segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Taça ardente dos românticos

Os escritores românticos faziam do vinho suas metáforas mais ardentes e atormentadas. Em Fausto, de J.W. Goethe (1749-1832), flui o vinho da tentação mefistofélica, o “balsâmico sumo das uvas” que turba a razão. Em O Sofrimento do Jovem Werther, o jovem da fatal desilusão amorosa traz a taça de vinho nas mãos em consumação exagerada, acompanhante do aturdimento. Goethe, escritor de Fausto, poeta e também cientista, foi o último renascentista da Alemanha. Com um detalhe: estava extremamente envolvido com os vinhos. Gostava dos feitos na região do Reno, que aprendeu a gostar desde a infância, com o próspero avô, comerciante de vinhos. O Reno e seus vinhedos sempre compuseram também a paisagem sentimental de Friedrich Hölderlin (1770-1843), como anotou Miguel Ángel Muro Munilla no estudo El cáliz de letras: Historia del vino em La literatura (Fundación Dinastia Vivanco/2006). Em 'O Retrato do Avô', o poeta Hölderlin (na gravura central) descreve os vinhedos plantados na colina da sua terra natal, Lauffen am Neckar, e fala do vinho – esse “fogo ancestral e puro” capaz de unir gerações. Para ele, era preciso que até as crianças pequenas experimentassem esse produto de esmero do homem e sua terra. Na Alemanha de fundação, a pátria para onde sempre retorna o viajante, como escreve Munilla, “não há colina sem uma vinha”. Até a Grécia clássica que ilumina a poesia de Hölderlin aparece sob a reverência que este faz a Dioniso/Baco, o deus do vinho que também é o deus mais próximo da poesia – um Baco que triunfa pela alegria. Em seu canto “a nossos grandes poetas”, Hölderlin conclama seus pares a saírem da letargia por meio do vinho sagrado e báquico. Em Bonaparte, “ídolo da individualidade e do gênio romântico”, Hölderlin escreve: “Os poetas são como ânforas sagradas/que guardam o vinho da vida,/ a alma dos heróis.” A leitura do livro do espanhol Munilla é um guia fundamental para quem pretende conhecer a presença e a influência do vinho na obra de escritores e poetas de todos os tempos, desde o primeiro vinho épico, o mesopotâmico Gilgamesh, aos escritores modernos, com destaque para bens explorados textos dos literatos da terra de Cervantes.

DC de 27 de agosto de 2010

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Esnobes de plumagem eriçada

Quem está entrando agora na fascinante roda do vinho não pode deixar de conhecer um guia diferente de todos os outros – The Official Guide to Wine Snobbery (Barricade/2003), de Leonard S. Bernstein. O livro pode ser lido de duas maneiras: como manual para compor coro com as aves raras das salas de degustação (capazes de “eriçar a plumagem verbal” diante de uma boa garrafa de Cabernet Sauvignon, diz a crítica Natalie MacLean) ou feito crítica às afetações e salamaleques que podem ser evitados sem prejuízo dos ritos do vinho e de todos os seus prazeres. “Limpar o palato” com um pequeno pedaço de pão é a senha de entrada na fraternidade, escreve Bernstein, que valoriza essa prática para o bom desfrute da bebida. Recomenda com humor: nunca anuncie “estou limpando meu palato”, pois vai soar como um gargarejo à base de Listerine. O ponto alto para o esnobe, escreve Bernstein, o palco onde pode brilhar sem inibição, é no ritual da decantação. Decantar o vinho, cerimônia que os ingleses sempre levaram à risca com seus vinhos do Porto e Clarets, tanto serve para remover borras de tintos de longa guarda, como simplesmente para deixar a bebida respirar. A sofisticação estética fica por conta do anfitrião, na escolha de um belo decanter – as casas de cristais criaram peças magníficas – combinado com uma rústica vela. Há algo mais teatral do que identificar a chegada dos resíduos iluminando a garrafa por trás? O autor considera também outra regra a ser enfrentada na vida e nos salões, a de que somente os vinhos envelhecidos são vinhos apreciáveis. Para isso, maneja uma metáfora cheia de arte: um colecionador pode ter um valorizado Jackson Pollock para mostrar ao vizinho, mas vai ter também um Rembrandt na sala. “Não estamos falando de dinheiro, mas de tradição, idade.” (Pergunto: não há tradição na degustação de vinhos recém saídos do tonel, o viticultor piemontês abrindo seu honesto Barbera ainda com um quê de fermentação, colocando na mesa rústica a massa trufada e a carne de caça como faziam seus antepassados?) Bernstein lembra que os esnobes estão atentos aos dilemas das harmonizações (podem até cair em esparrelas: afinal, que molho escolher para o pato no Lutèce? Laranja ou Framboesa?) O fato é que são facilmente reconhecíveis, incapazes de disparar “Chambertains aqui , Musignys acolá”, sem citar também Troisgros pra lá e prá cá e um Bocuse a cada meia hora de conversa.

Diário do Comércio de 20/08/2010

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Vinhos rutilantes de Homero

Se o leitor se aventurar na paisagem altiplana entre a “urbe-de-muitas-ruas” e o oceano “ensimesmado” – de um lado Tróia “de belos muros”, de outro, naus gregas multirremes ao mar Egeu “altissonante”–, vai se deparar não só com valentes soldados gregos de “belas cnêmides”, troianos de “elmos crinifúlgidos” e destroços da guerra sanguinária animada por Ares, mas também com semi-deuses e homens de verdade diante de sacrifícios, festas, hospitalidade, ensinados pelo grande Zeus, o "ajunta-raios". É na Ilíada e Odisséia de Homero, poemas recitados a partir de 800 a.C. e até hoje apreciados, que estudiosos encontraram detalhes das experiências enogastronômicas desses povos. Uma comovente passagem da Ilíada, cravada como "ínclita" lança em alguns de seus 15.693 versos, foi destacada por Veronika Grimm em Food - The History of Taste (University of California Press/2007), livro organizado pelo historiador Paul Freedman: versos contam como o irado Aquiles, “pés-velozes”, preparou ovelha e serviu pães e vinho ao troiano rei Príamo, quando este veio reclamar o corpo do filho Héctor. Decidido o resgate em franca conversa de valentes, Aquiles diz: “Pensemos na ceia agora, ancião. A Tróia, depois, levando o filho, o poderás prantear, fonte de multilágrimas.” Nenhum outro autor da Antiguidade tratou com tanta força da dupla carne e vinho. Seus bravos heróis não podiam lutar de estômago vazio. Depois dos sacrifícios aos deuses, a carne era dividida, colocada em espetos e assada para todos. Após as devidas libações, grandes taças de vinho misturado com água tomavam conta dos banquetes. Homero descreve os vinhos doces e as poções revigorantes: o kykeon levava escuro vinho da Pramnia, cevada, mel e queijo de cabra ralado. Laódice, rainha de Tróia, acreditava que o vinho animava o homem exausto. Mil medidas de vinho de Lemno enviou o filho de Jasão a Agamêmnon e Menelau. Aos demais aqueus, vinho era vendido ou trocado por bronzes, ferros polidos, bois vivos, peles e escravos. Quando Odisseu "multiastuto" visitou Aquiles, ganhou boa recepção: “'Depõe sobre a mesa, ó Menéside, a maior das crateras, mistura o mais puro vinho, uma copa dá para cada um dos hóspedes: estão sob o meu teto os que me são mais caros!' Pátroclo obedeceu. Dispôs à luz do fogo uma larga travessa, com lombo de ovelha e costado de cabra gorda e um suculento dorso suíno." Até que a gula por comida e vinho fosse “expulsa”. (Os epítetos aqui usados são da tradução da Ilíada de Haroldo de Campos, como Homero, "o-que-ajusta-o-canto".)

Diário do Comércio de 13/08/2010

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Hemingway era uma festa

Foi em pleno mar do Caribe, a bordo do barco El Pilar, sintonizando informações meteorológicas, que o escritor Ernest Hemingway (1899-1961) ficou sabendo que ganhara o Prêmio Pulitzer com o livro O Velho e o Mar, publicado um ano antes, em 1952. Fugindo do costume, teve de comemorar a notícia a seco. Mary Hemingway conta em How it Was, livro sobre a vida com o escritor em Cuba, que os dois tiveram que se contentar em abrir uma lata de sopa de rabada e se virar com um pedaço de queijo. Os champagnes preferidos, Perrier-Jouet e Lanson Brut, tiveram de ficar para o desembarque. A sede de Hemingway nunca foi segredo. Entre os anos 1921 e 1928, repórter e escritor numa Paris que era uma festa, dividia mesas fartas e bebidas com grandes artistas e escritores. Ezra Pound, Gertrude Stein, James Joyce, Miró e Picasso eram alguns deles – a famosa Geração Perdida. O tenente Henry, personagem de A Farewell to Arms (Adeus às Armas), de 1929, encarnava o espírito de Hemingway: “Não fui feito para pensar. Fui feito para comer.” No mesmo livro, spaghetti ao alho e óleo regado com garrafas de Barbera compunha a cena para a seguinte fala: “Comida pode não ganhar a guerra, mas não perde nenhuma.” As citações enogastronômicas nas obras de Hemingway foram reunidas em Dining with Hemingway (William P. Moore/Lulu.com/2008). Para uma bela galinha flambada no próprio molho, com Armagnac, manteiga e mostarda, Hemingway relacionou na revista Esquire, em 1935, seis possibilidades de harmonização: vinhos de Capri, St. Estephe, Corton, Pommard, Beaune ou Chambertin. Numa célebre fotografia,o Nobel de Literatura de 1954 aparece com um de seus gatos – chegou a ter dezenas deles em seu refúgio cubano. À sua frente, um indefectível de Chianti na tradicionalíssima garrafa com palha. Moore relata que Hemingway apreciava também os vinhos Valpolicella, um branco seco chamado Vesuvius e não dispensava uma grappa. O escritor, na verdade, sempre esteve mais associado aos cocktails. Era o grande embaixador da Bodeguita del Medio, em Havana, onde ciceroneou personalidades como Brigitte Bardot, Nat King Cole, Jimmy Durante, Errol Flynn. Todos inebriados com a mistura de seu célebre Mojito.

DC de 6/08/2010

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Archestratus, o harmonizador

Era 350 a.C. E o poeta grego Archestratus depois de viajar por toda Magna Grécia e vários pontos do Mediterrâneo e Egeu, enfrentando lonjuras da terra e os perigos do mar, escreveu um detalhado guia enogastronômico. “Naturalmente” em hexâmetros, rítmica associada aos versos épicos de Homero. Vários trechos do poema, entretanto, só foram salvos do esquecimento graças menos à prática das cópias do que às citações. Athenaeus de Naucratis, em sua obra Deipnosophistae (Filósofos à Mesa), do final do século III a.C., deu vida a 62 fragmentos de Archestratus, assim como fez com incontáveis autores da Grécia Clássica. Douglas Olson e Alexandre Sens, autores de Archestratos of Gela – Greek Culture and Cuisine in the Fourth Century BCE (Oxford University Press/2003), calculam que o escrito tinha cerca de 1.200 linhas, como era comum para um papiro – 330 versos foram preservados por Athenaeus. Trata-se de um saboroso roteiro pan-helênico com dicas dos melhores ingredientes e melhores comidas. O texto de Archestratus foi batizado de Hedupatheia, que estudiosos traduzem para Vida de Luxo. Peixes e frutos do mar eram as grandes delícias da mesa de então e ganharam muitas observações de Archestratus. Enguias? Louvadas ao extremo quando pescadas no estreito de Messina. Polvos? Os mais carnudos vêm de Thasos e Karia. Lagostins? Os de melhor qualidade são encontrados nos mercados de peixes nas ilhas Lipari e no Helesponto. Mel? Tem de ser o de Atenas – ou pelo menos de outro ponto da Ática. Pães? Toda refeição que se preze começa com eles, além de bolos de cevada. O preciosista Archestatrus entra em cena: melhores se preparados com a cevada de Eresos, em Lesbos, a cevada do deus Hermes. Os vinhos? Nenhum supera o que escorre da ilha de Lesbos, nem mesmo o que vem de Biblos, na Fenícia. Archestratus também dá conselhos sobre banquetes: a coroa de flores na cabeça dos convivas, indispensável, assim como os unguentos e as perfumadas brasas das lareiras. É autor de uma das primeiras harmonizações enogastronômicas que se tem notícia. Numa tradução livre: Quando você estiver degustando seu vinho, peça para alguém trazer-lhe uma salsicha, um pedaço de leitoa envolvida com cominho, vinagre forte e sylphium. Além disso, sirva-se de assados de toda classe de tenros pássaros da estação. Mas nunca faça como os siracusanos (ele mesmo era natural de Gela, perto de Siracusa, na Sicília) que sem nada no estômago, bebem como rãs. E nada de beber o vinho de Lesbos com favas, grão de bico, maçãs ou figos secos.


http://latis.exeter.ac.uk/classics/undergraduate/food3/archestratus.htm

DC de 30/7/2010