quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O claret dos tupinambás

Uma bem-vinda "história do vinho no Brasil" estaria incompleta se não incluísse no seu primeiro capítulo pelo menos uma referência ao cauim dos índios tupinambás – esse fermentado de mandioca tantas vezes citado em obras de viajantes e antropólogos. Isso porque o cauim chegou a ser tratado por esses autores com a mesma reverência com a qual os europeus já dispensavam a seus "vinhos de verdade", convencionalmente, os fermentados do suco de uva. O francês Jean Léry aventurou-se em trajes de renda pela França Antártica de Villegaignon, enclave de curta duração na costa fluminense, no Brasil do século XVI. Chegou a conviver com tupinambás aliados do invasor e tratou dos costumes indígenas em Histoire d’um Voyage fait en la terre du Brésil (1578). Léry chegou a criar um verbo exotique, caouiner, para o ato de beber o cauim, conta José Roberto Whitaker-Penteado em O Folclore do Vinho (Centro do Livro Brasileiro/Lisboa/1980). Diz ainda que Léry foi adiante ao descrever o vinho dos tupinambás, talvez como um experiente degustador de Bordeaux faria com a sua garrafa: a bebida "é turva e espessa como borra, e tem, como que, o gosto de leite azedo. Há o cauim branco e o tinto, tal qual o vinho". Léry também tratou do cauim como fonte agregadora e ritualística, indispensável numa festa tupinambá. O mesmo status social do seu vinho europeu, propulsor de boas conversas, capaz de nos abrir para exercícios metafísicos. Com o cauim em mãos, não seria educado dizer aos canibais tupinambás que estava faltando Champagne na festa. A estudiosa inglesa Karen Bakewell garante que Montaigne (1533-1592), o célebre autor dos monumentais Ensaios, leu os relatos de Léry. Mas o contato de Montaigne (na gravura) com os tupinambás se deu também ao vivo, na tão festiva quanto constrangedora apresentação da etnia à corte francesa, em Rouen (Sting, séculos mais tarde, repetiria a cena ao levar o cacique caiapó Raoni Metuktire para a Inglaterra). Whitaker-Penteado também registra que Montaigne se interessou pelo testemunho de um criado, recém-chegado do Novo Mundo. E que toda essa curiosidade somada foi definitiva para que escrevesse o ensaio Dos Canibais. "Sua bebida extrai-se de certa raiz; tem a cor de nossos claretes e só a tomam morna. Conserva-se apenas dois ou três dias, com um gosto algo picante, sem espuma. É digestiva e laxativa para os que não estão acostumados, e muito agradável para quem se habitua com ela." Montaigne, convém lembrar, era de uma família de viticultores, chegou a ser prefeito de Bordeaux e viveu cercado de vinhedos. Em tom de blague, o crítico Sérgio de Paula Santos (1930-2010) escreveu: "(...) alguns vinhos prestam-se a combinações perfeirtas; Chablis, com ostras, Châteu d’Yquem, com foie gras etc, são 'casamentos' ideais. Para o cauim, nossa primeira bebida alcoólica, insalivado de mandioca preparado por nossas índias e cunhãs (...), qual seria o melhor acompanhamento?" O certo é que Léry foi acordado certa noite por um tupinambá de Villegaignon. Exaltado, o índio o convidava para a festa: queria lhe servir um braço humano assado. Como nas cenas descritas por Hans Staden. O vinho de uva foi apresentado aos índios brasileiros logo após a chegada das caravelas de Pedro Álvares Cabral. A carta do achamento, de Pero Vaz de Caminha, diz que os índios não quiseram comer nem pão, nem o pescado cozido oferecido a dois deles. Também não provaram o mel, os figos. E o vinho português servido numa taça também foi logo rejeitado. Mas Caminha, atento a outras cenas desses primeiros contatos, chegou a profetizar ao rei de Portugal, Dom Manuel, o Venturoso: "bebiam alguns deles vinho, e outros o não podiam beber, mas parece-me que, se a ele se acostumarem, o beberão de boa vontade". "A carta de Pero Vaz de Caminha autentica a intervenção dos portugueses na substituição do cauim pelo vinho. Grandes bebedores, transferindo-se para o Brasil, devem ter feito o possível para não perderem contato com Dioniso", escreveu Whitaker-Penteado, referindo-se ao deus grego do vinho. A cultura do vinho deve sua expansão também aos religiosos, que precisavam da bebida para suas celebrações. Nos registros de um tesoureitro quinhentista, aparece uma pipa de vinho destinada a um vigário de Olinda e a outro da Vila de Cosmos, em Pernambuco. Mas essa já é outra história. DC de 1/11/2013

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