quinta-feira, 27 de março de 2014

Vinhos que valem orações

Vestida com tradicional hábito preto, a abadessa Clementia Killewald dá as boas-vindas aos turistas na Abadia de Santa Hildegard, em Rüdesheim, no Vale do Reno, Alemanha. Segue tradição beneditina de bem receber os visitantes "como a Cristo". Além de pouso, sossego e orações, o mosteiro oferece também os frutos do trabalho das 55 freiras que ali vivem - têm entre 25 e 94 anos - e seguem à risca o sintético e profundo ora et labora (reza e trabalha) de São Bento. Dos seus recheados fornos, apresentam biscoitos, massas e farinha feitas com dinkel, uma saudável espécie de trigo que cresce na região desde remoto 5000 a.C. .De seus vinhedos de não mais de 2,5 hectares, saem vinhos das uvas Riesling e Spätburgunder (como os alemães chamam a Pinot Noir). Seguindo outra das regras de São Bento, "os monges devem viver do trabalho de suas mãos", as irmãzinhas fazem de tudo na abadia, da colheita das uvas aos rótulos das garrafas, desenhados manualmente e que ilustram escritos e ideias da monja pregadora Hildegard. Duas dessas religiosas estão estudando para serem mestres vinhateiras, o que indica que os vinhos terão ainda mais qualidade´. A produção monacal de vinhos, licores, cervejas, geleias, queijos, bolos e outras delícias doces tem uma tradição de muitos séculos. Desde a Idade Média, cada abadia mantinha pelo menos um vinhedo para a produção do vinho ritual, para a missa. Sendo que "os monges vendiam o excedente para peregrinos e convidados, como alguns fazem até hoje", escreve a jornalista Madeline Scherb em A Taste of Heaven (Tarcher-Penguin/2009). Ao apresentar as bebidas e as receitas feitas com produtos de mosteiros da Europa e dos Estados Unidos, Madeline acabou criando um inusitado roteiro de viagem. A autora visitou a Abadia New Clairvaux, uma comunidade de monges cistercienses (trapistas) na cidade de Vina, na Califórnia. Em New Clairvaux, sinal dos tempos, houve uma divisão do trabalho. Enquanto os monges mantêm os vinhedos, a vinificação foi entregue ao produtor Aimée Sunseri, representante da quinta geração de vinicultores da família. Frei Paul Mark Schwan comemora a combinação dessa experiência californiana com a histórica paixão dos trapistas, que fizeram fama com seus vinhedos na Europa do século XII. O papel dos religiosos na expansão da vitivinicultura foi fundamental. Um dos exemplos borbulhantes é o da criação do Champagne pelo abade Dom Pérignon (1638-1715), na Abadia de Hautvillers. Séculos antes, a região vinícola de Côte D'Or, na Borgonha, tinha ficado marcada pela presença dos beneditinos e seus caprichados vinhedos, uma história que começou com a fundação da Abadia de Cluny, no ano 910. Em 1098, quase um século depois, foi a vez da Ordem Cisterciense, com a construção da Abadia de Cîteaux, a sudeste de Dijon. A vida de austeridade como mandamento dos "monges de branco" os levou à completa dedicação à agricultura, especialmente aos vinhedos. Na Abadia de Santa Madalena, na Provença, os monges ainda produzem vinhos com Syrah, Grenache e Cinsault cultivadas nos próprios vinhedos. Orgulham-se de ter um vinho ao estilo de Côtes de Ventoux. Já no Mosteiro de Kosterneuburg, o maior e mais antigo da Áustria, ao norte de Viena, de adegas do século XIV saem bons vinhos preparados com Sauvignon Blanc, Gewüstraminer, Pinot Noir e outras variedades do país. Diário do Comércio de 28/04/2014

segunda-feira, 24 de março de 2014

Os Carraro jogam no 4-4-2

O time da vinícola Lídio Carraro, em Bento Gonçalves (RS), já marcou vários gols nos últimos anos. O mais recente, um golaço, é a conquista dos direitos de produzir o vinho oficial da Copa do Mundo da Fifa de 2014, um projeto especial, desenvolvido desde o final de 2011, responsável por novos investimentos e grande movimentação na vinícola. Os Carraro já tinham experiência nessa área: seus vinhos foram escolhidos como oficiais de eventos importantes como os Jogos Panamericanos de 2007 e da temporada de Stock Car 2010. Mas agora é diferente: serão 600 mil garrafas com o rótulo Faces, vinho desenvolvido para a Copa, e não apenas um selo garantidor. Apresentado na importante Vinexpo, em Bordeaux, o "vinho da Copa" (nas versões tinto, branco e rosé) caiu no gosto dos importadores e já embarcou para vários países. O Faces branco homenageia o Rio Grande do Sul, com um blend das uvas Moscato, Riesling Itálico e Chardonnay, as variedades mais plantadas no Estado. Já o Faces tinto é resultado de um corte com 11 variedades diferentes, desta vez também colhidas em vinhedos de terceiros. "Foi a escalação das uvas dos melhores terroirs do Sul do Brasil", diz Patrícia Carraro, a diretora de marketing da vinícola. Por trás do Faces está a enóloga-chefe Mônica Rossetti, que a revista VIP já batizou de "Felipona". Diferentemente do esquema tático 4-3-3 de Felipão, entretanto, ela aposta no tradicional 4-4-2. As uvas do ataque são a Cabernet Sauvignon e a Merlot, que representam mais de 50% do blend (convém lembrar que Lídio Carraro é viticultor pioneiro do cultivo da Merlot na Serra Gaúcha). No meio de campo, participando na complementação do aroma, aparecem as cepas Teroldego, Touriga Nacional, Pinot e Tempranillo. Na defesa, uvas mais tânicas garantem o corpo e estrutura do vinho: Tannat, Nebbiolo, Ancellotta e Alicante. Estas são as "zagueironas", como brinca o crítico de vinhos gaúcho Irineu Guarnier Filho. Para o gol, Mônica escalou a uva Malbec, eficiente no retrogosto, gol fechado durante toda a partida. Os irmãos Patrícia, Giovanni e Juliano Carraro, hoje à frente da vinícola, fazem parte da quinta geração de vinicultores da família. Os primeiros imigrantes chegaram do Vêneto ao Rio Grande do Sul em 1875. Nessa época, os Carraro se dedicaram às frutas. Foi a partir dos anos 1970 que Lídio Carraro passou à viticultura e a uma busca obsessiva pelos melhores locais de plantio, a começar de sete hectares no Vale dos Vinhedos. A adega foi criada em 1998. A fundação da Lídio Carraro veio em 2001, com a aquisição de mais 200 hectares em Encruzilhada do Sul, na Serra Sudeste, hoje um dos grandes pólos vitivinícolas do País. A primeira safra, de 2002, foi comercializada em 2004. O salto da vinícola se deve, sem dúvida, ao empenho da nova geração. Lembro-me bem da jovem Patrícia, ainda meio tímida, mas já apaixonada pelos vinhos da família, ao nos apresentar seus rótulos Quórum e Elos no restaurante La Bourse, da Bolsa de Valores de São Paulo, isso há quase sete anos. Hoje, Patrícia tira de letra as câmeras, defendendo, com paixão redobrada, a qualidade e a "pureza" dos vinhos da Lídio Carraro. Pureza que significa, principalmente, que a bebida não passa por nenhum tipo de barrica. O respeitadíssimo crítico de vinhos Jorge Lucki elogia os Nebbiolo da vinícola e o empenho desses jovens em busca de qualidade. Vinhos de "boutique" é certamente um rótulo preciso para esses vinhos elaborados com extremo profissionalismo, reconhecidos por especialistas do Le Monde e da revista Decanter. Certa vez escrevi aqui que esses irmãos Carraro eram os "Young Bloods gaúchos", emulando jovens australianos e franceses que injetaram "sangue novo" aos negócios das famílias. Patrícia explica que conseguem furar a barreira de um mercado muito fechado jogando fora de casa, ou seja, participando incansavelmente de feiras internacionais. Mas obtêm muita visibilidade ao jogar em campo próprio, atraindo para as cuidadas instalações da vinícola e seus organizados vinhedos jornalistas e negociantes de todo mundo. DC de 21/03/2014

sexta-feira, 14 de março de 2014

Galerias de vidro

Os rótulos de vinho ascendem cada vez mais a status de arte. Sua "contemplação" tem se transformado em plataforma de "aquecimento" dos sentidos, tanto diante de uma prateleira como numa sessão de degustação. Assim, a "viagem" do vinho pode muito bem começar na compra do bilhete, antes da garrafa aberta. Os vinicultores sabem muito bem disso. Enquanto os mais famosos chatêaux franceses ainda mantêm nas garrafas as "fotografias" das casas de origem, evocando em gravuras sua calcárea tradição, jovens espanhóis, portugueses e americanos apostam até mesmo em modernos "selfies" para seus rótulos. Outros, certamente não se importando com anacronismos, dão espaço a elementos da cultura de massa, dos qua drinhos, do cinema, libertando-se da ditadura do "design de terroir". Uma seleção comentada desses rótulos foi reunida por Tanya Scholes em The Art and Design of Contemporary Wine Labels (Santa Monica Press/2010). O canadense Alain Laliberte, que tem uma coleção de mais de 160 mil rótulos guardada em Ontário e é candidato natural ao Guinness Book de Recordes, conhece bem os esforços de produtores, principalmente os das novas gerações, em criar seus rótulos-arte, geralmente com assessoria de escritórios especializados nesse tipo de design. "É marketing, sim", diz Laliberte. Podem não ter relação direta com o conteúdo da garrafa, mas nada impede que tanto rótulo e bebida sejam companheiros no quesito qualidade. Gabriele Micozzi, professor de marketing na Universidade Politécnica de Marche, na Itália, escreve em L'importanza dell'etichetta, que modificar uma embalagem pode incrementar o turnover anual da empresa em quase 170%. A reconhecida vinícola brasileira Lídio Carraro, em Bento Gonçalves, tem belos rótulos, mas orgulha-se mesmo é do logotipo da casa: um cacho de uva que é ao mesmo tempo m um mapa do Brasil. A vinícola Routhier & Darricarrère, em Rosário do Sul, na Campanha gaúcha, foi premiada pela Associação Brasileira de Embalagem pelo rótulo do aclamado "vinho da kombi", desenhado por Gabriela Darricarrère, diretora de marketing da vinícola. Na receita de marketing do crítico inglês Peter F. May, um "viciado" em Pinotage, não pode faltar humor, que, reforça, "não é o oposto de seriedade". May é autor do pocket book Marilyn Merlot and Naked Grape (Quirk Books/2006), com alguns rótulos dos mais inusitados. Um dos campeões de criatividade é o americano Randall Graham, que fez inteligentes interferências nos tradicionais rótulos de châteux, como em Le Cigare Volant. Um campeonato de rótulos em Quebéc, em 2013, no qual Laliberte foi um dos jurados, premiou a estampa do ice wine Coldhearted Riesling 2007, com seu divertido homem de cachecol. As garrafas de vinho transformaram-se em galerias de vidro desde que, em 1927, o barão Phillippe de Rothschild passou a convidar artistas para desenhar seus rótulos. Chagall, Picasso, Miró, Braque, o pop Andy Warhol (que imortalizou o próprio barão), criaram desenhos inéditos para as garrafas, inaugurando uma tradição mantida até hoje, com novas safras de artistas. As de 2011 trazem desenho do francês Guy de Rougemont. Valorizados estão, então, não só os vinhos do Châteaux Mouton Rothschild, como suas "obras de arte". Confira algumas décadas dessa história de original "mecenato" em Mouton Rothschild - Paintings for the Labels (1945-1981),/New York Society Book/1983. DC de 14/03/2014

sexta-feira, 7 de março de 2014

Espoquem os champagnes !

Muitas excepcionais e safradas garrafas de champagne foram abertas depois que o Ministério da Cultura e Comunicação da França selecionou o "projeto" Coteaux, Maisons & Caves de Champagne como candidato ao título de Patrimônio da Humanidade da Unesco. Os "climats da Borgonha" também foram incluídos na mesma candidatura. Até a vitória da indicação, foram alguns anos de preparação de dossiês técnicos, de muita campanha e de coleta de assinaturas de "embaixadores" da ideia. Três cenários básicos são listados na proposta dos produtores de Champagne por serem os mais representativos de toda a cadeia e tradição do trabalho vitivinícola na região, incluindo vinhedos, vinícolas, locais de armazenamento e pontos de comercialização da bebida. A primeira paisagem para a qual se pleiteia proteção é aquela onde estão as mais antigas vinhas de Champagne, entre Cumières e Mareuil-sur-Ay. Depois, vêm as "maisons" nas colinas de Saint Nicaise, em Reims, e aquelas ao longo da elegante Avenida de Champagne, em Epernay. Caves e adegas centenárias desses locais são a terceira força da candidatura. Enquanto o borbulhante vinho champagne, "a bebida da celebração e do consolo", é mais do que protegida por regras de produção (Il n'est Champagne que de la Champagne; Não é champagne se não da Champagne), agora o que se defende é a proteção da histórica e bela paisagem onde este vinho é produzido (com borbulhas) desde a Renascença (no alto, foto aérea das colinas de Hautvillers). Um resumo técnico em defesa da proposição foi preparado pela Association Paysages du Champagne e pode ser baixado na internet (www.paysagesduchampagne.com). Já o livro oficial da candidatura, Coteaux, Maisons & Caves de Champagne (Editions Larenée), atualiza a atividade vinícola na região e mostra particularidades muitas vezes esquecidas diante da reverência à bebida na taça. A obra foi escrita por Jacques e Catherine Rivers, com imagens de Michel Jolyot, reconhecido fotógrafo do Reims especializado na paisagem local. A candidatura foi adotada por inúmeras entidades, entre elas a centenária Union des Maisons de Champagne e Les Vignerons de Champagne, que agrega 1.500 produtores, responsáveis por 90%. dos vinhedos da região. DC de 7/3/2014