sexta-feira, 27 de março de 2020

Bacalhau de peito aberto



     (Este texto se vale da biografia autorizada do bacalhau, assinada por Kurlansky.)


      Um bacalhau embarcado hoje na Noruega leva poucos dias para chegar ao Brasil e, assim, trocar as águas do Báltico e do Atlântico pelo mar verde de azeite de formas e caçarolas. Muito menos tempo do que seus ancestrais, também secos e salgados, levavam para aportar aqui no século XVI, época das grandes navegações. O papel do bacalhau nas aventuras que expandiram os limites do globo e do paladar é desfiado na "biografia autorizada" Bacalhau, o peixe que mudou a história do mundo, de Mark Kurlansky, um pesquisador minucioso da história e da sociologia da alimentação, que tem no sofisticado portfolio nada menos do que a tradução de Le Ventre de Paris, de Emile Zola.
     Aportar em terras novas não é bem o caso já que o bacalhau dos Descobrimentos era quase sempre carga de sobrevivência, 80% proteína, iguaria não perecível devorada nas embarcações que deixavam o Velho Mundo e cortavam mares "nunca d'antes navegados".  O bacalhau entrou na lista oficial de provisões da Marinha Real portuguesa com uma penada de D. João II (1455-1495), ironicamente o rei que não gostava de peixe. O monarca apostou na salubridade dos exemplares enviados por portugueses desbravadores da Terra Nova, então um dos principais pontos de pesca do bacalhau. A Terra Nova de Gaspar Côrte Real era a mesma Newfoundland do italiano anglicanizado John Cabot, hoje território canadense.
     Os franceses também tinham os pés nos pródigos mares do Hemisfério Norte. Todos reivindicavam o título de descobridores do santuário. Os bascos sempre zanzaram por lá. Havia o mesmo "entusiasmo de uma corrida do ouro", conta Kurlansky. Euforia alimentada pelo crescimento do mercado: "lá pela metade do século XVI, 60% de todo peixe consumido na Europa era bacalhau, porcentagem que se manteve estável por mais duzentos anos".
     Os diários de bordo das expedições de Cabral e Vasco da Gama não relatam como a proteína do mar chegava às tripulações famintas, antes que estas fossem consumidas pelo escorbuto e outras doenças que dizimavam nas naus portuguesas. É bem provável que as postas carnudas, desmanchando-se em lascas, ficassem com os comandantes e apaniguados. As "espinhentas sobras" alimentariam os porões. "O fado não canta a saudade e sim a posta perdida", resume Paiva de Carvalho, da Academia do Bacalhau de Toronto.

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     Primeiro foram os vikings, que ocuparam a Islândia e a Groenlândia, entre os anos 800 e 1200. Antes de zarparem com seus velozes barcos de duas velas, avançando das terras geladas para a Europa, matando monges e freiras na Inglaterra, barbarizando e negociando rumo ao Sul, os vikings já falavam dos peixes que ferviam em seus recortados fiordes e conheciam a técnica de secá-los. Fileiras e fileiras de bacalhau de "peito aberto" eram expostas ao vento frio nos degraus rochosos da sua costa. Cada peixe perdia cerca de quatro quintos de seu peso e transformava-se numa peça dura como tábua, cortada em pequenos pedaços, como biscoitos. E com nutrientes capazes de sustentar as diabruras de Eirik, o Vermelho.
     Até hoje a cidadezinha portuária de Lofoten, na Noruega, com seu colorido casario art nouveau, é cenário dessa rotina. Numa única temporada, fevereiro a maio, a indústria de Lofoten pendura em seus "varais" para secar 16 mil toneladas do bacalhau mais nobre, o Gadus morhua. No total, cerca de 50 mil toneladas de bacalhau saem das águas da região.
    Depois dos vikings, os bascos. Eles tinham sal em abundância, mercadoria então impensável para os nórdicos, e começaram a usá-lo no processamento do bacalhau. O sal aumentava a durabilidade do alimento. Além de bravos pescadores, os bascos eram bons comerciantes. No raiar do século XI, já tinham tradição da pesca à baleia e da venda de seus produtos. O bacalhau os ajudava a enfrentar as durezas das perseguições aos cetáceos gigantes, arpões de prontidão, como o dos célebres personagens de Moby Dick, de Melville. A ligação desse povo com o mar é exagerada na história de pescador que corre por lá: o bacalhau possuiria o dom da fala. E falaria basco...
     "Os bascos ficavam mais ricos a cada sexta-feira", escreve Kurlansky, referindo-se aos dias de jejum determinados pela Igreja Católica. Além dos 40 dias da Quaresma e da Semana Santa, havia vários outros períodos de abstinência de carne vermelha, totalizando quase a metade dos dias do ano. Carnes de bacalhau e de baleia eram enquadradas como carnes frias, vinham da água, e estavam liberadas. O bacalhau tornou-se "um soldado mitológico na cruzada pela observância cristã", analisa Kurlansky.
     A grande procura pelo bacalhau acirrou a disputa entre os países pesqueiros e não foi nada fácil estabelecer limites e territórios. Três guerras do bacalhau eclodiram e tumultuaram os negócios. Nenhum tiro foi disparado, não houve baixas, a não ser a destruição de muitas redes consideradas "devastadoras" de uma e de outra frota.
     Com o tempo, a pesca deixou de ser aventura de homens dispostos a enfrentar "latitudes solitárias", em áreas literalmente congeladas e eternamente enevoadas. Tornou-se prática predatória com redes e dragas, bem distante das tradicionais linhadas com muitos anzóis. Para desespero dos homens que ganhavam a vida no mar, a pesca passou a ser controlada. Os preços do produto dispararam. A queda dos estoques levou o Canadá, em julho de 1992, a proibir a pesca em áreas da Terra Nova. Os únicos "pescadores" autorizados integram o projeto Sentinel Fishery. Zarpam para monitorar "estoques" e acompanhar o desenvolvimento de filhotes. Todos à espera da volta dos generosos cardumes.

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     O príncipe dos Mares do Norte atende pelo nome científico de Gadus morhua. Assim foi registrado no Systema Naturae do sueco Lineu , em 1758. É o mais cobiçado da família. Assim como seus algozes, é dado a aventuras e, na época da desova, migra pelas águas acompanhando correntes menos frias. Seus parentes estão também nos mares da Noruega, Rússia, Islândia, Canadá e Alasca.
     Corpo robusto, olhos pequenos, "barbicha" no extremo da mandíbula inferior, 5 aletas, cauda reta, o bacalhau da Terra Nova tem manchas cor de âmbar no dorso verde oliva e a barriga branca. Um exemplar de 20 anos mede, em média, um metro, e chega a pesar 50 quilos.
     Quando fisgado, não costuma reagir. Dizem que esse comportamento desestressado está relacionado à carne branca tão apreciada. Quando o assunto é comida, é predador voraz, ataca até anzóis sem iscas e nem filhotes desavisados escapam. A fêmea põe até 8 milhões de ovos. O escritor Alexandre Dumas criou uma imagem poética para essa fertilidade: "se nenhum acidente atrapalhasse a maturação dos ovos e todos conseguissem transformar-se em peixes, demoraria apenas três anos para que o mar ficasse coalhado de bacalhaus de modo que poderíamos atravessar o Atlântico sem molhar os pés, caminhando sobre eles". Fora da ficção, só 6 vingam e 2 chegam à idade adulta.

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     Auguste Escoffier (1846-1935), pai da moderna cozinha francesa, tinha Portugal em alta conta, por ter o país garantido lugar de destaque ao bacalhau na cena gastronômica. Taillevent, cozinheiro do rei Carlos V, da França, servia o bacalhau com molho de mostarda ou manteiga derretida. Apesar de não ter o bacalhau em suas águas, os portugueses iam longe para trazer o peixe até a cidade do Porto e, de lá, para Lisboa e o mundo. Há tantos pratos preparados com a iguaria em Portugal que, como diz o batido ditado, é possível comer um bacalhau diferente a cada um dos 365 dias do ano.
   Na Idade Média, graças à abundância do pescado e o preço não tão salgado, o bacalhau freqüentava a mesa da nobreza e dos pobres. Enriquecia panelões de arroz para numerosas famílias caribenhas. Ou reinava quase sozinho, só o nobre lomo, em receitas que os espanhóis batizaram de bacalao a la vizcaína ou o al pil pil, com pimenta.
     Do bacalhau se come tudo, até os ossos. Na Islândia, as espinhas ficam de molho em agraço (suco de uvas verdes), são posteriormente cozidas e viram mingau. Em outras épocas, as crianças das terras gélidas comiam também as peles fritas com manteiga. Enquanto outras, mundo afora, tiveram de beber na marra o fortificante óleo de fígado de bacalhau.
     Em 1571, Elizabeth da Áustria foi recepcionada em Paris com banquete que incluía tripas do peixe. Os bons de garfo lambem os beiços é com as línguas cozidas, na verdade as gargantas do bicho. "Têm sabor mais forte e uma textura mais gelatinosa", escreveu Kurlansky. Na lista de históricas receitas, o autor destaca as bochechas fritas (discos carnudos que vêm com a mandíbula), as ovas, quase sempre recheadas, além das bexigas natatórias e cabeças de bacalhau assadas. Sim, bacalhau tem cabeça.

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