segunda-feira, 14 de junho de 2010

África do Sul, sem conditum

O crítico inglês Hugh Johnson escreveu que o grande naturalista Plínio, o Velho (23-79 d.C.) recomendava aos viajantes da Roma Antiga carregarem na sua bagagem um frasco de conditum, mistura de mel e pimenta capaz de mascarar o sabor de vinhos intragáveis que certamente encontrariam pelo caminho. John e Erica Platter, autores de Africa Uncorked – Travels in Extreme Wine Territory (The Wine Appreciation Guild/2002) fizeram de uma garrafa de licor de cassis o seu conditum. Eles cruzaram a África para retratar a cultura da vinha nos seus mais inóspitos pontos: do Marrocos, Argélia e Egito, no Norte, a Zimbawe, Namíbia e África do Sul, no outro extremo, cruzando outra série de países durante a jornada. Pobreza e descuido, associados às guerras políticas e de religião, não faltam no livro de viagem. Somente na África do Sul, que os Platter conheciam muito bem – trabalharam ali durante mais de 20 anos –, talvez tenham dispensado o licor de cassis. Milhares de rótulos, de centenas de vinícolas, dão pujança à indústria sul-africana e novos empreendedores derrubam antigos perímetros, em avanço que atende à demanda da globalização. Há vinhedos até nos campos de diamante do país, a mais de 1.000 quilômetros do tradicional coração da viticultura local. No Cabo, alguns produtores elaboram vins de soleil, valorizando a natureza climática da região. Outros apostam na uva pinotage, sua marca registrada. E muitos dão o toque local a cepas internacionais, com destaque para a cabernet sauvignon e a shiraz. Duas das mais qualificadas importadoras brasileiras, Mistral e Vinci, oferecem vários rótulos imperdíveis da produção sul-africana. Os vinhedos chegaram ao sul da África com a Companhia Holandesa das Índias Orientais. O comandante Jan Van Riebeeck cravou a sua bandeira em Table Bay, em 1652. Não tardou para que chegassem mudas de hanepoot (denominação local da muscat d'Alexandrie) e steen (chenin blanc) para o indispensável vinho. Hoje a África do Sul tem mais chenin que o próprio Vale do Loire, a terra primeira da variedade. “Hoje [2 de fevereiro de 1659], graças a Deus, pela primeira vez fizemos vinho com uvas do Cabo...”, escreveu Riebeeck no seu diário. Era um vinho branco, doce, que décadas depois encantaria o mundo como vinho de Constantia (Napoleão Bonaparte não passava sem um cálice). Com Simon Van der Stel, sucessor de Riebeeck, a colônia ganhou um modelo europeu de produção e de arquitetura – marcas deixadas em Constantia e Stellenbosch, ainda hoje respeitáveis áreas vitivinícolas. E se o primeiro vinho de prestígio foi o Moscatel, o de maior originalidade nasceu das mãos de Abraham Izak Perold (1880-1941), então professor da Universidade de Cape Town. Como primeiro professor de Viticultura da Universidade de Stellenbosch, cruzou a pinot noir, a uva dos Borgonha, e a resistente cinsault. Conseguiu, em 1924, sementes que foram plantadas na residência oficial. Ao ser transferido de Stellenbosch, Perold deixou a experiência para trás. Tempos depois, outro mestre, Charlie Niehaus, passeando de bicicleta perto da antiga casa de Perold, notou jardineiros em sua azáfama. E conhecedor da pesquisa com as sementes, salvou as mudas crescidas da sanha dos carpidores. Nascia a pinotage, que teve seu papel ampliado com a retomada da viticultura pós-Apartheid, nos anos 90. Uma primeira história da pinotage já foi escrita pelo entusiasta e estudioso inglês Peter May. Em Pinotage – Behind the Legends of South Africa’s Own Wine (Inform & Enlighten/2009), May dá cor à descoberta de Perold, decifrando segredos escondidos em cadernetas de antigos cientistas do Cabo.

Diário do Comércio de 11/06/2010

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