quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Doces combinações

O único problema com os chamados vinhos de sobremesa é ... a sobremesa, escreveu em tom de blague o romancista americano Jay McInerney, com a convicção de que esses vinhos, tão bons e requintados, têm vida própria. Não é difícil concordar com ele. Outro autor, Kevin Zraly, faz um jogo de palavras: doces satisfações podem advir tanto do vinho com a sobremesa quanto do vinho como sobremesa. Zraly é enólogo e educador. Durante anos formou sob essa ótica sommeliers e enófilos no Windows on the World, o famoso restaurante destruído nos ataques de 11 de setembro em Nova York. (Há uma posição radical sobre o assunto, a de Hemingway. Conta a lenda que, em dia de toureiro enfezado, o escritor teria disparado: homem que come sobremesa é porque não bebeu o suficiente). Alguém tem alguma dúvida sobre a personalidade emancipada de um Porto ou de um Sauternes ? Um gole deste último, de preferência com uma fatia de foie gras, sempre encabeça aquelas divertidas listas das coisas indispensáveis a degustar antes de bater as botas. Negligenciados durante muitos anos, os vinhos doces passaram a ganhar espaço na carta de restaurantes, avançando hoje nas prateleiras das importadoras. A demanda também têm estimulado vinícolas, inclusive no Brasil, a reservar algumas fileiras para o seu rótulo de sobremesa. Os vinhos doces eram "como aquele parente gentil que de alguma maneira fica encoberto por outro na foto da família", compara o escritor Mark Oldman. Hoje já conseguem aparecer na fotografia. Porto e Sauternes são os arquétipos dos vinhos de sobremesa. Mais tradicional, o vinho do Porto tem sua elegância e poder baseados na fortificação (recebe aguardente vínica durante a fermentação). É o mais inglês dos vinhos portugueses. Ele pode ser um vinho de meditação, companhia solitária na leitura de um livro. Mas quando acompanhado, no queijo Stilton encontra a harmonização mais clássica. E pode ir à mesa com sobremesas à base de chocolate amargo. No batalhão fortificado do Porto estão alinhados o Sherry espanhol, o Madeira da ilha portuguesa de mesmo nome, e o Marsala da Sicília. Para o Sherry, recomenda-se um perfumado sorvete de baunilha ou uma sobremesa de figos O Madeira vai bem com torta de nozes ou uma sobremesa de chocolate ao leite, ou mesmo um doce regado com café, como o tiramisu. Os doces de figo também combinam com o Marsala (é claro que os marinheiros do almirante Nelson, que tinham o Marsala como vinho da vitória, não tinham essa possibilidade!).. O segundo arquétipo de vinho de sobremesa é o Sauternes de Bordeaux. Mais aristocrático, sempre surpreende os iniciantes com seu inusitado currículo. Afinal, como é possível um vinho de cor e doçura inimitáveis ter origem numa coisa feia dessas: uvas apodrecidas depois de atacadas por um fungo? Até parece história de queijo! Um néctar esplendoroso resulta da vinificação de uvas sémillion e sauvignon blanc completamente atacadas pelo Bortrytis cinerea, a chamada "podridão nobre". A mágica é que o fungo desidrata cada bago, concentrando açúcar. Na fermentação, nem todo açúcar se transforma em álcool e é essa a graça e a doçura natural da história, que tem o Château d'Yquem como emblema de excelência. O Sauternes é o maior representante da categoria "latest harvest", a colheita tardia, com uvas superamadurecidas. Na mesma linha do Sauternes estão os Tokaji da Hungria e outros vinhos doces elaborados no Vale do Loire e na Alsácia, além do Beernauslese e do Trockenbeerenauslese, feitos tanto na Alemanha quanto na Áustria. Zraly indica para o acompanhamento desses vinhos tortas de frutas, o indefectível crème brulée, pudim de creme, bolos de avelãs ou, por contraste, queijo Roquefort. Na lista de irresistíveis e versáteis vinhos de sobremesa com vida própria estão os vini dolci italianos, sendo o mais incensado deles o Vin Santo, tradicionalmente preparado na Toscana com as uvas Trebbiano e Malvasia. Pelo menos um historiador garante que o nome desse vinho está ligado aos monges que iam de casa em casa atendendo a necessitados e doentes. O vinho servido que gerava conforto teria recebido a alcunha de "vinho santo" (Matt Kramer tem pelo menos outra meia dúzia de versões). No rito do vin santo estão os biscotti, que são mergulhados sem vergonha nas pequenas taças. McInerney lista em Bacchus and Me (Vintage Books/Random House/2002), vários outros vinhos doces do Piemonte, como o Moscato d'Asti, o Picolit do Friuli, sem esquecer o Recioto de Valpolicella, preparado a partir de uvas passas, como os passitos e moscatos da ilha de Pantelleria, na Sicília. Santorini, na Grécia, também faz seus vin santo. Mas o doce "incandescente" Mavrodaphne de Patras, que conquistou o escritor Henry Miller antes da Segunda Guerra, é talvez o par mais harmonioso para seus doces de pistache. Do outro lado do mundo, vinificados na Alemanha e no Canadá a partir de uvas congeladas no pé, os icewines passaram a viajar o mundo em pequenas garrafas de pura doçura.

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