terça-feira, 5 de agosto de 2014

O estado da Bonny Doon

Com a solenidade dos presidentes dos Estados Unidos ao discursarem anualmente sobre “o estado da Nação”, o vitivinicultor californiano Randall Grahm acaba de escrever “o estado da Doon”. A Bonny Doon é sua festejada propriedade na Califórnia, de onde saem vinhos orgânicos cultuados no mundo inteiro. Pois Randall Grahm confessa (leia em www.beendoonsolong.com/): quase perdeu a vinícola para credores insensíveis a seus projetos de longo prazo. Diz ainda que a Bonny Doon ainda procura seu rumo, abalado depois que Grahm vendeu, e isso já há cerca de 8 anos, dois dos rótulos que o levaram ao sucesso: Big House e Cardinal Zin. E os vendeu por ideologia, já que estes vinhos passaram a ser produzidos em escala, como outro vinho qualquer, e isso contrariava sua filosofia de produção limitada e mais cuidadosa. Randall Grahm é um performista (chegou a promover o funeral de um corpo feito de “contaminantes” rolhas naturais, em nome do avanço das rolhas sintéticas). É também um reconhecido pensador do vinho natural, reverenciado por seus textos, parte deles reunida na sua divertida "vinthology" Been Doon So Long. Gostam dele tanto o aristocrático crítico inglês Hugh Johnson como o escritor americano (mais para beatnik) Jay McInerney. O crítico-biólogo Jamie Goode, autor de Science of Wine, diz que Grahm é um gênio. Vem daí a surpresa pelo “estado” revelado da Bonny Doon. Randall Grahm faz vinhos biodinâmicos, gosta de experimentação, e não abre mão das teorias do educador Rudolf Steiner, pensando sua propriedade de maneira holística. Como um dos mais antigos rhôneranger (assim são conhecidos os agricultores que plantam as castas francesas do Vale do Rhône na América), já apareceu com chapéu de cowboy na capa da Wine Spectator. Um de seus vinhos cult é o Cigare Volant, elaborado com as uvas Mourvèdre e Carignane dos vinhedos de Contra Costa. E a ideia é sempre produzir blends ou vinhos varietais que melhor expressem os terrenos. Para cada um desses vinhos, sempre um rótulo criativo e fora dos padrões. A menina dos olhos de Grahm é o projeto Popelouchum, que prevê a criação de novas variedades de uvas em terras perto de San Juan Bautista, cidade originada de uma antiga missão jesuítica. Popelouchum será um jardim do Éden, onde serão desenvolvidas, em cruzamentos, hibridizações e experiências genéticas, cerca de 10 mil novas variedades –“um dos mais importantes projetos da história recente do vinho”, como o valoriza Grahm. Popelouchum é a palavra indígena da tribo dos Mutsun que alude a paraíso. Como já escrevi aqui, Grahm tem seguido os conselhos desses índios, como o jejum de contemplação e interação com o território dos vinhedos. E não despreza os devas, guias da natureza capazes de indicar as melhores ações de equilíbrio, harmonia e ordem para a construção de um jardim perfeito. Popelouchum, entretanto, está em banho maria, já que não é “monetizável” e é “ligeiramente arriscado”. Aguarda a solidificação de novos resultados da empresa a partir do que Graham chama de “rebranding”. No “estado da Doon”, Grahm informa que a vinícola já saiu do vermelho. Um dos movimentos importantes foi remapear os mercados consumidores, tumultuados após a venda dos rótulos mais célebres. Uma distribuição inacreditavelmente difícil nos EUA, com estados ainda em regime de Lei Seca, e com uma cadeia de negócios que prevê a obrigatoriedade dos "intermediários". Randall Grahm, como muitos vinicultores do seu país, luta para vender livremente seus vinhos diretamente aos consumidores de cada estado americano. E gostaria de estar com a mão na terra, cuidando das parreiras, mas tem, por ora, de passar tempo em aviões e quartos de hotel enquanto não é atendido por ferozes atacadistas. VINTHOLOGY - O crítico inglês Hugh Johnson escreveu na apresentação de Been Doon So Long (University of California Press/2009), de Randall Grahm, que o vinho também precisa de palavras em seu caminho entre ser notado e – aqui a melhor parte – bebido. Grahm tem palavras originais para o mundo de jargões dos críticos e se arrisca também na ficção vinícola, com textos como "Da Vino Commedia: The Vinferno". FREE THE GRAPES - Um mapa no site do movimento 'Free the Grapes' mostra como andam as leis da venda de vinhos nos Estados Unidos. Cada estado tem uma legislação específica em relação à venda direta das vinícolas aos consumidores. Alguns estados, graças a poderosos lobbies, mantêm os revendedores como peças fundamentais do mercado. 'Free the Grapes' em www.freethegrapes.org/ Diário do Comércio de 25/7/2014

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