segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Nas barbas do Monte Ararat

Depois que os soviéticos se foram, há pouco mais de 20 anos, os agricultores da Armênia trataram de, literalmente, buscar suas raízes, as mais profundas delas enterradas nos seus então aparentemente perdidos vinhedos da autóctone cepa Areni, nas barbas do bíblico Monte Ararat. Nas últimas décadas, à época da colheita, as uvas voltaram a frequentar o altar das igrejas ortodoxas, abençoadas num rito cheio de simbolismo. Os pagãos ancestrais ofereciam os frutos em homenagem aos deuses. A prática foi absorvida ao longo dos tempos pelos fervorosos cristãos locais e hoje transformou-se numa cerimônia colorida dedicada à Virgem Maria, sempre no domingo mais próximo do dia 15 de agosto. Depois que o império soviético veio abaixo, é possível também se falar numa ressurreição do vinho da Armênia. Alguns rótulos já podem ser encontrados em vários países europeus e, mais recentemente, aportou com sucesso nos Estados Unidos. O vinho Areni Noir Karasi 2010, por exemplo, da vinícola Zorah, já foi devidamente incensado no site da crítica de vinhos Jancis Robinson, renomada especialista inglesa que é elegante defensora da abertura do mercado para variedades menos conhecidas. A região Transcaucásia, onde está a Armênia, é pesquisada pelos arqueólogos como local da domesticação da videira e de outras tantas plantas durante a "revolução neolítica". E se o alemão Heinrich Schliemann foi atrás da Antiga Tróia com a Ilíada de Homero debaixo do braço, alguns arqueólogos ligados à botânica se inspiram em passagem bíblica para formular a sua intrigante "Hipótese Noé": uma única videira, nascida nas escarpas do Monte Ararat, seria a mãe de todas as outras espalhadas pelo mundo, tal como uma Lucy vegetal. Isso porque no Gênesis está escrito que, após o Dilúvio, arca ancorada no Monte Ararat, Noé plantou a primeira videira, de suas uvas fez vinho e com ele embriagou-se. A primeira bebedeira registrada da história, como lembra o filósofo Michel Onfray. A Armênia orgulha-se profundamente de tudo isso. O Monte Ararat, que hoje está em território turco, sempre foi monumento natural da Armênia. A ancestralidade da vitivinicultura local ganhou ainda mais evidência com as descobertas arqueológicas em uma caverna perto da vila de Areni, em 2010: além de sementes de uvas carbonizadas, potes e cacos de cerâmica, os arqueólogos encontraram uma prensa e um tanque de fermentação escavado na pedra com reconhecidos 6.100 anos de idade. Para o arqueólogo molecular Patrick McGovern, da Universidade da Pennsylvania, a sofisticação desses achados da Idade do Cobre sugere que a tecnologia de produção de vinho começou provavelmente muito antes desse período. Pavel Avetisian, diretor do Instituto de Arqueologia da Armênia, atesta tratar-se do mais antigo complexo para produção de vinhos já escavado em todo o mundo. Foi esse peso da história que levou o iraniano Zorik Gharibian de volta da sua Itália de adoção à Armênia de seus antepassados para implantar a vinícola Zorah, que produz vinhos de extrema qualidade. Há doze anos cuida de vinhedos da cepa Areni Noir plantados nas encostas do Monte Ararat, a 1.400 metros de altitude. Zorik Gharibian conta que esse local pode ter sido o mesmo explorado por monges no século XIX. A ligação afetiva de Gharibian com a Armênia fez com que o projeto focasse nas cepas locais, ideia devidamente encampada pelo renomado enólogo Alberto Antonini (com assinaturas em vinhos de várias partes do globo, incluindo sua Toscana e os da bodega Alto Las Hormigas, na Argentina) e o viticulturista Stefano Bartolomei. Ambos integram desde o primeiro momento o time de Gharibian. A Armênia tem cinco zonas vinícolas e conta com dezenas de variedades autóctones. A Areni (parente da Pinot Noir) é a tinta considerada âncora dos atuais produtores. Há ainda a Garan Dmak, Nazeli e Chillar, além de uma branca especial, a Voskeat - "Pingos de Ouro". A vinícola Zorah também pensa em explorar as uvas brancas do país, mas esse projeto está sendo desenvolvido sem pressa. Por ora, Gharibian tem a Areni como menina dos olhos, a cepa de milhares de anos, provavelmente originária da região sul da Armênia. Além disso, trata de adaptar as práticas de vinificação indicadas pelos achados arqueológicos e a experiência dos locais. O vinho é primeiramente preparado em "karasì" (ânforas, em armênio), que são depois enterradas no solo. Apenas um terço é armazenado em barricas francesas e armênias. Gharibian tem certeza de que os karasì concentram a expressão da fruta. E é fiel ao mote: Zorah: 6.000 anos de história em uma garrafa. DC de 18/10/2013

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