terça-feira, 8 de setembro de 2009

Delicadezas do grande Vatel

Uma frugal laranja é servida a Luís XIV. O sol ainda não se pôs em Chantilly. A fruta parece inteira no prato, mas está descascada com perfeição. E pode ser aberta num átimo, virar serpentina, deixando à vista um conjunto de gomos perfeitos, sem fiapos, para a garganta do rei. Luís XIV se extasia com a criação de Vatel (1631-1671), mestre dos Prazeres e Festividades do príncipe de Condé, o anfitrião. A cena é apenas uma das dezenas de exuberâncias enogastronômicas tomadas pelo diretor Roland Joffé em Vatel, um banquete para o rei. Nesse filme de 2000, Gerard Depardieu, na pele de Vatel, deu corpo a uma personalidade detalhista, de poucas palavras, mas à frente de fornadas de criações, tanto nas cozinhas quanto nos palcos montados nos jardins de Chantilly. O príncipe recebia o rei e uma numerosa corte para um fim de semana de pratos requintados e taças cheias. Não puderam escapar, em meio aos excessos, da sensibilidade marcante, insinuante, de Vatel. Não caberiam aqui todos os menus. Mas um toque, como uma fruta caramelada, sim: na poética carta póstuma a Anne de Montausier (Uma Thurman), por quem se apaixonou, Vatel indica à amada os vinhos de Vaucluse que estariam em seu caminho, vinhos que trariam no bouquet o aroma dos frutos das cerejeiras plantadas entre os vinhedos da região. A vida de Vatel ganhou cor na ficção, recuperada graças a uma única carta, justamente de uma das testemunhas da sua genialidade na festa de Chantilly. Muito do que se pode inferir historicamente sobre ele foi reunido em Vatel ou La Naissence de La Gastronomie (Editions Fayard/1999). Outras delicadezas, entretanto, aparecem na pena de Alexandre Dumas. Num dos capítulos do movimentado Visconde de Bragelonne, Vatel é surpreendido por seu amo, Nicolas Fouquet, comprando vinho numa simples taberna, L'Image-de-Notre-Dame, em plena Place de Grève. Fouquet foi o todo poderoso Superintendente do Tesouro francês à época de Luís XIV, mais rico que o rei e amigo de poetas, escritores e pintores. Por um instante, Fouquet chegou a pensar que sua adega andava chinfrim. Vatel explica: "Está tão bem sortida sua adega que, quando algumas pessoas vão jantar em casa, não bebem." O despenseiro, continua Vatel, não tem, por exemplo, vinho para o paladar de Monsieur La Fontaine (o poeta das fábulas). Em casa de Fouquet ele não beberia porque não gosta de vinho forte. "Faço então o que tem de ser feito." O mâitre Vatel mostra a Fouquet Vin de Joigny. Sabia que pelo menos uma vez por semana vários dos amigos do amo batiam ponto no local para beber o tal vinho (que, dizem, não faltava na adega do rei). Estava justificada a compra. Vatel aproveita para contar outro segredo: tem abastecido a adega do patrão com cidra comprada na Rue Planche Milbray, já que é a bebida que Monsieur Loret consome em Saint-Mandé. À estupefação de Fouquet, Vatel completa: "Certamente esta é a razão dele comer com tanto prazer em sua casa". Fouquet gosta que Vatel trate dos convidados e amigos com a mesma distinção e carinho com os quais atende a vontades de duques, nobres e príncipes. E fala em dobrar o salário de Vatel. Para quê? Vatel logo murmura: "Ser recompensado por ter feito a obrigação é algo humilhante". Vatel trabalhou com Fouquet na casa em Saint-Mandé (onde todos os luxos privados eram permitidos) e o acompanhou depois ao castelo de Vaux-Castelas. O rei quis conhecer o local e foi recebido com banquete memorável, mas que acabou selando a sorte de Fouquet. Luís XIV gostou dos requintes à mesa mas não do exibicionismo do anfitrião – um súdito não pode ofuscar o rei, ainda mais um rei-sol. Logo mandou encarcerá-lo no castelo de Pignerol. De lá Fouquet só sairia morto, 16 anos depois.

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www.provenceweb.fr/e/vaucluse.htm

Diário do Comércio de 4/setembro de 2009

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