice). Com Simon Van der Stel, sucessor de Riebeeck, a colônia ganhou um modelo europeu de produção e de arquitetura – marcas deixadas em Constantia e Stellenbosch, ainda hoje respeitáveis áreas vitivinícolas. E se o primeiro vinho de prestígio foi o Moscatel, o de maior originalidade nasceu das mãos de Abraham Izak Perold (1880-1941), então professor da Universidade de Cape Town. Como primeiro professor de Viticultura da Universidade de Stellenbosch, cruzou a pinot noir, a uva dos Borgonha, e a resistente cinsault. Conseguiu, em 1924, sementes que foram plantadas na residência oficial. Ao ser transferido de Stellenbosch, Perold deixou a experiência para trás. Tempos depois, outro mestre, Charlie Niehaus, passeando de bicicleta perto da antiga casa de Perold, notou jardineiros em sua azáfama. E conhecedor da pesquisa com as sementes, salvou as mudas crescidas da sanha dos carpidores. Nascia a pinotage, que teve seu papel ampliado com a retomada da viticultura pós-Apartheid, nos anos 90. Uma primeira história da pinotage já foi escrita pelo entusiasta e estudioso inglês Peter May. Em Pinotage – Behind the Legends of South Africa’s Own Wine (Inform & Enlighten/2009), May dá cor à descoberta de Perold, decifrando segredos escondidos em cadernetas de antigos cientistas do Cabo.

Diário do Comércio de 11/06/2010

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Pequeno tratado rabelaisiano

Os entusiastas do vinho e dos livros sobre a bebida comemoram a tradução, para o francês, de um pequeno texto atribuído a François Rabelais (1483-1553), de originais desaparecidos, que vivia kafkaniamente "encarcerado" em três exemplares de um livreto em língua checa, um deles guardado na Biblioteca do Museu Nacional de Praga. O Traité de bon usage de vin (Éditions Allia) é um texto de curiosidade que mantém a marca do celebrado escritor da Renascença Francesa, com sua verve dipsomaníaca e seu convite ao consumo do vinho que dá coragem e que é bom para a saúde do corpo e da alma – como é de seu feitio, Rabelais apresenta uma intrigante lista de indicações terapêuticas. A par desse pé na terra, alguns autores acreditam que a defesa do vinho por Rabelais encerra também uma metáfora, o vinho como caminho para uma alegria descomprometida, para um cristianismo e uma sociedade de simplicidades. É isso que lemos nos clássicos Gargântua e Pantagruel e, agora, no Traité..., traduzido por Marianne Canavaggio, com gravuras extraídas de Songes drolatiques de Pantagruel (François Desprez, Paris, 1564). A tradução desses "inéditos" de Rabelais ficou em quarto lugar no Gourmand World Cookbook Awards de 2010, na categoria Literatura do Vinho. A versão checa usada por Marianne é de 1622, feita por Martin Kraus de Krausenthal, um burocrata bem-sucedido, com vocação literária. Estudiosos acreditam que ele tenha feito o trabalho a partir de uma versão em alemão, de origem também desconhecida.

DC de 28/05/2010

sexta-feira, 21 de maio de 2010

As gavinhas dos irmãos Campana

A inspiração veio do ambiente da região de Champagne. Arrisco um palpite: das enroladas gavinhas de seus organizados vinhedos. E também, como confessaram, de uma de suas famosas cadeiras, a Corallo, em aço inoxidável, criada em 2003 para a marca italiana Edra. Foi a partir desses insights que os premiados designers brasileiros Irmãos Campana conceberam "Gloriette", uma espécie de gazebo, um mini pavilhão destinado à degustação de Champagne. A encomenda será instalada na primavera de 2011 nos jardins do Hotel du Marc, em Reims, território de uma das casas de Champagne mais respeitadas da França, a Veuve Clicquot. Os mecenas da Veuve Clicquot estão restaurando toda a construção do século XIX, onde viveu a própria viúva Clicquot, o coração da marca. A apresentação do projeto aconteceu no mês passado durante o Salão Internacional do Móvel de Milão. A Veuve Clicquot, fundada em 1772 e hoje integrada ao conglomerado Louis Vuitton, sempre cuidou de sua bebida, mas nunca deixou de lado suas preocupações com design e estética. O inovador e elegante rótulo amarelo-alaranjado, como a cor da cítrica clementine, já foi objeto de estudo da Propaganda. O projeto "Gloriette" dos Irmãos Campana adotou essa cor em uma estrutura na forma de ninho, tecido em fino metal e sustentado por arcos de madeira. Madame Clicquot ficou viúva em 1806, com apenas 27 anos. Decidida, passou a derrubar barreiras comerciais. Embarcou com sucesso sua safra 1811 para a corte imperial de São Petersburgo e com isso garantiu liderança de mercado durante os 50 anos seguintes. Hoje a casa produz cerca de 12 milhões de garrafas de Champagne por ano.


www.veuve-clicquot.com/htm/en/veuve-clicquot-essential-philosophy.htm
www.campanas.com.br

Diário do Comércio de 21/05/2010

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Os assírios em festa

Dioniso, deus do vinho, na sua viagem de propagação da videira, da Ásia para a Grécia, teria feito um muxoxo depois de passar pela Mesopotâmia: "Terra de bebedores de cerveja!" A mitologia grega também soube ser engraçada. Como os egípcios, os assírios tinham na cerveja sua bebida popular, mas o vinho marcou presença, principalmente entre os nobres. Para reinaugurar a sua capital Nimrud, o rei Ashurnasirpal II (883-859 a.C.) convidou quase 70 mil pessoas para uma festa de 10 dias. A ordem era impressionar, principalmente "embaixadores". Uma estela encontrada nas ruínas do que sobrou de Nimrud registra o tamanho do banquete. Só de bebidas: dez mil odres de vinho e dez mil jarros de cerveja. Séculos mais tarde, o rei Ashurbanipal (668-627 a C) pôde colher uvas plantadas pelos ancestrais e manteve a tradição da boa bebida. Vinho não faltava em seu luxuoso palácio em Níneve, perto do rio Tigre, norte do atual Iraque. No painel abaixo, hoje no Museu Britânico, Ashurbanipal e a mulher aparecem degustando vinho sob uma videira. O rei aparece reclinado, pose vista e celebrada posteriormente no symposium dos gregos e no convivium dos romanos. Com uma diferença: ele não dividia a ocasião com um grupo de homens, como faziam os filósofos gregos. Os que aparecem no friso são "abanadores" reais e estão ali apenas para garantir que nenhum inseto atrapalhe a conversa a dois. Os assírios não eram bonzinhos, não. Dependurada numa árvore ao lado da bucólica cena, à esquerda no painel, aparece o troféu de guerra: a cabeça decapitada do inimigo rei Teumman.

DC de 14/05/2010

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Agora, só lembranças

Um dos proprietários do restaurante instalado em elegantes salões do Jockey Clube de São Paulo, na rua Boa Vista, se aproxima da nossa mesa.
– Boa tarde, Dr. Sérgio. Li sua coluna sobre champagnes. Já comprei minha Henriot. Vou abri-la amanhã, diz, confiante na qualidade da bebida que haveria de provar.
O crítico de vinhos Sérgio de Paula Santos escrevera na sua coluna semanal "Adega", no espaço desde hoje tristemente vazio, que os champagnes Henriot recém-chegados ao Brasil tinham encantado os degustadores. É uma das cinco casas ainda nas mãos de empresas familiares como a Bollinger, Paul Roger, Roederer e Gosset. Havia mais de três décadas escrevendo sobre vinhos, Paula Santos fazia questão de acrescentar informações culturais e históricas às suas notas. Seus leitores gostavam das posições corajosas, independentes. Não foi à toa que ele foi abordado várias vezes por comensais no restaurante do Jockey. Tinha escrito que gostara dos champagnes Henriot, mas reclamara da "parte sólida" da festa de degustação: o creme de lagosta estava frio e faltaram talheres de peixe. Ele me convidara para almoçar, queria conversar sobre a revitalização da Academia Brasileira de Gastronomia, um dos projetos que encarou com garra até o fim. Era a segunda vez que nos encontrávamos. A primeira, ali mesmo no Jockey, brindamos a publicação no DC da sua coluna de número 200, na companhia de Moisés Rabinovici, diretor de redação do jornal, e da repórter Lúcia Helena de Camargo, responsável pelas críticas gastronômicas. Sérgio trouxe para o almoço um Carmenère no melhor estilo BYOB (Bring Your Own Bottle). E durante a conversa relembrou sua tese: "Se a cultura e as tradições alimentares sobreviverem, certamente também poderão sobreviver importantes identidades nacionais". Gostava da mesa de amigos, da mesa familiar, que, em tempos globalizados, podem ser cenários resistentes a qualquer tipo de banalização.
À saída do restaurante, nova abordagem.
– Prazer em vê-lo, Sérgio, despede-se Delboni, que durante décadas esteve à frente de um dos maiores laboratórios de análises clínicas do País. Ele fez questão de citar uma sentença curta e pragmática de Paula Santos.
– Perguntei-lhe se um determinado vinho francês de 15 anos ainda estaria bom. E ele me respondeu sem titubear: "primeiro, Delboni, é preciso abrir a garrafa, meu caro".

DC de 7/05/2010

terça-feira, 4 de maio de 2010

Baco versus Silenus Embriagado

Historiadores do vinho apontam dois dos maiores inimigos da bebida ao longo dos tempos: os cobradores de impostos e os falsos moralistas. A Lei Seca nos Estados Unidos é uma das manifestações mais dramáticas. Os moralistas jogam pesado contra a bebida e qualquer possibilidade de embriaguez. Guerras filológicas, nada filosóficas, são travadas para tirar o álcool do vinho bíblico. Há quem pense em reduzir a alegria e o carpe diem dos poetas persas Omar Khayáam e Hafiz de Shiraz a meras metáforas espirituais. Sempre que essas questões vêm à baila, empresto algumas idéias do polêmico filósofo francês Michael Onfray, autor de A Razão Gulosa (Rocco), que faz uma abordagem hedonista sobre o tema, defendendo o vinho, acima de tudo. Onfray faz questão de ressaltar que a embriaguez pode ser mágica quando leva a lugares que esclarecem e iluminam a razão. Os filósofos gregos sabiam disso – o symposium era movido a vinho. Onfray é contra as bebedeiras do alcoolismo, que fazem o usuário "um objeto que se sujeita e não um sujeito que deseja". Dois quadros ilustram bem a dicotomia que envolve esse "alimento de duas faces". Em Silenus Embriagado 1617-18), de Rubens, temos o bêbado com olhos atormentados, corpo entregue à sorte, desorientado. "Atentado violento à bipedia e à civilização”, anotaria Onfray. No Baco (1593-94) de Caravaggio temos a expressão de uma alegria antecipada da experiência inebriante. Suspensão da razão como exercício metafísico, abertura do espírito para coreografias de novas percepções, mas nunca "o aniquilamento da razão".

DC de 30/abril/20010

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Exaltação e dor nos vinhos de Shakespeare

Falstaff, personagem impagável de Shakespeare em Henrique IV, gordo e alegre "barril de fluidos", já foi comparado ao Sancho Pança de Cervantes, pela exaltação que faz ao vinho e pela disponibilidade vital em relação à bebida. "O saber não é mais do que uma mina de ouro guardada por um demônio, que só vale depois que o Jerez a explora e a põe em obra e uso", filosofa Falstaff nas suas andanças por tavernas do submundo londrino, na companhia do príncipe Hal, futuro Henrique V. Mas o elogio ao Jerez não esconde outras preferências: seria capaz de vender a alma ao diabo em troca de um copo de vinho Madeira e uma coxa de capão. Longe das bufonarias, nas tragédias de Shakespeare o vinho ganha papel para sublinhar momentos de extremo sofrimento ou como venenos mortais. De Marco Antônio a seus homens, sabendo da morte próxima, e querendo até o fim que a amada Cleópatra estivesse por perto: “Morro – rainha do Egito – morro. Dá-me vinho e deixa-me falar um pouco” (Antônio e Cleópatra). Em Otelo e Macbeth, o vinho está a serviço da traição. Assim como o ciumento Iago embebedou Cássio para tramar sua queda, Lady Macbeth vai servir vinho drogado aos guardas do rei Duncan. O plano da rainha para assassinar seu marido: “embriagarei com vinho e a orgia a seus dois guardas, de tal modo que a memória, essa sentinela do cérebro, não será neles mais do que fumaça, e o receptáculo de sua razão um alambique. Quando, saturados pela bebida caírem em um sonho de porcos, semelhante à morte, não podemos levar a cabo você e eu com o indefeso Duncan?” O pesquisador espanhol Miguel Ángel Muro Munilla, em sua alentada obra El cáliz de letras: Historia del vino em la literatura (Fundación Dinastia Vivanco/2006), encontrou na peça Ricardo III, o exemplo acabado da sanguinolência associada à bebida. Shakespeare, ao que parece, “tinha fixação numa imagem, a de um corpo esfaqueado, submerso em vinho”, escreve Munilla. Assassinos enviados por Ricardo para matar o irmão Clarence, combinam a ação: "Dá-lhe na cabeça um golpe com o punho da espada e depois o colocamos num barril de Malvasia, que há no quarto ao lado". O segundo assassino exclama: “Ah! Estupenda idéia! Fazer-lhe sopa de vinho”. Clarence acorda sonado e pede um copo da bebida. Ao que o futuro cínico assassino responde: “Terá bastante vinho, logo mais, Senhor!”


Diário do Comércio de 23/4/2010

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Châteaux futuristas

A arquitetura moderna tem invadido vinícolas de todo mundo, criando com seus traços ousados mais possibilidades para uma educação dos sentidos. Se ao degustar um bom vinho a estética deve entrar em cena, como advoga o filósofo hedonista Michael Onfray, imagine o quanto as sensações têm sido ampliadas num ambiente onde mais elementos da criatividade e inteligência do homem mostram sua beleza. Quando o arquiteto novaiorquino Steven Hall plantou o seu Loisium em um cenário para lá de bucólico, de vinhedos e igrejinhas barrocas, em Langenlois, na maior região vinícola da Áustria, mostrava que no seu espaço também poderia haver uma alma. Decerto não a dos heurigen, tavernas familiares onde vinho jovem é servido de maneira simples, principalmente nos arredores de Viena. Mas de uma outra alma, ligada aos prazeres do vinho inserido em ambiente arquitetônico pensado especialmente para ele. Em Elciego (Álava), na Espanha, o arquiteto canadense Frank O. Gehry, o mesmo do Museu Guggenheim de Bilbao, ergueu um novo edifício para os herdeiros da célebre bodega espanhola Marqués de Riscal. O prédio faz parte de um conjunto batizado de Ciudad Del Vino, um centro de degustação de vinhos, que integra a antiga bodega de Marqués de Riscal, de 1858, a mais antiga da Rioja. A empresa aposta no poder de atração do seu “château do século XXI”. Como o museu de Bilbao, o edifício de O. Gehry é recoberto de titânio, mas desta feita com cores ligadas aos vinhos, chapas rosadas para o tinto, cor de ouro das garrafas da bodega e prata da cápsula das botellas.

http://www.marquesderiscal.com/index.php

http://www.loisium.at/

DC de 16/04/2010

sexta-feira, 9 de abril de 2010

O tinto carcamano de John Fante

Jimmy Toscana menino, mais tarde um jovem, vive e narra o dia a dia de uma típica comunidade italiana de Denver, nos Estados Unidos, em pleno vigor da Lei Seca (1919-1933). Os italianos que desembarcaram na América no início do século foram maltratados pela pobreza, aliciados pelo gangsterismo, pelos preconceitos e viveram dramas recorrentes de crise de identidade. "Fico nervoso quando trago amigos em casa (...) Aqui pende um quadro de Victorio Emanuelle, adiante outro da Catedral de Milão e, ao lado, uma imagem da basílica de São Pedro, e sobre o aparador repousa um jarro de vinho em estilo medieval; está sempre cheio até a borda, sempre vermelho e cintilante do vinho." Jimmy é mais um alter ego do escritor americano John Fante (1909-1983), personagem central dos contos de O Vinho da Juventude, que a Editora José Olympio acaba de publicar, com precisa tradução de Roberto Muggiati. Essa coleção de contos nasceu como Dago Red, em 1940, e começou a ser publicada da forma atual a partir de 1985. John Fante é mais conhecido pelo romance Pergunte ao Pó, celebrado pelos beatniks, especialmente por Charles Bukowski. Fluente, a prosa do autor foi saudada até mesmo por John Steinbeck: é daquelas obras que conseguem universalidade ao falar de uma rotina dura, sem glamour algum, de uma casa num bairro de imigrantes empobrecidos. Dago red, anota Muggiati, é algo como “tinto carcamano” e refere-se ao vinho que os italianos do norte de Denver bebiam durante o período da Lei Seca. Dago era uma palavra ofensiva, pejorativa, contra a qual os italianos e seus filhos lutavam, não só no sentido exato da palavra. O vinho da juventude de Jimmy é a bebida por trás da frequente embriaguez do pai, o pedreiro sem obra a quem restava beber, voltar para casa assobiando La Donna è Mobile e esperar com vergonha, diante de uma mulher exaurida pelos afazeres de casa e do fogão. "Vimos seu rosto, avermelhado, alegre, estimulado, os olhos brilhantes como os de um esquilo. Não estava exatamente bêbado, mas a inclinação do chapéu e o balanço dos ombros nos diziam que não havia poupado no Borgonha". O vinho que pontua, sem nenhum exagero, o livro de Fante é também o vinho da missa, símbolo de toda carga moral e religiosa de seu ambiente – uma comunidade ajoelhada ao catolicismo. Quando o novo padre do colégio de Jimmy foi visitar os Toscana, seu pai seguiu uma rotina imutável, que dava orgulho à casa: o visitante era convidado a descer até a adega cavada na terra onde havia quatro barris de cinquenta galões de vinho – cem galões amadurecidos e cem no processo de fermentação. A subida posterior, com a jarra cheia de vinho fresco e proibido, "as gotículas da espuma ainda borbulhantes", era motivo de júbilo.

DC de 17/4/2010

domingo, 28 de março de 2010

Voyage Rocambolesque





     Durante três semanas, em 1879, os jornais franceses acompanharam trote a trote a "voyage rocambolesque" de um tonel gigante de champagne, que cumpriu um trajeto de 140 quilômetros, de Epernay a Paris. Antes da proeza do tonel, somente a viagem do obelisco de Ramses II, de Luxor a Paris, passando por Alexandria, tinha merecido o “rocambolesque”.
     (O obelisco milenar, do século XIII a.C., chegou a Paris em dezembro de 1833 e, dois anos depois, o rei Luís Filipe decidiu colocá-lo no centro da Praça da Concórdia, no ponto onde um dia tinha brilhado a lâmina da guilhotina. Foi Champollion, o decifrador dos hieróglifos da Pedra de Rosetta, quem convenceu o vice-rei do Egito, Mehemet Ali, a presentear a França com o obelisco faraônico. Uma década depois, a França enviou ao Egito, em retribuição, um belo relógio, que está na citadela do Cairo. Consta que nunca funcionou.) Já a ideia do tonel de Champagne saiu exclusivamente da cabeça do vinicultor Eugène Mercier, também um homem de marketing.
     Doze pares de parrudos bois brancos foram usados para transportar o foudre da vinícola de Eugène Mercier, em Epernay, a capital do Champagne, à Paris. O tonel começou a ser projetado em 1870, com carvalho trabalhado na Hungria, durante cinco outonos. O esqueleto de madeira chegou primeiramente a Estrasburgo e, depois, seguiu de trem para Epernay, onde foi completado com vinho e passou a ser puxado pelos bois. Dezoito cavalos seguiam o cortejo para substituir os bois nos trechos mais íngremes. Por onde o desfile passava, era assediado por uma população em êxtase, tal qual aquela que recebeu a primeira girafa vinda da África, em 1827, um presente do vice-rei otomano Muhammad Ali para Carlos X.
     Repleto de Champagne, o grande barril pesava 20 toneladas e tinha capacidade para 200 mil garrafas de vinho. Nenhum esforço era em vão. Afinal, o Champagne tinha de brilhar na efervescente Exposição Universal de 1889, em Paris, organizada para celebrar o centenário da Revolução Francesa. A atração principal da feira era nada menos do que a Torre Eiffel, acabada de ser construida no histórico Campo de Marte.
     Negociantes franceses de vinho são considerados os primeiros comerciantes dessa indústria a abraçar o marketing para desenvolver seu negócio. A França e o Champagne entraram em nova era no século XIX, com o avanço simultâneo do mercado dos vinhos de luxo e da popularização da bebida. Descontados devem ser os anos terríveis da propagação da filoxera que dizimou vinhedos, no final do mesmo século.
     Em 1887, ano movimentado pelo Jubileu da vizinha Rainha Vitória, os produtores buscaram inspiração na figura de sua majestade. A imagem da viúva (veuve) simples e pura – "grande e genuína mãe" – esteve presente nos rótulos e nos apelos de venda. Aos produtos associados a viúvas reais (lembrar sempre da empreendedora Veuve Clicquot) enfileiram-se as viúvas da ficção, com seus vestidões e suas toucas, puras armas de marketing. A Maison Mercier chegou a lançar, em 1885, um vinho de certa inexistente Veuve Damas do Reims.

sexta-feira, 19 de março de 2010

A musa na garrafa

O vinho flui numa linha do tempo mais do que literária. Esse percurso pelas letras, na verdade uma seleção de textos onde o vinho tem presença marcante – algumas vezes a bebida é protagonista, outras, indispensável, sorrateira, iluminada coadjuvante–, foi estabelecido pelo escritor Waldemar Rodrigues Pereira Filho no livro A Alma do Vinho (Editora Globo, 2009). Pereira Filho emprestou o título de um poema de Charles Baudelaire, o escritor de As Flores do Mal (1857) e Paraísos Artificiais (1860), este último um polêmico "tratado" onde descreve o estado de se estar sob o efeito de drogas e álcool. Alguns dos poemas de Baudelaire dão peso à coleção literária. Mas a linha começa mesmo lá atrás, com o Livro do Gênesis, tratado como a primeira menção à vinha e ao vinho e, também, à embriaguez. A Bíblia é contemplada ainda com As Núpcias de Caná, de São João. Posteriormente aparecem uma ode de Horácio, o poeta e filósofo da Roma de Júlio César, e um fragmento do soldado e poeta grego Arquíloco de Paros (680-645 a.C.): "Na lança, meu pão macerado; na lança, o vinho ismárico; reclinado na lança, eu bebo..." "As referências ao vinho são, nesse momento da produção literária da civilização ocidental, algo tão natural quanto respirar...", escreve o autor numa das notas introdutórias. As grandes obras de Homero, Ilíada e Odisseia, são outros exemplos desse fervor, não contemplados na obra. O arco de autores escolhidos por Pereira Filho é abrangente no que se refere a gêneros e tradições (poesia e prosa, clássicos e populares), e tem ineditismo ao trazer à cena do vinho mais autores brasileiros e portugueses, entre eles: João do Rio, Mário Quintana, Gil Vicente, Mário de Andrade, Tomás Antônio Gonzaga, Álvares de Azevedo, Camilo Castelo Branco, Cruz e Souza, Machado de Assis, Eça de Queirós e Hilda Hilst – o fecho de ouro da edição, com "Alcoólicas", do livro Do Desejo (1990). O crítico literário Manuel da Costa Pinto escreveu na sua coluna "Rodapé", na Folha de São Paulo, que o livro deveria ser considerado como uma espécie de bíblia para "dipsomaníacos convictos, orgulhosos e, sobretudo, letrados", em tempos nos quais a apreciação do vinho constitui o "último bastião contra a barbárie e a breguice sanitárias". Vale ressaltar que o livro de Pereira Filho é irmão mais novo da obra de Charles Coulombe, The Muse in The Bottle:
Great Writers on the Joy of Drinking
(Citadel,2002), onde estão contemplados outros grandes escritores da literatura mundial, como Mark Twain, Charles Dickens, F. Scott Fitzgerald e Evelyn Waugh.

DC de 19/3/2010

sexta-feira, 12 de março de 2010

Cerro de las Cabezas

O avanço das buscas arqueológicas, com recursos de datação cada vez mais precisos, tem reescrito algumas histórias. É o caso das escavações no enclave conhecido como Cerro de las Cabezas, uma cidade do final da Idade do Bronze, com 140 mil m², em Valdepeñas, província de Ciudad Real, ao Sul de Castilla-La Mancha – sítio arqueológico que hoje é uma das atrações locais. Vestígios de sofisticadas instalações para produção de vinho, de 700 a.C., sugerem que os antigos ibéricos de Valdepeñas conheceram as técnicas de cultivo da vinha e da vinificação vários séculos antes do imaginado, diz Javier Pérez Avilés, o arqueólogo responsável pelos achados. Atualizada é então é aquela imagem de escritores espanhóis: migas com torresmos e chorizo e um bom vinho de Valdepeñas é o que têm almoçado os pastores manchegos a vida inteira. É conhecida a influência dos fenícios na Península Ibérica, para onde levaram a metalurgia, a roda do oleiro, o azeite e o vinho, rastros de civilização encontrados também em Cerro de Las Cabezas. Em 1.104 a.C. já tinham fundado Gadir ( a atual Cádiz) e estabelecido uma rota comercial importante no Mediterrâneo. Achados de barcos que naufragaram nesse percurso, com suas homéricas cargas em ânforas, atestam esse vigor comercial, aceso ainda mais com Cartago, fundada pelos fenícios de Tiro no século IX a. C. Os romanos posteriormente incrementaram as técnicas agrícolas e com senso profissional desenvolveram a produção. A região apresentou declínio somente diante das proibições corânicas, revogadas com uma inusitada bula do califa de plantão: o consumo de vinho estava liberado, sim, contanto que o vinho fosse de Valdepeñas. Os historiadores contam que, na reconquista, os monges templários criaram toda uma mística para o vinho da região, mais tarde celebrado pelos autores espanhóis do Século de Ouro. Era então cultuado de maneira menos específica como vinho de Ciudad Real, denominação que incluía boa parte da bebida produzida em La Mancha, como conta o pesquisador Pedro Plasencia em seu imperdível El Vino en los Clássicos Castellanos ( H. Blume/2006). Esse vinho foi elogiado por Sancho Pança de Cervantes e outros escritores trataram de mostrar as capacidades revigorantes do muy gentil vino de Ciudad Real. A fama mundial da chancela Valdepeñas é do século XVIII e XIX. Os românticos viajantes têm sua culpa no cartório ao mencionarem em suas cartas e relatos os vinhos de Valdepeñas que hoje correm o mundo.


http://www.patrimoniohistoricoclm.es/yacimiento-del-cerro-de-las-cabezas/

http://www.dovaldepenas.es/

DC de 12/3/2010

sexta-feira, 5 de março de 2010

Pipoca com Chardonnay

Bond, James Bond, está à mesa com Dr. No, que tem planos de dominar o mundo. Ao ver sua bela Honey Ryder (Ursula Andress) nas mãos dos guardas de No, Bond tenta improvisar uma arma e parte para a garrafa de champagne à sua frente. Mas o próprio malvado o adverte: "Essa é uma Dom Pérignon 55. Seria uma pena quebrá-la". Bond devolve a garrafa com elegância e rebate com precisão: “Prefiro a 53!" O cinéfilos conhecem bem a estatística cinematográfica sobre o champagne nos thrillers com James Bond. A parceria da bebida com esses filmes dura décadas, desde que o então jovem ator escocês Sean Connery estrelou o primeiro da série, O Satânico Dr. No, de 1962, levando às telas a literatura de Ian Fleming. Em O Espião que me amava(1977), o 007 Roger Moore avalia o caráter do vilão da vez, recorrendo-se ao paladar: “Talvez eu tenha feito um mal julgamento de Stromberg. Um homem que bebe Dom Pérignon não pode ser de todo ruim”. Além de Connery e Moore, todos os outros atores da saga original (George Lazenby, Timothy Dalton, Pierce Brosnan e Daniel Craig) puderam ser vistos com taças nas mãos, seja de Dom Pérignon ou da hoje onipresente Bollinger. No cinema, o champagne sempre teve destaque quando tempero para os jogos de sedução. Foi assim no mais romântico dos filmes, Casablanca (1942), com Humphrey Bogart e Ingrid Bergman. Mumm Cordon Rouge escorria às fartas das bojudas taças de Ilsa Lund e Rick Blaine. No bar marroquino de Rick, a bebida fluia... Os nazistas não dispensavam sua Veuve Cliquot 26, garrafa de excelente safra. Em Paris, Rick queria beber todas as garrafas disponíveis antes da entrada dos alemães. Se não conseguisse, prometia regar o jardim com a bebida. Taças ficaram apoiadas no piano de Sam, quando “As Time Goes By” criava o tom do filme. E não faltou beijo ao tilintar dos cristais. Assim, para brindar a festa do Oscar, sugiro um espumante. Para quem não dispensa a pipoca, os americanos recomendam mesmo é seu untuoso Chardonnay californiano.


http://www.jamesbondlifestyle.com/index_fooddrinks.php?m=fd&g=fd005

http://www.wineintro.com/movies/casablanca/

Diário do Comércio de 5/3/2010

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Cenas do tonel maltês

Para acompanhar o coelho estufado (ao modo do coq au vin) ou os seus bragoli (os braciole da vizinhança e do dia a dia) os visitantes de Malta, esse arquipélago que pontilha o caminho entre a Sicília e a África, têm encontrado vinhos rústicos produzidos no terreno diminuto das próprias ilhas. Apesar do peso da tradição, só a partir dos anos 1970 é que a produção vinícola local tornou-se mais séria e variedades internacionais passaram a ser plantadas, escreve Margareta Zaveri, editora de um guia do bem viver de Malta. Às cepas autóctones, Gellewza para os tintos e Ghirgentina para os brancos, somam-se agora vinhedos com Cabernet Sauvigno n, Syrah, Sangiovese, Grenache, Zibibbo (que a Sicília cultiva como ninguém), Cabernet Franc, Chardonnay, Sauvignon Blanc, Moscato, Vermentino e Viognier. Das cinco maiores vinícolas de Malta, a mais antiga é a Emmanuel Delicata, estabelecida em 1907. Nessa linha do tempo, segue a Marsovin, de 1919. Margareta relaciona ainda as vinícolas Camilleri Wines, Montekristo e Meridiana. Localizada em Ta’Qali, na região central de Malta, Meridiana foi criada em 1985, graças a investimentos do grande produtor italiano Antinori. Tem 19 hectares de vinhedos – o mesmo terreno onde, na Segunda Guerra, ficavam as instalações militares da ilha britânica e seus parcos aviões que resistiram bravamente aos ataques dos nazistas. A produção em Malta, desde 2007 segue modelos italianos de classificação. DOC em maltês é DOK (Denominazzjoni ta' Origini Kontrollata), rigores da União
Européia para o país que desde 2004 passou a integrá-la. Estão sujeitas às regras DOK tanto Malta como a ilhota de Gozo. Provas desses vinhos fazem “ridículas excursões” à Siena, onde enfrentam as papilas de degustadores italianos para aprovação, conta o jornalista Stuart Walton. As novas regras prevêem ainda, para as demais ilhas maltesas, o IGT, que é a Indikazzjoni Geografika Tipika, como na Itália. Entreposto importante para fenícios, gregos e romanos na Antiguidade, a Malta povoada nas origens por gente siciliana sempre foi motivo de cobiça como atesta a passagem de seus inúmeros ocupantes e colonizadores. Na época em que Malta era da Espanha, templários convenceram o imperador Carlos V a presentear-lhes a ilha. E daí as histórias do famoso (e cinematográfico) falcão maltês, o pássaro de ouro e pedras preciosas que os cruzados tinham que enviar como tributo anual ao imperador.

http://www.maltafoodandwine.com

http://www.guidetomalta.net/Malta-articles/maltese-wine-and-malta-wine-tourism

Diário do Comércio de 26/02/2010

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Beber como um franciscano

Uma velha canção francesa brinca com a sede dos monges – caricatural e divertida imagem do consumo e da produção de vinhos na Europa da Idade Média. Um dos versos populares, em livre tradução, diz : Beber como um capuchinho é beber pobremente,/Beber como um beneditino é beber profundamente,/Beber como um dominicano é beber taça após taça/Mas beber como um franciscano é beber até secar a adega! A State Library of South Australia, que mantém um site com a memória da literatura mundial do vinho, tem entre as obras de destaque fragmento de um texto de cerca mil anos que trata da punição de monges beberrões. O Decretum, escrito por Burchard de Worms num mosteiro da Alemanha, na primeira metade do século XI, faz um alerta aos noviços. Em latim, e em admirável tipologia carolíngea, o manuscrito determina: 15 dias de pão e água para quem beber tanto que tenha de vomitar; 30 dias da mesma dieta para o monge que, bêbado, encorajar outros na mesma direção; 40 dias de pão e água para o religioso que, embriagado, vomitar o vinho e a sagrada hóstia. Outra boa história envolvendo monges, desta feita cistercienses, foi contada pelo inglês Edward Ott em seu livro From Barrell to Bottle, de 1953. Faz anedota com a constatação de que os modernos borgonhas não são como os antigos vinhos produzidos nessa região da França. Numa visita que fez a Clos de Vougeot, fundada pelos cistercienses em 1150, descobriu atrás das prensas enigmáticas anotações:"1P, 2P, 3P". O "P" seria uma abreviatura da palavra francesa pigeage, a rotina criada pelos monges que, nos tanques de fermentação, empurravam cascas e sólidos das uvas para baixo, com os pés. Pulavam nas barricas nus, três vezes durante o processo. Seriam os únicos banhos do ano, brinca Ott.

http://www.winelit.slsa.sa.gov.au/topdozen.htm

http://www.newyorkcarver.com/wine.htm

Pequena pérola a caminho do frio

Viticultores de regiões frias do globo acabam de ganhar um presente muito especial. Pesquisadores de Minnesota, nos Estados Unidos, que sofrem na própria pele os dramas dos invernos brancos, anunciaram que uma nova cepa para vinhos tintos, própria para suportar esses frios rigorosos, já está disponível a partir deste ano de 2010. No jargão técnico dos viticulturistas e seus laboratórios, a TP 2-1-24 é um híbrido das uvas MN 1094 e ES 4-7-26. Ainda bem que foi batizada com mais poesia: Petite Pearl, visto o desenho caprichado de cada um de seus bagos e um conjunto para lá de harmonioso.Tom Plocher, reconhecido especialista em reprodução de videiras, vinha desenvolvendo a "pequena pérola" desde 1996, testando a resistência da planta durante todos esses anos. Agora tem a convicção de que a nova fruta é capaz não só de sobreviver a invernos duros, mas consegue amudurecer mesmo nos imprevisíveis verões do hemisfério Norte. Detalhes técnicos sobre as cepas resistentes ao frio podem ser encontrados no livro Northern Winework, que Tom Plocher escreveu com outro especialista, Bob Park, livro já na sua segunda edição. Algumas vinícolas e berçários americanos filiados ao projeto, como a Bevens Creek Vineyard and Nursery, já têm mudas disponíveis para produtores interessados. A Petite Pearl de
Tom Plocher tem um currículo atraente: sobreviveu a um inverno com temperaturas abaixo de zero. E produziu frutos durante o quinto verão mais frio de Minnesota. Sobre os vinhos a partir da nova cepa, Plocher diz que são de cor intensa, com fruta na dose certa e taninos macios. Segundo ele, bons para blends com Cabernet Sauvignon e Merlot.


http://www.halogenlife.com/articles/3561-petite-pearl-new-wine-grape-varietal-for-cold-weather

http://petitepearlgrape.com/