quinta-feira, 18 de junho de 2020

A partir de uma natureza-morta


(Marmelo, Repolho, Melão e Pepino)






     Quando em 1602, no seu estúdio em España, Juan Sánchez Cotán concluiu sua natureza-morta Marmelo, Repolho, Melão e Pepino, a marmelada era uma febre nos banquetes ingleses.
     Já o melão suculento, de herança árabe, reluzia ali em España mesmo, da Andaluzia para as mesas postas no Real Monastério del Escorial, o monumento barroco de Filipe II no coração da Serra de Guadarrama. Das cozinhas reais também saíam para a mesa do rei: guisados de caça, manjar branco e “azumbres de albillo” (um azumbre, medida de inspiração árabe, corresponde a dois litros; no caso, de vinho da uva branca Albillo).
     Quando em 1602, Juan Sánchez Cotán completou o quadro, Cervantes ainda trabalhava na primeira parte do seu Dom Quixote, publicada em 1605. A escrita de Cervantes também era uma pintura, mas uma pintura maneirista: a realidade dura do “Filipe de turno” misturada a sonhos que também alimentam e seguram um país.
     Na Espanha desse início do século XVII, a sopa de repolho e os pepinos serviam para matar a fome de pobres, anos de miséria da Edad del Mortero – alimentos triturados e bem cozidos para a tragédia dos homens sem dentes.
      A fome do pintor Juan Sánchez Cotán era de outra natureza: sair das “obrigatórias” cenas religiosas para os bodegones da vida. “Seu estilo hiperreal e temas austeros fizeram dele um revolucionário”, anotaram os críticos. Na Espanha, bodegones eram tavernas, mas também um estilo muito próprio de natureza-morta.
     Esticada como massa, a pasta translúcida de marmelo ganhava desenhos impressos com selos e moldes da nobreza. O brasão de armas de Filipe V da Espanha foi estampado numa dessas marmeladas festivas, no século XVIII. O molde está hoje, limpinho, no Museu do Pão de Ulm, na Alemanha. Na mesa de doces do quadro Lazarus and Dives, do pintor de Antuérpia Frans Franken, há um prato de marmelada colorida; a massa de marmelo tingida de rosa para ganhar vivacidade e enfeitar os banquetes dos reis.
    A carne de membrillo, a marmelada, chegava a Londres em navios embarcados na Espanha, em Gênova, França e Portugal. Marmelade era um lusitanismo na Inglaterra, porque justamente derivada da palavra marmelo, em português, de um país que fazia desses doces muito antes dessa febre. Doce prescrito por John Parkinson, herbarista de James I, em 1629, por suas qualidades digestivas, enquanto o mundo estava mesmo de olho nas suas propriedades ditas afrodisíacas. As prostitutas de Londres, nessa época eram docemente chamadas de marmalade madams.

    
Os ingleses também apreciavam uma água cordial, chamada Ratafia de Marmelos, usando para isso frutas que ficavam durante algumas semanas mergulhadas em brandy.
     Os melões cantaloupes, casca raiada e polpa entre o laranja salmonado e o amarelo esverdeado, eram populares na Andaluzia, sementes cultivadas pelos árabes que ocuparam a região. Colombo, a serviço dos reis católicos, levou sementes de melões do Haiti para a América espanhola na sua segunda viagem, em 1493.
     Juan Sánchez Cótan pendurou numa janela um marmelo maduro contra um fundo negro, início de uma curva descendente perfeita, composta ainda de um repolho, também atado num cordão (suspensão que era arma contra insetos e vermes comilões e doentios), mais um melão cortado (de salivar) e um de seus pedaços. O final da comestível hipérbole terminou com um pepino. 
     


Mais de quatro séculos depois, Ori Gersht, artista israelense baseado em Londres, inspirado em Cotán, tratou literalmente de explodir uma natureza-morta com a mesma hipérbole. Montou um cenário propositalmente muito semelhante ao criado pelo pintor Juan Sánchez Cotán. Mas sua lista de legumes e frutas foi modificada. No lugar do melão, uma abóbora. O marmelo foi substituído por uma romã. Todos alimentos disponíveis, de uma forma ou de outra, importados, congelados, frescos, cultivados ali mesmo ou em hortas distantes, em outros continentes. Com uma câmera de altíssima resolução e altíssima velocidade, Gersht filmou a trajetória de uma bala cruzando o cenário. Em câmera lenta, vemos o projétil atravessando e explodindo a romã, criando mandalas sangrentas, de suco vermelho.
     Em 1603, Juan Sánchez Cotán, depois de Marmelo, Repolho, Melão e Pepino (que está no Museu de Arte de San Diego), fechou seu atelier em Toledo e entrou para a vida religiosa, tornando-se um monge da ordem cartusiana num mosteiro em Granada, silenciando-se e trocando os bodegones por temas religiosos místicos.
     Ori Gersht, depois de estilhaçar a romã, fez mais uma das suas, explodindo arranjos de flores, semelhantes aos pintados em naturezas-mortas do século XVIII rococó. A série foi intitulada Blow Up e sobre ela Gersht declarou: “Estou pensando em cenários onde, em um lugar, há uma guerra muito sangrenta, enquanto em outro lugar pessoas estão vivendo um estilo de vida confortável e decadente.”

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     A mula de guia vinha enfeitada com fitas vermelhas e tinha o “arriamento mais bonito da tropa”. No peitoral, um conjunto de campainhas anunciava ao longe a passagem da carga de marmelos. Os tropeiros sentiam orgulho de ver seus burros, “puxados” pela mula, transportando no lombo até 200 quilos da fruta, escreve o marmelopolense Olinto Donizette Mota. Os marmelos eram então extraídos das plantações no Distrito de Queimada, município de Delfim Moreira, em Minas Gerais.
     O mercado de marmelo para a marmelada era disputado por uma dezena de fábricas, geran
do empregos para os habitantes locais e os de várias cidades da região.Tanta riqueza levou a população de Queimada a uma luta por emancipação. Até que um referendo, em 1962, a transformou em município de Marmelópolis.
     Hoje a demanda das grandes indústrias brasileiras da marmelada é atendida por marmelos importados da Argentina e do Uruguai. Enquanto doces de marmelo saem caprichosamente de São João do Paraíso, também em Minas, como de Marmelópolis.




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