terça-feira, 24 de março de 2020

O vinho da Areni e a hipótese Noé


     Depois que os soviéticos se foram, há cerca de 30 anos, os agricultores da Armênia trataram de, literalmente, buscar suas raízes, as mais profundas delas enterradas nos seus então quase perdidos vinhedos da autóctone cepa Areni, nas barbas do bíblico Monte Ararat, onde a arca de Noé teria batido com seus bichos.
     Nas últimas décadas, à época da colheita, as uvas voltaram a frequentar o altar das igrejas ortodoxas. Os pagãos ancestrais também ofereciam os frutos a seus deuses. A prática foi absorvida ao longo do tempo pelos fervorosos cristãos locais e hoje transformou-se numa cerimônia colorida dedicada à Virgem Maria, sempre no domingo mais próximo do dia 15 de agosto.
     Depois que os soviéticos se foram foi possível também se falar numa ressurreição do vinho da Armênia. Alguns rótulos podem ser encontrados em vários países europeus e, mais recentemente, aportaram nos Estados Unidos. O vinho Areni Noir Karasi 2010, da vinícola Zorah, foi elogiado pela crítica de vinhos inglesa Jancis Robinson, defensora intransigente da abertura do mercado para variedades menos conhecidas. Jancis Robinson é autora, com Julia Harding e o botânico suíço Jose Voullamoz, do referencial Wine Grapes, estudo biogenético de muito fôlego que traz descrições detalhadas das 1.368 cepas de uvas em produção hoje no mundo. A Areni é uma delas.
     A Transcaucásia, onde está localizada a Armênia, é pesquisada pelos arqueólogos como local da domesticação da videira e de outras tantas plantas durante a “revolução neolítica”. E se o alemão Heirinch Schielmann foi atrás da Antiga Tróia com a Ilíada de Homero debaixo do braço, alguns arqueólogos ligados à botânica se inspiram em passagem bíblica para formular a sua intrigante “Hipótese Noé”: uma única videira, nascida nas escarpas do Monte Ararat, teria sido a mãe de todas as outras espalhadas pelo mundo. No livro Gênesis está escrito que, após o Dilúvio, arca ancorada no Monte Ararat, Noé plantou a primeira videira, dela fez vinho e se embriagou. Teria sido a primeira bebedeira devidamente registrada da história, lembra o filósofo Michel Onfray, em A Razão Gulosa.
      A ancestralidade da vitivinicultura local ganhou ainda mais evidência com as descobertas em Areni. Pavel Avetisian, diretor do Instituto de Arqueologia da Armênia, afirma tratar-se do mais antigo complexo para produção de vinhos já escavado.
      Foi esse peso da história que levou o iraniano Zorik Gharibian de volta da sua Itália de adoção à Armênia de seus antepassados para implantar a vinícola Zorah. Há mais de dez anos anos, cuida de vinhedos da cepa Areni Noir plantados nas encostas do Monte Ararat, a 1.400 metros de altitude. Gharibian conta que esse local pode ter sido o mesmo explorado por monges no século XIX.
     A ligação afetiva de Gharibian com a Armênia fez com que o projeto focasse nas cepas locais, ideia devidamente encampada pelo renomado enólogo Alberto Antonini (com assinaturas em vinhos de várias partes do globo, incluindo sua Toscana e os da bodega Alto Las Hormigas, na Argentina) e o viticulturista Stefano Bartolomei. Ambos integram desde o primeiro momento o time de Gharibian.
     A Armênia tem cinco zonas vinícolas e conta com dezenas de variedades autóctones. A Areni (parente da Pinot Noir) é a tinta considerada âncora dos atuais produtores. Há ainda a Garan Dmak, Nazeli e Chillar, além de uma branca especial, a Voskeat - "Pingos de Ouro".  Por ora, Gharibian tem a Areni como menina dos olhos, a cepa de milhares de anos, provavelmente originária da região sul da Armênia. Além disso, trata de adaptar as práticas de vinificação indicadas pelos achados arqueológicos e a experiência dos locais. O vinho é primeiramente preparado em karasì (ânforas, em armênio), que são depois enterradas no solo. Apenas um terço é armazenado em barricas francesas e armênias. Gharibian tem certeza de que os karasì concentram a expressão da fruta. E é fiel ao mote: Zorah: 6.000 anos de história em uma garrafa.
 



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