terça-feira, 22 de março de 2016

O salto das rãs modernistas

Os modernistas das letras e das artes fizeram do solar da pintora Tarsila do Amaral, na Alameda Barão de Piracicaba, em São Paulo, um dos redutos para os debates que prosseguiram nos anos seguintes à Semana de Arte Moderna, realizada no Teatro Municipal em 1922. O casal Tarsila e Oswald de Andrade gostava de receber os amigos em casa, mas não dispensava as comemorações e os encontros nas mesas dos restaurantes, verdadeiras extensões do solar. E vários foram os endereços. No seu “diário” sobre os modernistas brasileiros (Movimentos Modernistas no Brasil – 1922-1928/ José Olympio/2012), o poeta Raul Bopp, autor do clássico Cobra Norato, lembra: “quando [Oswald] ganhava alguma causa, das questões complexas de herança, gastava tudo em lautas celebrações na Rotisser ie: faisões e bons vinhos”. Bopp dedica alguns parágrafos ao “restaurante das rãs”: “Uma noite, Tarsila e Oswald resolveram levar o grupo que frequentava o solar a um restaurante situado nas bandas de Santa Ana. Especialidade: rãs. O garçom veio tomar nota dos pedidos. Uns queriam rãs. Outros não queriam. Preferiam escalopini... Quando, entre aplausos, chegou um vasto prato com a esperada iguaria, Oswald levantou-se e começou a fazer o elogio da rã, explicando, com uma alta percentagem de burla, a teoria da evolução das espécies. Citou autores imaginários, os ovistas holandeses, a teoria dos ‘homúnculos’, os espermatistas etc. para ‘provar’ que a linha de evolução biológica do homem, na sua longa fase pré-antropoide, passava pela rã – essa mesma que estávamos saboreando entre goles de Chablis gelado.” Como sabiam das coisas da França esses modernistas! Prato tradicional cozinha francesa (não à toa os ingleses chamavam os soldados de Napoleão de frogs), as rãs, ou melhor, “les cuisses de grenouilles” devem ser consumidas sempre com vinhos brancos secos. Para ficar na adega francesa: Chablis, Côte de Beaune, Beaune, Monthelie, Saint-Aubin, Meursault, Santenay, Puligny-Montrachet, Rully, Givry, Mercurey, Mâcon Villages, Pouilly-Fuissé, Pouilly-Vinzelles, Saint-Veran Beaujolais, Quincy, Reuilly, Menetou-Salon, Sancerre, Coteaux du Giennois, Savennières, Anjou Blanc, Riesling da Alsácia, Alsácia Sylvaner, Pinot Blanc Alsace, Graves, Jurancon sec. A lista foi preparada pelo chef Simon, que assina no Le Monde, para o site ecce vino. Simon diz que, como o molho de alho é acompanhante frequente das perninhas de rã, os tintos devem ser evitados. Outro gole de Chablis. E Tarsila volta às rãs. “– Em resumo, isso significa que, teoricamente, deglutindo rãs, somos uns... quase antropófago. A tese, com um forte tempero de blague, tomou amplitude. Deu lugar a um jogo divertido de ideias. Citou-se logo o velho Hans Staden e outros clássicos da Antropofagia: – Lá vem nossa comida pulando. A Antropofagia era diferente dos outros menus. Oswald, no seu malabarismo de ideias e palavras, proclamou: – Tupy or not tupy, that’s the question. Alguns dias mais tarde, o mesmo grupo de poetas e pintores do restaurante das rãs reuniu-se no palacete da alameda Barão de Piracicaba, agora para batizar um quadro de Tarsila: ‘O Antropófago’, e para pensar num movimento “genuinamente brasileiro”, apesar das rãs no prato, diante da parca safra literária, posterior à Semana de 22. O salto das rãs para o Manifesto Antropofágico.