quinta-feira, 16 de outubro de 2014

A sentença do vinho

A jovem, não tem 18 anos, põe à mostra uma erudita tatuagem nas costas: In vino veritas. Ela mesma me confessa que foi um erro do tatuador, que deveria ter "escrito" Carpe Diem (Aproveita o momento fugaz), bem mais popular. O tatuador se enganou ao conferir a grafia na lista de seus latins. A concisa frase latina que a jovem carrega no corpo, In vino veritas (No vinho, a verdade), é um lema milenar, propagado com força desde a Idade Média, com essas mesmíssimas letras. E continua difundido até hoje, principalmente entre os entusiastas da bebida. Seu significado primeiro revela uma das qualidades mais nobres do vinho, seu poder de estimular as conversas, os debates, embalando afeições, promovendo encontros. O inebriado se expressaria de maneira livre, sem mentiras ou amarras. Como resumem os checos: "O vinho puro desenrola a língua". Renzo Tosi, autor do indispensável Dicionário de Sentenças Latinas e Gregas (Martins Fontes/1996) escreve que a frase In vino veritas não aparece dessa forma em nenhum autor latino clássico, mas conta que paralelos entre vinho e verdade são encontrados tanto em Horácio como em Plínio. Estes se referem, por sua vez, a um ditado popular, de origem grega, documentado por Alceu e que chegou depois "explicitamente citado como provérbio grego" a Platão, Teócrito e Plutarco: "Vinho e crianças são verazes". In vino veritas tem seu similar em quase todas as línguas modernas. Tosi destaca especialmente a francesa, rebuscada: Avant Noé les hommes, n’ayant que de l’eau à boire, ne pouvaient trouver la vérité (Antes de Noé, os homens que só tinham água para beber, não encontaravam a verdade). Lembremos que, no texto bíblico, logo depois de atracar sua arca antidiluviana, Noé plantou a primeira vinha, fez vinho e com ele se embriagou. Uma referência literária importante é a incorporação da célebre sentença latina por Rabelais, em seu Bacco in Toscana, justamente o "renascentista francês" dos excessos enogastronômicos, personalizados por Pantagruel. Já o filósofo dinamarquês Kierkegaard batizou de In vino veritas (Antígona/Lisboa/2005)) parte de um estudo sobre "os caminhos da vida", de 1845, que trata de um banquete onde os convivas falam a verdade sobre o amor e a mulher. Cada participante discursa sobre suas teses in vino e não poderiam fazê-lo "antes de ter bebido o bastante para notar o poder do vinho, ou seja, enquanto não estivesse naquele estado em que se diz muita coisa que de outro modo não se gostaria de dizer, mas sem que contudo a conexão do discurso e do pensamento fosse constantemente interrompida por soluços". Proverbial na Antiguidade é o dito "O bronze é o espelho do rosto; o vinho é o espelho da mente", que alguns atribuem a Ésquilo. "O que permanece no coração do sóbrio está na língua do bêbado" é um provérbio documentado em Plutarco que chegou ao Brasil, via europeus, para ganhar forma no certeiro e algo debochado "Cachaceiro não tem segredo". Inevitavelmente, a embriaguez e a "verdade dos bêbados" sempre estiveram presentes nos provérbios populares, realidade que algumas vezes subverte a ideia filosófica original de In vino veritas. "De vinho, abastado, e de razão, minguado", listou José Roberto Whitaker-Penteado em O Folclore do Vinho (Centro do Livro Brasileiro, Lisboa/ 1980) . Penteado traz em seu livro uma coletânea de nada menos do que 200 provérbios brasileiros que envolvem o vinho, a uva, a vide e o viticultor. "Conselho de vinho é falso caminho" pode ser contraposto a "Onde entra o beber, entra o saber". "Quando o vinho desce, as palavras sobem". O ditado escocês, do século 18, vai na mesma trilha: "Quando o vinho afunda, as palavras nadam". Mas, "se bebes vinho, não bebas o sizo", aconselham os propagandistas da temperança. Penteado explica que a maioria desses provérbios repete ipsis literis os rifões portugueses, que embarcaram para cá na bagagem dos colonizadores. Os relatos folclóricos, em todos os cantos do mundo, nunca deixaram de lado os níveis de embriaguez. Resumo e adapto aqui uma lenda mexicana, com inspiração nitidamente grega. Faz parte de The Muse in the Bottle (Citadel Press/2002), de Charles A. Coulombe. Depois dos primeiros copos, o homem é capaz de cantar como um passarinho; depois da primeira garrafa, está forte e disposto a lutar como um leão, mas quando passa de qualquer medida, age como um porco e logo, logo está na sarjeta. "Ay, que mala suerte!" DC de 17/10/2014

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