domingo, 24 de agosto de 2014

"Serei o seu sommelier esta noite"

Roupa bem branca é sempre um prato cheio para molhos de tomate, shoyu e vinhos. Quem não sabe? No último caso, muitas vezes a defesa dos tecidos imaculados fica por conta de preparados sommeliers (e suas horas de voo a bordo com saca-rolhas) destinados a servi-los. Será? Pois ali naquele salão de banquetes de Glasgow estava o inglês Andy Goram, célebre goleiro do Rangers nos anos 1990, com sua impecável "camisa de gala, com seu colarinho alto de pontas viradas". Camisa que, em segundos, foi transformada em "mata-borrão de Châteauneuf-du-Pape", aquele vinho que sai da histórica região no sul do Rhône. Quem conta a história é o roqueiro britânico Alex Kapranos, líder da banda Franz Ferdinand, no divertido livro Mordidas Sonoras (Conrad/2007), uma verdadeira "turnê gastronômica". Kapranos, que antes do sucesso musical trabalhou em todo tipo de restaurante e cozinha na Grã-Bretanha, sem contar que foi entregador de fast food indiano e também "garçom de vinhos". Ele tinha sido escolhido para servir a mesa de Andy Goram naquele fatídico jantar por conta de sua neutralidade futebolística e origem – um descendente de gregos ortodoxos e que torcia para o Suderland. Os organizadores do serviço evitaram a todo custo colocar na mesa de Andy um torcedor do rival Celtic. Kapranos conta que alcançou a taça de Andy sem perceber o silencioso torcedor do Celtic atrás dele. "Isso até que ele agarra meu cotovelo com firmeza e o empurra". O estrago estava feito. O roqueiro, que já teve coluna no Guardian para suas peripécias antropológicas (afinal, ele experimentou várias cozinhas nas turnês do Franz Ferdinand), confessa que seu cargo era maior do que suas capacidades. E, se havia dez garrafas de vinho no menu, o que ele sabia dizer aos clientes era quais eram os tintos e os brancos. Hoje, praticamente todos os restaurantes que têm o vinho entre suas preocupações não dispensam um bom sommelier (ou sommelière), que é escolhido a dedo entre centenas de profissionais em formação em todo mundo. Os melhores são estudiosos da enologia, visitam vinhedos e vinícolas, controlam as adegas, fazem as compras, servem as mesas sem muito salamaleque. A escritora canadense Natalie MacLean faz um pungente depoimento sobre a ascensão da profissão em "Undercover Sommelier" , um dos capítulos do seu livro Red, White, and Drunk all Over (Bloomsbury/2006). Ela foi sommelier por um dia no Le Baccara, premiado restaurante de cozinha francesa em Québec, e percebeu entre os colegas pares de cena o grande desenvolvimento da profissão. "Ao contrário do distanciamento, os sommeliers devem aplacar a sede dos amantes do vinho com o Conhecimento", escreve. Para Natalie, idealmente um sommelier seria também uma fonte de informação sobre vinhos de todo o mundo, capaz de discorrer sobre as áreas vitícolas, os châteaux, produtores e safras. É claro que eles devem estar preparados para indicar a melhor garrafa para determinado prato, e devem ser éticos o suficiente para indicar que a melhor garrafa não é necessariamente a mais cara. MacLean destaca também o trabalho dos sommeliers ao lado dos chefs na criação de "experiências completas" de harmonização. A palavra sommelier nasceu na Idade Média francesa para nomear aqueles que testavam os vinhos para as ordens religiosas e casas reais. Mas a profissão tem um "patrono" bem mais ancestral, colecionado na rica mitologia grega. Contam que Zeus se apaixonou pelo príncipe troiano Ganimedes e o raptou para o Olimpo nas suas próprias asas, já que para a missão tinha se transformado numa águia. Ganimedes acabou desbancando Hebe na função de servir o néctar da imortalidade aos deuses, não sem antes derrubar um pouco sobre a Terra, para os mortais. DC de 22/8/2014

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