sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Campeando por "terroir extremo"

Nasce de uma pequena vinícola em Rosário do Sul, na fronteira oeste do vinho gaúcho, um rótulo forte que ajuda a ampliar as dimensões que temos do conceito de terroir, essa palavra que os franceses souberam amar e difundir e que, em síntese, sinaliza a importância do “pertencer a um lugar” no resultado final de um bom vinho. Salamanca do Jarau, da vinícola Routhier & Darricarrère, 100% Cabernet Sauvignon, oferece uma outra lição de terroir a partir da Campanha Gaúcha: as leveduras indígenas das uvas cumprem com a ancestral tarefa de fermentação, sem ajuda de forças alienígenas (as leveduras multiplicadas e padronizadas em laboratório, compradas e inoculadas para, por exemplo, amaciar o vinho). A prática integra o conceito de “terroir extremo”, que inclui na equação, cada vez mais, a microbiologia, essencial para a personalidade dos vinhos, como explica o enólogo Anthony Darricarrère. O “senso de lugar” clássico tem como base clima e terreno (é claro que há de se considerar o homem e suas tradições), mas sabe-se que cerca de 400 dos quase mil compostos voláteis dos sabores do vinho são produzidos pelas leveduras, escreve o biólogo Jamie Goode em The Science of Wine - from Vine to Glass. A fermentação espontânea resulta em uma bebida mais rústica, com margens para surpresas. E esse é um ponto do debate que se trava entre aqueles que defendem a homogeneização (e com isso a pretensa melhor “qualidade” do vinho) e os adeptos do que diz o lugar, sem censuras, dando voz inclusive aos “bichinhos” nativos. O Salamanca do Jarau é uma edição limitada do vinho Província de São Pedro 2012, mas elaborado com uvas de um só vinhedo e que passa por barricas velhas. É um vinho de rubi intenso, translúcido, 12,5° de álcool, que exala aroma peculiar desse tipo de fermentação, ameixa vermelha, cereja, couro e cedro. Na boca, depois de uma boa evolução na própria taça, encontramos cacau, pimenta preta e noz moscada. A Routhier & Darricarrère, fundada em 2002, tira de seus 5 hectares, uvas para seus outros rótulos: Província de São Pedro Chardonnay, os espumantes Ancestral e ReD, o rosé Marie Gabi e o ReD Cabernet (com um corte de não mais de 15% de Merlot), O ReD ganhou o Brasil como “o vinho da kombi”, movido também pelo rótulo de Gabriela Puhl Darricarrère, que homenageia de maneira pop os pais da aventura vitivinícola (imperdível ainda o animado álbum de fotografias de época no site da Routhier & Darricarrère). Salamanca do Jarau, em tempo de “terroir extremo”, destaca-se também por qualidades que ultrapassam os limites da vinicultura. O vinho é peça agregadora de arte e cultura locais, a começar pelos quatro rótulos diferentes, desenhos de excepcional vigor criados pelo artista gaúcho Gelson Radaelli (veja ao lado). Foram inspirados numa lenda de formação do povo gaúcho, Salamanca do Jarau, texto do pelotense João Simões Lopes Neto (1864-1916), publicado pela primeira vez em 1913. Simões Lopes conhecia a fundo as vastidões dos pampas, a alma do gaúcho e suas charqueadas. Consta que o texto inspirou Érico Veríssimo em O Tempo e o Vento. A lenda, que bebe em tradições de uma Espanha mística, conta a história da princesa moura que aportou por aqui em uma urna vinda de Salamanca. Vale a pena conhecer a inventividade literária no original de Simões Lopes. Aqui, o resumo do resumo: a princesa moura, na pele de uma lagartixa, foi encontrada por um sacristão apaixonado que, depois de caçá-la com sua guampa (não poderia ser mesmo nada diferente disso), a liberta para a beleza com doses de vinho de missa. Fugiram para uma gruta no Cerro do Jarau; lá se amaram e tiveram os filhos que deram origem aos primeiros gaúchos. A ARTE DOS RÓTULOS - Agora às voltas com pintura em grandes telas, como as de Solidez do Céu, expostas em 2013, o artista gaúcho Gelson Radaelli sempre encontra entusiasmo para comandar o restaurante Atelier de Massas, no centro histórico de Porto Alegre. E combina as funções há 23 anos. A aproximação com os vinhos é anterior à vida de restauranter. Ele conta que, ainda menino, já circulava pelas cantinas, onde foi conquistado pelos mistérios da bebida. Por isso, a ligação da sua arte com os vinhos veio naturalmente, já que estão dentro do mesmo arco de paixões. Antes dos desenhos para o Salamanca do Jarau, tinha emprestado seus traços impressionistas para os Carrau. E para o argentino Tempo Alba Radaelli 2007 (acima), da Finca Alborada, de Luján de Cuyo, Mendoza. Nesse caso, Gelson não somente assina o rótulo, como tem seu sobrenome homenageado no batismo do vinho. Não à toa, o Atelier de Massas, com uma adega de 300 rótulos, é ponto agregador de arte e cultura em Porto Alegre, movido tanto pelas boas pastas como por vinhos que estimulam o diálogo e a convivência. Atelier de Massas Rua Riachuelo, 1482, Porto Alegre (RS) www.atelierdemassas.com.br/ dc DE 29/8/2014

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