terça-feira, 24 de março de 2020

Homo imbibens

     Em algum momento da pré-história, uma criatura não diferente de nós, com olhos sensíveis a frutas coloridas, um gosto por açúcar e álcool, e um cérebro familiarizado com os efeitos psicotrópicos de certo caldo, moveu-se da inconsciente procura por frutas fermentadas, como faziam os macacos bêbados, para a produção e o consumo intencionais. Essa é a “hipótese paleolítica” da descoberta do vinho, que vem sendo estudada pelo arqueólogo biomolecular Patrick E. McGovern, do Museu de Arqueologia e Antropologia da Universidade da Pennsylvania, na Filadélfia, e foi descrita em Uncorking the Past. Esses viventes da Idade da Pedra Lascada tomavam seu vinho há 2,5 milhões de anos.
     McGovern, caçador das bebidas ancestrais, tem desvendado aquele a quem chamou de Homo imbibens, mas para isso usa um contexto ainda maior, mostrando que o álcool ocorre na natureza desde as profundezas do espaço e esteve presente no caldo primordial que pode ter gerado a primeira vida. A essa visão com gosto de metafísica soma a da Antropologia, mostrando que os primeiros hominídeos e chimpanzés tiveram um poderoso incentivo para se empanturrar de frutas fermentadas e outras fontes ricas em açúcar, como o mel, aproveitando ao máximo os frutos só encontrados em determinada estação. Era uma excelente solução para sobreviver num ambiente geralmente hostil e pobre de recursos, escreve McGovern.
     Ao levar as uvas de plantas silvestres (Vitis vinifera ssp. sylvestris) das florestas do Cáucaso para sua caverna (há certo consenso entre os estudiosos de que a primeira videira é nativa dessa região), o "milagre" teria se consumado. Frutas maduras transportadas em recipientes de madeira ou em odres primitivos de couro, violentamente sacudidas, liberavam a substância natural presente nas cascas para o início da fermentação. O arqueólogo acredita que dessa forma nasceu um vinho de baixo teor alcoólico, disputado pelos homens das cavernas. A partir da observação, trataram de repetir a experiência. Era uma espécie de Beaujolais Noveau da Idade da Pedra.
     O americano Leo Cullum (1942-2010), assíduo cartunista da The New Yorker, celebrou com bom humor a experiência pré-histórica: desenhou degustadores dentro de uma caverna. Do alto de seu barbão descuidado, depois de experimentar a poção natural, um deles proclama como um connoisseur: "Estou sentindo notas de um mamute fofo!"


     Patrick E. McGovern viaja o mundo atrás das mais remotas evidências da produção de vinho, cerveja e outros néctares alcoólicos, visitando sítios arqueológicos de cidadezinhas perdidas na imensidão chinesa ou escavados nas grandiosas montanhas iranianas. Quando não está em campo, está mergulhado no sofisticado laboratório da universidade, examinando potes e ânforas milenares, peças que guardam menores que microscópicos resquícios de outras civilizações e que têm ajudado a compor a trajetória alimentar do homem.
     Numa cerâmica de 7 mil anos, retirada das montanhas Zagros, no Irã, identificou, com técnicas de DNA, o vinho de uvas mais antigo já encontrado numa cozinha neolítica. Em Jiahu, província de Henan, às margens do rio Amarelo, norte da China, um vinho fermentado de várias frutas era preparado com sofisticação há cerca de 9 mil anos. Hoje há empreendedores que correm atrás dessas descobertas para tentar reproduzi-las comercialmente.
    A Dogfish Head, uma cervejaria de Delaware, requisitou a assessoria do cientista para lançar a Midas Touch, cerveja inspirada nos resíduos encontrados numa tumba de 2.700 anos, na Turquia. A Dogfish Head já recriou até um “grog”, Kvasir, baseado em traços de bebidas encontradas em sítios na Escandinávia, datados de 1200 a.C. e do ano 200. Kvasir é um deus da mitologia nórdica, resultado da soma da saliva de todos os outros deuses. Kvasir foi morto por dois irmãos anões, que retiraram-lhe todo o sangue e o misturaram com mel, resultando no “hidromel da poesia”.
                                         
     

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