quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Torrada, biscotto, madeleine

John Naughton, professor emérito de Public Understanding of Technology da British Open University, autor de From Gutemberg to Zuckerberg: What You Really Need to Know About the Internet, publicou na edição de 19 de outubro de 2015, no The Guardian (veja link abaixo) uma notícia que atinge a ideia cristalizada com a qual o mundo tratava “a mais poderosa metáfora da literatura francesa”: o bolinho na forma de concha, mergulhado numa xícara de chá, com o qual Marcel Proust (1871-1922) conseguia voltar a dias de sua infância em Combray. Muitos anos fazia que, de Combray, tudo quanto não fosse o teatro e o drama do meu deitar não mais existia para mim, quando, por um dia inverno, ao voltar para casa, vendo minha mãe que eu tinha frio, ofereceu-me chá, coisa que era contra os meus hábitos. A princípio recusei, mas, não sei por quê, terminei aceitando. Ela mandou buscar um desses bolinhos pequenos e cheios chamados madalenas e que parecem moldados com aquele triste dia e a perspectiva de mais um dia tão sombrio como o primeiro, levei aos lábios uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena. Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou o meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção da sua causa. Esse prazer logo me tornara indiferentes as vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, tal como o faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou antes, essa essência não estava em mim; era eu mesmo. Cessava de me sentir medíocre, contingente, mortal. De onde me teria vindo aquela poderosa alegria? Senti que estava ligado ao gosto do chá e do bolo, mas que o ultrapassava infinitamente e não devia ser da mesma natureza. De onde vinha? Que significava? Onde aprendê-la? Bebo um segundo gole em que não encontro nada demais que no primeiro, um terceiro que me traz um pouco menos que o segundo. É tempo de parar, parece que está diminuindo a virtude da bebida. É claro que a verdade que procuro não está nela, mas em mim. (De No Caminho de Swann, em tradução de Mário Quintana) Pois antes da madeleine, a primeira versão de No Caminho de Swann, livro I de Em Busca do Tempo Perdido, tinha como recurso de expressão uma prosaica torrada. Segundo manuscritos divulgados na França, no primeiro rascunho, de 1907, a torrada com mel é que dispara o gatilho da nostalgia proustiana. Numa segunda versão, a torrada dá lugar a um biscoito. A famosa madeleine e seus pedaços embebidos em chá só ganharam seu lugar na história da literatura (e da gastronomia) na terceira versão do escritor. http://www.theguardian.com/books/2015/oct/19/proust-madeleine-cakes-started-as-toast-in-search-of-lost-time-manuscripts-reveal § Os biscoitinhos preferidos da nossa yorkshire Meg ficam guardados numa antiga lata de madeleines da Fauchon.

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