sexta-feira, 28 de maio de 2010

Pequeno tratado rabelaisiano

Os entusiastas do vinho e dos livros sobre a bebida comemoram a tradução, para o francês, de um pequeno texto atribuído a François Rabelais (1483-1553), de originais desaparecidos, que vivia kafkaniamente "encarcerado" em três exemplares de um livreto em língua checa, um deles guardado na Biblioteca do Museu Nacional de Praga. O Traité de bon usage de vin (Éditions Allia) é um texto de curiosidade que mantém a marca do celebrado escritor da Renascença Francesa, com sua verve dipsomaníaca e seu convite ao consumo do vinho que dá coragem e que é bom para a saúde do corpo e da alma – como é de seu feitio, Rabelais apresenta uma intrigante lista de indicações terapêuticas. A par desse pé na terra, alguns autores acreditam que a defesa do vinho por Rabelais encerra também uma metáfora, o vinho como caminho para uma alegria descomprometida, para um cristianismo e uma sociedade de simplicidades. É isso que lemos nos clássicos Gargântua e Pantagruel e, agora, no Traité..., traduzido por Marianne Canavaggio, com gravuras extraídas de Songes drolatiques de Pantagruel (François Desprez, Paris, 1564). A tradução desses "inéditos" de Rabelais ficou em quarto lugar no Gourmand World Cookbook Awards de 2010, na categoria Literatura do Vinho. A versão checa usada por Marianne é de 1622, feita por Martin Kraus de Krausenthal, um burocrata bem-sucedido, com vocação literária. Estudiosos acreditam que ele tenha feito o trabalho a partir de uma versão em alemão, de origem também desconhecida.

DC de 28/05/2010

sexta-feira, 21 de maio de 2010

As gavinhas dos irmãos Campana

A inspiração veio do ambiente da região de Champagne. Arrisco um palpite: das enroladas gavinhas de seus organizados vinhedos. E também, como confessaram, de uma de suas famosas cadeiras, a Corallo, em aço inoxidável, criada em 2003 para a marca italiana Edra. Foi a partir desses insights que os premiados designers brasileiros Irmãos Campana conceberam "Gloriette", uma espécie de gazebo, um mini pavilhão destinado à degustação de Champagne. A encomenda será instalada na primavera de 2011 nos jardins do Hotel du Marc, em Reims, território de uma das casas de Champagne mais respeitadas da França, a Veuve Clicquot. Os mecenas da Veuve Clicquot estão restaurando toda a construção do século XIX, onde viveu a própria viúva Clicquot, o coração da marca. A apresentação do projeto aconteceu no mês passado durante o Salão Internacional do Móvel de Milão. A Veuve Clicquot, fundada em 1772 e hoje integrada ao conglomerado Louis Vuitton, sempre cuidou de sua bebida, mas nunca deixou de lado suas preocupações com design e estética. O inovador e elegante rótulo amarelo-alaranjado, como a cor da cítrica clementine, já foi objeto de estudo da Propaganda. O projeto "Gloriette" dos Irmãos Campana adotou essa cor em uma estrutura na forma de ninho, tecido em fino metal e sustentado por arcos de madeira. Madame Clicquot ficou viúva em 1806, com apenas 27 anos. Decidida, passou a derrubar barreiras comerciais. Embarcou com sucesso sua safra 1811 para a corte imperial de São Petersburgo e com isso garantiu liderança de mercado durante os 50 anos seguintes. Hoje a casa produz cerca de 12 milhões de garrafas de Champagne por ano.


www.veuve-clicquot.com/htm/en/veuve-clicquot-essential-philosophy.htm
www.campanas.com.br

Diário do Comércio de 21/05/2010

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Os assírios em festa

Dioniso, deus do vinho, na sua viagem de propagação da videira, da Ásia para a Grécia, teria feito um muxoxo depois de passar pela Mesopotâmia: "Terra de bebedores de cerveja!" A mitologia grega também soube ser engraçada. Como os egípcios, os assírios tinham na cerveja sua bebida popular, mas o vinho marcou presença, principalmente entre os nobres. Para reinaugurar a sua capital Nimrud, o rei Ashurnasirpal II (883-859 a.C.) convidou quase 70 mil pessoas para uma festa de 10 dias. A ordem era impressionar, principalmente "embaixadores". Uma estela encontrada nas ruínas do que sobrou de Nimrud registra o tamanho do banquete. Só de bebidas: dez mil odres de vinho e dez mil jarros de cerveja. Séculos mais tarde, o rei Ashurbanipal (668-627 a C) pôde colher uvas plantadas pelos ancestrais e manteve a tradição da boa bebida. Vinho não faltava em seu luxuoso palácio em Níneve, perto do rio Tigre, norte do atual Iraque. No painel abaixo, hoje no Museu Britânico, Ashurbanipal e a mulher aparecem degustando vinho sob uma videira. O rei aparece reclinado, pose vista e celebrada posteriormente no symposium dos gregos e no convivium dos romanos. Com uma diferença: ele não dividia a ocasião com um grupo de homens, como faziam os filósofos gregos. Os que aparecem no friso são "abanadores" reais e estão ali apenas para garantir que nenhum inseto atrapalhe a conversa a dois. Os assírios não eram bonzinhos, não. Dependurada numa árvore ao lado da bucólica cena, à esquerda no painel, aparece o troféu de guerra: a cabeça decapitada do inimigo rei Teumman.

DC de 14/05/2010

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Agora, só lembranças

Um dos proprietários do restaurante instalado em elegantes salões do Jockey Clube de São Paulo, na rua Boa Vista, se aproxima da nossa mesa.
– Boa tarde, Dr. Sérgio. Li sua coluna sobre champagnes. Já comprei minha Henriot. Vou abri-la amanhã, diz, confiante na qualidade da bebida que haveria de provar.
O crítico de vinhos Sérgio de Paula Santos escrevera na sua coluna semanal "Adega", no espaço desde hoje tristemente vazio, que os champagnes Henriot recém-chegados ao Brasil tinham encantado os degustadores. É uma das cinco casas ainda nas mãos de empresas familiares como a Bollinger, Paul Roger, Roederer e Gosset. Havia mais de três décadas escrevendo sobre vinhos, Paula Santos fazia questão de acrescentar informações culturais e históricas às suas notas. Seus leitores gostavam das posições corajosas, independentes. Não foi à toa que ele foi abordado várias vezes por comensais no restaurante do Jockey. Tinha escrito que gostara dos champagnes Henriot, mas reclamara da "parte sólida" da festa de degustação: o creme de lagosta estava frio e faltaram talheres de peixe. Ele me convidara para almoçar, queria conversar sobre a revitalização da Academia Brasileira de Gastronomia, um dos projetos que encarou com garra até o fim. Era a segunda vez que nos encontrávamos. A primeira, ali mesmo no Jockey, brindamos a publicação no DC da sua coluna de número 200, na companhia de Moisés Rabinovici, diretor de redação do jornal, e da repórter Lúcia Helena de Camargo, responsável pelas críticas gastronômicas. Sérgio trouxe para o almoço um Carmenère no melhor estilo BYOB (Bring Your Own Bottle). E durante a conversa relembrou sua tese: "Se a cultura e as tradições alimentares sobreviverem, certamente também poderão sobreviver importantes identidades nacionais". Gostava da mesa de amigos, da mesa familiar, que, em tempos globalizados, podem ser cenários resistentes a qualquer tipo de banalização.
À saída do restaurante, nova abordagem.
– Prazer em vê-lo, Sérgio, despede-se Delboni, que durante décadas esteve à frente de um dos maiores laboratórios de análises clínicas do País. Ele fez questão de citar uma sentença curta e pragmática de Paula Santos.
– Perguntei-lhe se um determinado vinho francês de 15 anos ainda estaria bom. E ele me respondeu sem titubear: "primeiro, Delboni, é preciso abrir a garrafa, meu caro".

DC de 7/05/2010

terça-feira, 4 de maio de 2010

Baco versus Silenus Embriagado

Historiadores do vinho apontam dois dos maiores inimigos da bebida ao longo dos tempos: os cobradores de impostos e os falsos moralistas. A Lei Seca nos Estados Unidos é uma das manifestações mais dramáticas. Os moralistas jogam pesado contra a bebida e qualquer possibilidade de embriaguez. Guerras filológicas, nada filosóficas, são travadas para tirar o álcool do vinho bíblico. Há quem pense em reduzir a alegria e o carpe diem dos poetas persas Omar Khayáam e Hafiz de Shiraz a meras metáforas espirituais. Sempre que essas questões vêm à baila, empresto algumas idéias do polêmico filósofo francês Michael Onfray, autor de A Razão Gulosa (Rocco), que faz uma abordagem hedonista sobre o tema, defendendo o vinho, acima de tudo. Onfray faz questão de ressaltar que a embriaguez pode ser mágica quando leva a lugares que esclarecem e iluminam a razão. Os filósofos gregos sabiam disso – o symposium era movido a vinho. Onfray é contra as bebedeiras do alcoolismo, que fazem o usuário "um objeto que se sujeita e não um sujeito que deseja". Dois quadros ilustram bem a dicotomia que envolve esse "alimento de duas faces". Em Silenus Embriagado 1617-18), de Rubens, temos o bêbado com olhos atormentados, corpo entregue à sorte, desorientado. "Atentado violento à bipedia e à civilização”, anotaria Onfray. No Baco (1593-94) de Caravaggio temos a expressão de uma alegria antecipada da experiência inebriante. Suspensão da razão como exercício metafísico, abertura do espírito para coreografias de novas percepções, mas nunca "o aniquilamento da razão".

DC de 30/abril/20010