sexta-feira, 25 de junho de 2010

Um Madeira pela Independência

George Washington e Thomas Jefferson brindaram a Declaração de Independência dos Estados Unidos, em 4 de julho de 1776, com cálices de Vinho da Madeira – uma pista de como a bebida fortificada, produzida com uvas das "violentas" escarpas da ilha portuguesa, teve presença marcante na sociedade americana. Em Oceans of Wine (Yale University Press/2009), o autor David Hancock, historiador da Universidade de Michigan, analisa o impacto do vinho Madeira na história do comércio transatlântico, entre 1640 e 1815, e mostra como esse vinho ajudou a moldar o gosto americano. Hoje 65% das garrafas produzidas na Madeira – 3,2 milhões de litros em 2009 – foram exportadas para a União Européia. Estados Unidos e Japão também aparecem na lista de bons consumidores. O livro de Hancock recebeu o Gourmand World Cookbook Awards de 2009 como o melhor livro sobre vinho europeu. E venceu também o Prêmio Louis Gottschalk 22009-2010, patrocinado pela American Society for Eighteenth-Century Studies. Oceans of Wine foi celebrado por pequisadores da história da alimentação e do período colonial porque examina documentos nunca antes estudados, reconstruindo a vida de produtores, distribuidores e consumidores. E o mais interessante: desmonta as interpretações tradicionais “que identificam Estados e Impérios” como força motora do comércio do período. No retrato de Hancock o mercado aparece auto-organizado e descentralizado. O vinho da Madeira tem uma história de mais de 500 anos, com a introdução da uva Malvasia de Creta. O arquipélago passou a exportar seu vinho rapidamente, logo 25 anos depois de descoberto, no início do século XV. Já nos seus primórdios, a vinha era um dos integrantes da sua chamada “trilogia agrária”. O trigo e a cana eram os outros dois trunfos. Nos séculos XVIII e XIX o Funchal, na costa sul da principal ilha, era considerada a Cidade do Vinho, beneficiada em urbanização e embelezamento arquitetônico graças às riquezas do Madeira e às mãos dos exportadores ingleses. Muitos deles aprenderam a gostar do Madeira em solo americano. Com a Independência, de volta à Inglaterra, levaram na bagagem o gosto pelo Madeira. Hoje a produção com a pioneira Malvasia é pequena. A maior parte das vinícolas usa a Sercial, Verdelho, Boal e Tinta Negra.


http://www.vinhomadeira.pt/Home-1.aspx

http://www.madeira-live.com/pt/wine.html

Diário do Comércio de 25/06/2010

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Randall Grahm, transbordante

O prometido livro do vinicultor californiano Randall Grahm, Been Doon So Long (University of California Press/2009), é tão transbordante quanto seu autor. Reúne ensaios filosóficos sobre a produção do vinho – ele mesmo já se definiu como philosophe manqué – e textos de palestras que fez para plateias especializadas ao redor do mundo, além de sua cuidada e irreverente produção ficcional sobre o tema: “viterature”, poesia e até óperas. Grahm foi o mais autêntico dos rhonerangers, como são conhecidos os americanos que cultivam à francesa cepas clássicas do Vale do Rhône, mourvèdre e grenache. A vinícola Boony Doon foi fundada em 1983, criou vinhos cultuados mundo afora como o Cardinal Zin e Big House. Hoje Grahm “se livrou” desses vinhos que começaram a ser produzidos em escala e está mergulhado em vinhedos da uva riesling nas escarpas do rio Columbia, em Washington. É defensor intransigente do terroir e da qualidade das uvas na equação do bom vinho. É também um dos craques do vinho biodinâmico.
O crítico inglês Hugh Johnson escreve na apresentação do livro que o vinho também precisa de palavras em seu caminho entre ser notado e – aqui a melhor parte – bebido. Conhecemos bem as palavras viciadas da crítica de uma nota só e seu jargão excludente. Por isso o elogio rasgado do inglês às palavras originais de Grahm, um escritor que, mais do que tudo, está envolvido até a alma na produção de vinhos – a paixão do viticultor encharcando a pena do escritor. Grahm levou bom humor a uma indústria que se fechava em seriedades. Seus rótulos fora do comum, alegres, foram os primeiros passos. Grahm "reescreveu" textos clássicos a partir de uma verve satírica. Em "Cheninagin’s Wake – James Juice Takes de Wine Train", de 1994, uma de suas primeiras incursões literárias, Grahm traz o vinho e a uva chenin (a roussane a a marsanne como coadjuvantes) para o terreno de James Joyce, o celebrado Finnegans Wake e todo seu experimentalismo. “Chenin again, began again! Slake. Roussanity, marsannemanme! Till sousendsthee. Mls. The keys to. Swallowed! Oy vay a Rhône a lapse a loved a long the”. Em "Don Quijones, the Man for Garnacha", a brincadeira (séria, como assinala Johnson) é com Dom Quixote. No texto de Grahm, a crítica aos rankings de vinhos aparece no dia a dia de Don Quijones. No lugar de viajar em textos de cavalaria, está mergulhado em guias de vinho. Don Quijones é inclusive assinante da newsletter bimensal Avocado del Vino (uma referência ao polêmico crítico americano Robert Parker Jr. e sua revista Wine Advocate) e da “risível” El Gran Inquisidor del Vino (Wine Spectator?), capazes de provocar, como na realidade, uma mistura de “raiva e fascinação” no herói. Em "Da Vino Commedia: The Vinferno", a mais ambiciosa das "adaptações", com os pés nos lagares de Dante Alighieri, uma alegoria “al dente” escrita em plena negociação de venda de parte da vinícola e todas as angústias do negócio. Entre os vinhos e vinhedos do Grahm da ficção, sua Vinthology, encontramos também Franz Kaffeika e J.D.Salignac, este com o autobiográfico A Perfect Day for Barberafish.

https://www.bonnydoonvineyard.com/biography/

Diário do Comércio de 18/06/2010

segunda-feira, 14 de junho de 2010

África do Sul, sem conditum

O crítico inglês Hugh Johnson escreveu que o grande naturalista Plínio, o Velho (23-79 d.C.) recomendava aos viajantes da Roma Antiga carregarem na sua bagagem um frasco de conditum, mistura de mel e pimenta capaz de mascarar o sabor de vinhos intragáveis que certamente encontrariam pelo caminho. John e Erica Platter, autores de Africa Uncorked – Travels in Extreme Wine Territory (The Wine Appreciation Guild/2002) fizeram de uma garrafa de licor de cassis o seu conditum. Eles cruzaram a África para retratar a cultura da vinha nos seus mais inóspitos pontos: do Marrocos, Argélia e Egito, no Norte, a Zimbawe, Namíbia e África do Sul, no outro extremo, cruzando outra série de países durante a jornada. Pobreza e descuido, associados às guerras políticas e de religião, não faltam no livro de viagem. Somente na África do Sul, que os Platter conheciam muito bem – trabalharam ali durante mais de 20 anos –, talvez tenham dispensado o licor de cassis. Milhares de rótulos, de centenas de vinícolas, dão pujança à indústria sul-africana e novos empreendedores derrubam antigos perímetros, em avanço que atende à demanda da globalização. Há vinhedos até nos campos de diamante do país, a mais de 1.000 quilômetros do tradicional coração da viticultura local. No Cabo, alguns produtores elaboram vins de soleil, valorizando a natureza climática da região. Outros apostam na uva pinotage, sua marca registrada. E muitos dão o toque local a cepas internacionais, com destaque para a cabernet sauvignon e a shiraz. Duas das mais qualificadas importadoras brasileiras, Mistral e Vinci, oferecem vários rótulos imperdíveis da produção sul-africana. Os vinhedos chegaram ao sul da África com a Companhia Holandesa das Índias Orientais. O comandante Jan Van Riebeeck cravou a sua bandeira em Table Bay, em 1652. Não tardou para que chegassem mudas de hanepoot (denominação local da muscat d'Alexandrie) e steen (chenin blanc) para o indispensável vinho. Hoje a África do Sul tem mais chenin que o próprio Vale do Loire, a terra primeira da variedade. “Hoje [2 de fevereiro de 1659], graças a Deus, pela primeira vez fizemos vinho com uvas do Cabo...”, escreveu Riebeeck no seu diário. Era um vinho branco, doce, que décadas depois encantaria o mundo como vinho de Constantia (Napoleão Bonaparte não passava sem um cálice). Com Simon Van der Stel, sucessor de Riebeeck, a colônia ganhou um modelo europeu de produção e de arquitetura – marcas deixadas em Constantia e Stellenbosch, ainda hoje respeitáveis áreas vitivinícolas. E se o primeiro vinho de prestígio foi o Moscatel, o de maior originalidade nasceu das mãos de Abraham Izak Perold (1880-1941), então professor da Universidade de Cape Town. Como primeiro professor de Viticultura da Universidade de Stellenbosch, cruzou a pinot noir, a uva dos Borgonha, e a resistente cinsault. Conseguiu, em 1924, sementes que foram plantadas na residência oficial. Ao ser transferido de Stellenbosch, Perold deixou a experiência para trás. Tempos depois, outro mestre, Charlie Niehaus, passeando de bicicleta perto da antiga casa de Perold, notou jardineiros em sua azáfama. E conhecedor da pesquisa com as sementes, salvou as mudas crescidas da sanha dos carpidores. Nascia a pinotage, que teve seu papel ampliado com a retomada da viticultura pós-Apartheid, nos anos 90. Uma primeira história da pinotage já foi escrita pelo entusiasta e estudioso inglês Peter May. Em Pinotage – Behind the Legends of South Africa’s Own Wine (Inform & Enlighten/2009), May dá cor à descoberta de Perold, decifrando segredos escondidos em cadernetas de antigos cientistas do Cabo.

Diário do Comércio de 11/06/2010