segunda-feira, 19 de julho de 2010

'O Brahms da minha adega'

Um enófilo, querendo impressionar seu convidado, o compositor Johannes Brahms (1883-1897), tratou de servir um grande vinho ao maestro, dizendo para quem no salão quisesse ouvir: "Este é o Brahms da minha adega!" Educado, o convidado cumpriu o ritual: observou a cor da bebida, rodopiou a taça para que os aromas 'abrissem', cheirou e passou a degustar sem pressa, como manda o figurino. Na primeira oportunidade, o ansioso anfitrião perguntou-lhe: "É de seu agrado?" E Brahms respondeu-lhe com uma espirituosa tirada: "Hmmmm, melhor trazer o seu Beethoven!" A observação do mestre homenageava Ludwig van Beethoven (1770-1827) e mostrava a generosidade de Brahms. É como se ele estivesse dizendo que o melhor vinho seria um vinho mais velho, como a melhor música era a de Beethoven, não a dele. Quem conta a história é o pianista Arthur Rubinstein (1887-1982), na sua autobiografia My Young Years, reproduzida em Wine Drinking foi Inspired Thinking (Running Press/2010), de Michel J. Gelb, escritor e consultor americano que tem relacionado o consumo do vinho à criatividade e ao bem-viver. Autor do best-seller How to Think Like Leonardo da Vinci, Gelb tem colecionado histórias mostrando como o convívio, tendo no centro o vinho, pode iluminar a busca do conhecimento e da inovação. Gelb lembra que Beethoven degustava seus vinhos desde a juventude e atribuía sua inspiração à bebida. O autor escreve também sobre como artistas do jazz, rock e blues produziram muitas composições focadas no vinho. "A música é o vinho que preenche a taça do silêncio", filosofou Robert Fripp, guitarrista do grupo inglês de rock progressivo King Crimson. O "maior tributo à uva encontramos, entretanto, no mundo da ópera", escreveu Gelb. "Se não houvesse o Café Momus, não haveria La Bohème". O compositor Gioachino Antonio Rossini (1792-1868), que escreveu nada menos do que 39 óperas, incluindo O Barbeiro de Sevilha mantinha na sua excepcional adega uma grande quantidade de garrafas de Bordeaux e uma coleção de vinhos do Porto, presente de um dos seus maiores fãs, o rei de Portugal. Rossini apreciava de modo especial os vinhos de sobremesa por sua "angelical harmonia". Já o tenor Luciano Pavarotti (1935-2007), exceto nos seus dias de apresentação, não dispensava os italianos Gavi di Gavi e o Lambrusco di Sorbara.

Diário do Comércio de 16/07/2010

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Qing, Qing!

Poetas e calígrafos chineses de várias dinastias têm sua história e a de suas obras associadas aos prazeres do vinho. "Como todas as culturas da terra, a refinada cultura chinesa buscou os meios para conseguir que a mente pudesse liberar-se da rigidez das convenções, da lógica racional e da limitação do cotidiano para vagabundear pelo mundo do imaginário", analisou Jacques Pimpaneau no livro Celebración de la embriaguez (José J. de Olañeta, editor/2004) – ensaio no qual costura suas reflexões com a poesia dos mestres chineses. Num primeiro momento, drogas foram usadas para essa desejada viagem de inspiração. Com o tempo, o consumo de vinho tomou o seu lugar. Não existe na China uma palavra específica para vinho – jiu vale tanto para fermentados quanto para licores. E na maioria dos casos está associada a vinho de cereais e de frutas, inclusive de uva. Taoísta, Li Bo (701-762), o "poeta embriagado", achava que só a bebida era capaz de levá-lo a lugares frequentados por imortais (para Li Bo lugares melhores do que os tomados por sábios), meio de escapar das limitações da condição humana. "Três taças e tu estás em contato com o grande Tao; uma vasilha inteira e estás em harmonia com o Universo", escreveu. Tao Yuanming (372-427) explicou em versos porque gostava do vinho: "Bebo uma taça e minhas preocupações desaparecem/Bebo outra e até me esqueço do céu". Tao Yuanming adicionava pétalas de crisântemos a seu vinho para perfumar a bebida. Su Dongpo (1036-1101), poeta mas também pintor, calígrafo e ensaísta, preparava ele próprio seu vinho de arroz. Su Dongpo e Zhang Xu, outro mestre calígrafo, antes de "desenhar" nos finos papéis, brindavam com taças de vinho em verdadeiras performances. Durante a dinastia Tang (618-907), vinho de uva aparece num poema de Wang Han: "Um bom vinho de uva em uma taça brilha à noite./Tenho desejo de beber, mas o alaúde me incita a montar no cavalo (...)" Durante as movimentações na Ásia Central, os chineses encontraram vinhedos e aprenderam a fazer bom vinho, técnica que os locais haviam herdado de civilizações do Oriente Próximo. Esse vinho de uva caiu em desuso durante vários séculos, até voltar com os missionários cristãos. Mais tarde, os soldados sob as ordens de Napoleão III chegaram à França, depois da campanha da China, impressionados com os rituais: antes do primeiro trago, brindavam com a expressão "Chín, chín! (Qing, Qing!) – onomatopéia do tilintar de taças, o hoje universal "tim-tim", nas também sinônimo
de felicidade. Em dose dupla, muita felicidade.

DC de 02/07/2010