Se o leitor se aventurar na paisagem altiplana entre a “urbe-de-muitas-ruas” e o oceano “ensimesmado” – de um lado Tróia “de belos muros”, de outro, naus gregas multirremes ao mar Egeu “altissonante”–, vai se deparar não só com valentes soldados gregos de “belas cnêmides”, troianos de “elmos crinifúlgidos” e destroços da guerra sanguinária animada por Ares, mas também com semi-deuses e homens de verdade diante de sacrifícios, festas, hospitalidade, ensinados pelo grande Zeus, o "ajunta-raios". É na Ilíada e Odisséia de Homero, poemas recitados a partir de 800 a.C. e até hoje apreciados, que estudiosos encontraram detalhes das experiências enogastronômicas desses povos. Uma comovente passagem da Ilíada, cravada como "ínclita" lança em alguns de seus 15.693 versos, foi destacada por Veronika Grimm em Food - The History of Taste (University of California Press/2007), livro organizado pelo historiador Paul Freedman: versos contam como o irado Aquiles, “pés-velozes”, preparou ovelha e serviu pães e vinho ao troiano rei Príamo, quando este veio reclamar o corpo do filho Héctor. Decidido o resgate em franca conversa de valentes, Aquiles diz: “Pensemos na ceia agora, ancião. A Tróia, depois, levando o filho, o poderás prantear, fonte de multilágrimas.” Nenhum outro autor da Antiguidade tratou com tanta força da dupla carne e vinho. Seus bravos heróis não podiam lutar de estômago vazio. Depois dos sacrifícios aos deuses, a carne era dividida, colocada em espetos e assada para todos. Após as devidas libações, grandes taças de vinho misturado com água tomavam conta dos banquetes. Homero descreve os vinhos doces e as poções revigorantes: o kykeon levava escuro vinho da Pramnia, cevada, mel e queijo de cabra ralado. Laódice, rainha de Tróia, acreditava que o vinho animava o homem exausto. Mil medidas de vinho de Lemno enviou o filho de Jasão a Agamêmnon e Menelau. Aos demais aqueus, vinho era vendido ou trocado por bronzes, ferros polidos, bois vivos, peles e escravos. Quando Odisseu "multiastuto" visitou Aquiles, ganhou boa recepção: “'Depõe sobre a mesa, ó Menéside, a maior das crateras, mistura o mais puro vinho, uma copa dá para cada um dos hóspedes: estão sob o meu teto os que me são mais caros!' Pátroclo obedeceu. Dispôs à luz do fogo uma larga travessa, com lombo de ovelha e costado de cabra gorda e um suculento dorso suíno." Até que a gula por comida e vinho fosse “expulsa”. (Os epítetos aqui usados são da tradução da Ilíada de Haroldo de Campos, como Homero, "o-que-ajusta-o-canto".)
Diário do Comércio de 13/08/2010
terça-feira, 17 de agosto de 2010
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