sexta-feira, 6 de novembro de 2009

A mesa, riserva superiore da memória

Alfonso Cevola se lembra bem dos piqueniques que fazia com os tios Vittina e Peppino em áreas campestres da Sicília de seus antepassados. Aboletavam-se no Cinquecento munidos de frescos arancini (bolinhos de arroz na forma de laranja), uma feta de queijo caciocavallo e água mineral gasosa para misturar com um "vigoroso" vinho tinto tirado da cantina, fresco e forte. No caminho, parada obrigatória na vinícola de um amigo da família, onde Fiats e Ferraris se misturavam a barris e garrafas. Era hora da sobremesa, pequeno capi duzzi di ricotta com Marsala Riserva Superiore, de 10 anos – Marsala que é um dos orgulhos dos habitantes dessa terra árida que abriga inebriantes ruínas da Magna Grécia. Essa é apenas umas das muitas histórias do blog "On The Wine Trail in Italy", de Alfonso Cevola, ítalo-americano, viajante contumaz e detalhista, que há muito tempo escreve sobre vinhos italianos e desde 2006 tem publicado na internet alguns textos que recriam a atmosfera do início do século passado, quando a sua família chegou aos EUA. Não à toa, seu blog é avaliado, por internautas de peso, como um dos espaços mais poéticos sobre vinhos e suas circunstâncias. Ele coloca paixão nas lembranças da Itália de seus pais e avós, aquela dos pequenos vinhedos e pequenas propriedades, e do seu EUA de imensidões. Se diz "sustentado pelas energias da Califórnia, Texas, Sicília e do Adriático". O rico acervo pessoal de fotografias contribui para o clima nostálgico, época em que as refeições em família, com a divisão da comida e do garrafão de vinho, eram parte de um rito sagrado. Cevola nos mostra uma foto muito expressiva, de 1972, na qual aparece com sua avó. Ele pede ao leitor que preste atenção à mesa: todas as delícias feitas por ela, tempo de uma Itália que celebrava a importância de fazer as coisas com as próprias mãos, a pasta, a roupa, o sapato... Mãos que manuseavam ferramentas na colheita das uvas com a mesma delicadeza com que faziam a pasta no quintal, à sombra de figueiras e encantos de um jardim de rosas. Hoje "o vinho é melhor, a comida é mais saudável, mas não é a mesma coisa", escreve Cevola. A memória cultivada proustianamente por Cevola, entretanto, não o impede de proclamar à exaustão um Carpe Diem, que pode vir embalado com exercícios para descoberta do atual vinho do coração, como o daquele copo com um jovem Cerasuolo di Vittoria, num pátio à sombra de palmeira, onde ouvia a avó cantar e cozinhar enquanto o avô aguava as plantas, aromas de orégano e manjericão regando seus sentidos com luminosidade e vigor. Minha avó Rosa Troncarelli nasceu em Roma. Muito diferente de Cevolo, nunca soube nada de sua rotina e dieta de imigrante, trabalhadora que foi, com meu avô Eugênio Quinteiro, em fazendas de café da região de Botucatu. Mas pelo menos uma migalha de memória foi registrada: pão às vezes mergulhado em vinho tinto (misturado com água) era alimento já no café da manhã.

http://acevola.blogspot.com/2007/11/finding-your-wine.html

Diário do Comércio de 6/11/2009

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